Espaços urbanos

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Centro Histórico - foto Catiele Fortes

domingo, 7 de maio de 2023

Casarão pesteado

Os jornais são verdadeiros mananciais de informações. Muitas vezes uma notícia ou nota aparentemente sem oferecer maior interesse é capaz de levar a uma bela descoberta ou a indagações até então não levantadas!

Foi o que sucedeu pela leitura de um artigo assinado apenas pelas iniciais DIF (ainda sem pistas para associação ao nome verdadeiro do autor), intitulado A peste - ligeiros comentários. Foi através dele que obtivemos conhecimento sobre uma casa na Rua 7 de Setembro que à época estava com o futuro ameaçado. Na tal casa teriam sido hospedados figurões do Império. Tais informações, até então desconhecidas, fazem do casarão referido mais um espaço de valor histórico que o tempo, a ignorância e o desapego à memória condenaram à demolição. Foi-se ao chão uma edificação que testemunhou e fez parte da nossa história, sem que ao menos tivéssemos tempo de reconhecê-la como espaço relevante de memória. Sofreu ela o mesmo que a velha casa da Rua Saldanha Marinho, também pertencente a um médico de nome José Afonso Pereira da Silva, que em 1846 hospedou o Imperador Pedro II e que foi fragorosamente posta ao chão na década de 1980.

Casa que hospedou D. Pedro II - Rua Saldanha Marinho
- Fototeca Museu Municipal

A casa referida pelo jornal de 1922 abre uma perspectiva de ligação entre os dois médicos, provavelmente membros da mesma família, e que aparentemente mantinham a tradição de bem receber os ilustres homens de seu tempo. 

Dizia o articulista do jornal O Commercio, edição de 23 de agosto de 1922, página 1:

"A PESTE

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Ligeiros comentários

Por um verdadeiro prodígio de equilíbrio mantém-se ainda de pé, à Rua 7 de Setembro, esquina da Travessa Ramiro Barcellos, desta cidade, uma das mais antigas casas de Cachoeira, propriedade hoje do distinto médico, nosso ilustre conterrâneo, Dr. Pereira da Silva.

A propósito dos últimos e recentes casos de peste ocorridos entre nós, resolveu com muito acerto a autoridade sanitária, de comum acordo com a administração municipal, proceder à queima de algumas casas velhas e, para o sacrifício, foi apontada dentre elas a do Dr. Pereira.

Em se tratando de um prédio antiquíssimo há tempos desabitado e em ruínas quase, lembrou-se alguém de cognominá-lo, aliás com muita precisão, de pardieiro suspeito.

A zombeteira classificação, inserta em um telegrama do Correio do Povo não satisfez ao Dr. Pereira que em carta dirigida ao mesmo jornal mostrou-se agastado com o ridículo lançado à sua rica casinha, relíquia de um passado distante que ele não consentiu que fosse reduzida a cinzas pelo fogo. Coisa de tanta valia não feita para ser queimada.

A casa do Dr. Pereira, além do custo dos materiais antigos, de puro cerne de que foi construída, tem ainda o seu valor histórico que não pode e não deve ser esquecido. Ela serviu para hospedar em tempos idos pessoas de grande destaque no meio monárquico brasileiro. Foi habitada e era frequentada, em princípios do século passado, por gente da elite cachoeirense daquele tempo. Quando da guerra do Brasil contra o Paraguai por aqui passou parte do exército imperial para os campos de batalha, alguns oficiais generais ali foram recebidos e alojados.

Depois de tudo isso e não tendo até hoje a casinha histórica do Dr. Pereira feito mal a ninguém, vem agora a higiene científica moderna dizer, por seus órgãos autorizados, que ela precisa ser destruída pelo fogo para garantir a gente contra a peste!

