Espaços urbanos

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Temporal no Centro Histórico - foto Francisco Nöller

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Série Histórias Populares: A Cachoeira

Vamos iniciar uma nova série e contar histórias populares que chegaram aos nossos dias como sói acontecer com histórias deste tipo: ou viram lendas, ou "coisas de que se ouviu falar"... modificadas aqui e ali, acrescidas cá e lá pela passagem do tempo, pela interpretação dos que as recontaram, pelo imaginário popular. Estas histórias são forjadas pela nossa cultura, pelo nosso meio, pela natureza humana. Tem coisa mais nossa?

Para começar a série, recorremos ao jornal O Commercio (1900 - 1966) e na edição do dia 6 de março de 1907 encontramos: A Cachoeira.

"Em risonha aldeia de pescadores, à margem de caudaloso rio, que mais além ia formar uma cachoeira, vivia Elias, guapo e esbelto mancebo, de tez bronzeada e cabelos negros. Amava de todo coração o moço pescador a Clarinha, a mais encantadora donzela do lugarejo, filha do velho David, o qual, sem motivo algum, antipatizava solenemente com Elias, a quem hostilizava, assim como à filha, procurando destruir os laços de afeição que ligavam os dois jovens. A oposição que fazia o pai de Clarinha, longe de arrefecer-lhes o amor, tornou-o ainda mais violento.

David, apesar de ver malogrados seus esforços obstinava-se em não ceder aos rogos da filha. Não encontrava defeito nenhum no rapaz, que era bom, honrado e trabalhador, mas não queria... porque não queria... Era mera questão de capricho.

Atingindo finalmente Clarinha a maioridade, impôs ao pai a sua vontade e, como se não quisesse ele submeter, partiu a moça para a casa de seus padrinhos que moravam na outra banda do rio. Todas as tardes, lutando na frágil canoa de cedro com as marulhosas da torrente, lá ia o mancebo cantando alegremente ver a querida noiva.

Uma tarde a aldeia estava em festa. Naquele dia casavam-se Elias e Clarinha. O sol, ao deitar-se preguiçoso no horizonte, dourava com seus últimos raios as águas encrespadas do rio que iam lá adiante formar a cachoeira. Na canoa ornada de flores, que balouçava na praia, saltou Elias. O vento era favorável, não tinha necessidade de remos, deitou-os no fundo da embarcação e, desfraldando a vela, fez-se ao largo. Ia buscar a noiva. O casamento deveria realizar-se, à noite, na capelinha do lugar.

Cachoeiras no Jacuí - fototeca Museu Municipal

Quando o jovem pescador afastou-se com a vela solta ao vento, o velho David, em pé sobre a barranca, rugiu entre dentes: - Maldição!... Vais à vela, miserável!... o vento te protege... Quisera que fosses remando, como é teu costume, porque então havias de ir parar, despedaçado, no fundo da cachoeira... e a minha Clarinha, a minha querida filha não seria tua!... O velho não recuara diante do crime para impedir o casamento. Havia feito vários furos nos remos de Elias para que, assim enfraquecidos, se partissem antes dele atingir a margem oposta.

Pano enfunado, a canoa do noivo abicava à praia fronteira. Clarinha, que ali o esperava, embarcou. Amainara o vento. Colhida a vela, a embarcação, acompanhada de outra em que vinham os padrinhos da donzela, cortou as águas em demanda da aldeia. Chegando o barco ao meio da corrente, para vencê-la o moço pescador começou a remar com todo o vigor de seus braços fortes. Mas, de repente, empalideceu – acabavam de quebrar-se, um após outro, os dois remos – e a canoa descia o rio, a princípio lenta, depois em vertiginosa corrida. Elias tomou nos braços a noiva que desfalecera e, atirando-se à água, tentou nadar para terra. Baldados esforços. A correnteza o arrastava. Várias embarcações, entre as quais a em que vinham os padrinhos de Clarinha, lançaram-se em socorro. Foi tudo em vão...

O velho David, de pé sobre a ribanceira, imóvel como se fora de pedra, as mãos na cabeça, o olhar desvairado, viu-os abraçados lá ao longe despenharem-se na cachoeira. E murmurava: - Matei-o... mas matei também minha filha...

Na capelinha da aldeia, lugubremente, começou o sino a dobrar a finados...

De pé ainda sobre a barranca, louco, o velho, com os olhos desmesuradamente abertos, fitava a neblina que além subia da cachoeira e repetia baixinho, muito baixinho: - Matei-a... matei-a..."

Marques Júnior

Bem, este rio certamente é o Jacuí... E o Elias e a Clarinha um daqueles tantos casais que encontraram resistência ao seu amor. Coisas do passado. Coisas do presente. Coisas de sempre!