Muito embora o Dr. Pereira, como médico competente, adote os princípios de ciência no que respeita os processos da profilaxia social, agressiva e defensiva, todavia, debaixo de outro aspecto, isto é, como proprietário ele acha que aqueles princípios não devem ser aceitos em absoluto; devem sofrer as suas restrições em virtude de não poderem ser, em medicina, preteridos certos e determinados diagramas. E argumentando assim em sua carta, ele chega muito lógica e naturalmente à conclusão de que a sua casa não deve ser incendiada, o que consulta bem aos seus interesses.

A casinha merece antes, diz ele em sua missiva, que se a conserve melhorando, enquanto de pé ela se for mantendo pelo mágico poder do equilíbrio até que um belo dia venha a desabar sobre alguém, à falta de alicerces que já lhe vão escasseando, o que aliás não terá importância.

Não se deve concluir do exposto que o Dr. Pereira seja um inimigo radical do fogo. Ele não o adota apenas sob o ponto de vista da higiene profilática contra o micróbio da peste. Nos últimos tempos tem  o provecto clínico vivido às voltas com as chamas. Vem de inventar o Brasol, combustível de primeiríssima, a cujo poder ignescente deslizarão nas estradas automóveis de todas as marcas, serão acionados motores de todos os fabricantes e navegarão gasolinas e barcos de todas as espécies e calados.

E se o Dr. Pereira houvesse consentido na queima da sua casa já teríamos então apreciado também a força das chamas do Brasol, o qual aplicado para início do fogo superaria, com certeza, a eficácia do velho querosene, tão comumente usado nos incêndios.

Não nos foi dado assistir esse espetáculo, porque relegando em parte as noções adquiridas sobre a ação do fogo contra a vida do micróbio, o Dr. Pereira defende assim a sua propriedade.

E o distinto médico conterrâneo tem toda a razão: sem fogo mesmo as pestes passam e... a casa fica."

DIF

A peste, motivo da demolição de algumas casas na Cachoeira de 1922, era a bubônica, que em 1920 apresentou um surto que vitimou várias pessoas. O seu combate era feito, naqueles tempos, através da eliminação dos focos, demolindo os lugares em que houve infestação e vítimas. 

O mesmo jornal O Commercio noticiou, em março de 1920, que "Cachoeira infelizmente ainda possui, no seu centro mais povoado, velhíssimos prédios, incompatíveis com o nosso grau de progresso e que, pelas suas péssimas condições de asseio, são verdadeiros viveiros de ratos, prontos a tornarem-se, numa circunstância como a atual, em terríveis focos de peste, a difundir a epidemia pela cidade. E, por uma estranha circunstância, pertencem eles a pessoas abastadas que, pela sua conservação, estão impedindo o progresso da cidade e constituindo uma ameaça à saúde pública. Felizmente, ao que sabemos, o ilustre Dr. Intendente Municipal tomou severas medidas para que tais prédios, muitos deles já ameaçando ruínas, sejam imediatamente demolidos."

Felizmente a bubônica foi debelada, o Dr. Pereira da Silva foi respeitado em sua propriedade e o casarão não teve, naquele momento, o destino que muitos desejavam. No entanto, muito tempo depois, a edificação acabou perdendo espaço para a modernidade, não deixando nem registrada a sua história. 

Teria o artigo sobre a peste revelado mais um casarão histórico da vetusta Cachoeira? Que personagens do Império teriam passado por ele? Que parentesco unia o médico José Afonso Pereira, da casa que hospedou D. Pedro II na Rua de Santo Antônio (Saldanha Marinho), com a casa do Dr. Pereira da Silva localizada na Rua 7 de Setembro, esquina Rua Ramiro Barcelos?

Seria a casa da direita na foto a que pertenceu ao Dr. Pereira da Silva?
Quem seriam os ilustres que nela se hospedaram?
- Fototeca Museu Municipal

Rua 7 de Setembro entre Andrade Neves e Ramiro Barcelos
 - Coleção Claiton Nazar


Cada tempo tem suas pestes, mas a que verdadeiramente assola e gera as demais é a da ignorância. Contra ela só há dois antídotos eficazes: a educação e a cultura.