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Do mercado de gêneros a céu aberto às feiras livres

Os mercadores de rua são personagens da história desde muitas eras. A apregoação de seus produtos serve-se de todas as línguas e acontece em todos os cantos do mundo.

Escrava mercadora com filhos
- fototeca Museu Municipal
Cachoeira não constitui exceção e desde há muito vê desfilar em suas ruas ambulantes oferecendo todo tipo de gêneros. Na atualidade, os vendedores de rua tendem a organizar-se, ocupando espaços coletivos, com infra-estrutura mínima para disporem e oferecerem seus produtos.

As posturas municipais, conjunto de leis de regramento da vida dos cidadãos nas vilas e cidades, já disciplinavam este tipo de mercado local no ano de 1853, e em seu artigo 8.º determinavam que:

Os vendedores de farinha de mandioca, frutas e qualquer espécie de grão não poderão vender por atacado a um ou mais atravessadores sem que primeiro tenham estado com suas carretas ou cargueiros na Praça da Igreja, por três horas, vendendo, a miúdo, ao povo.

Como se vê, já havia a intenção de organizar os mercadores, fixando um local em que reunissem seus produtos para ofertá-los a varejo ao povo. Marcar a Praça da Igreja como local para a venda fundou uma tradição que iria se repetir no futuro em outras praças da cidade.

A inauguração do Mercado Público, no ano de 1882, concentrou as vendas dos mais diversos gêneros e também serviços na então Praça Ponche Verde, hoje José Bonifácio. O Mercado era como um Shopping Center dos dias atuais, mas sucumbiu no final da década de 1950, condenado por um comércio mais bem organizado e aparelhado e pelo sucateamento próprio da falta de manutenção que caracterizava – e ainda caracteriza – os prédios públicos.

Mercado Público (1882-1957) - fototeca Museu Municipal
Em 1947 foi criada a Feira Livre Municipal, instalada primeiramente na Praça Balthazar de Bem, assim como fora em 1853. Igualmente funcionou por um tempo na Praça Borges de Medeiros. Em junho de 1951, a feira foi transferida para a Praça José Bonifácio, convivendo com o Mercado Público por um período de cerca de seis anos. Com a demolição do Mercado, os feirantes passaram a ocupar os fundos da Praça, junto à Rua Moron. Ali eles dispunham as carroças, transformando-as em balcões dos seus produtos.

Feira Livre nos fundos da Praça José Bonifácio
- fototeca Museu Municipal
Em 13 de dezembro de 1986, quando ocorreu a inauguração das instalações da Feira Livre Municipal, espaço coberto situado na Rua 15 de Novembro, esquina com a Dr. Milan Kras, os feirantes finalmente obtiveram um local mais apropriado para a exposição e venda de seus produtos, pondo fim ao tradicional mercado de gêneros a céu aberto da Praça José Bonifácio.

Dia de feira - Praça José Bonifácio - fototeca Museu Municipal


Referência: Cachoeira do Sul em busca de sua história, de Angela S. Schuh e Ione M. Sanmartin Carlos. 1992. Martins Livreiro-Editor.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Dr. Balthazar de Bem: homenagens do 30.º dia de seu desaparecimento

A comunidade do Barro Vermelho, no interior de Cachoeira do Sul, guarda um monumento que foi erguido com a finalidade de lembrar para sempre um incidente traumático da nossa história e homenagear um dos homens públicos mais importantes do primeiro quartel do século XX: Dr. Balthazar de Bem, morto em 10 de novembro de 1924 no levante do 3.º Batalhão de Engenharia.

A morte de Balthazar, além de outras tantas homenagens, ensejou a denominação da então Praça Almirante Tamandaré que passou a ser a Praça Balthazar de Bem em março de 1925.

O jornal O Commercio, em sua edição de 17 de dezembro de 1924, quando já havia transcorrido o primeiro mês do fatídico acontecimento, onde também pereceu o jornalista Fábio Alves Leitão, noticiou as homenagens de 30.º dia do desaparecimento do médico, político e empreendedor Balthazar Patrício de Bem:

Passou, quarta-feira última, o 30.º dia do desaparecimento objetivo do estimado e querido cachoeirense Dr. Balthazar de Bem, que tombou heroicamente no combate do Barro Vermelho, onde, voluntariamente, levado pelos seus nobres impulsos do amor à ordem e à lei, quando combatia na primeira linha, de carabina em punho, acertou-o uma bala explosiva enviada pelos perturbadores da paz e da ordem constitucional.

Ainda perdura no espírito público a intensa mágoa que causou o desaparecimento desse estimado e popular cidadão, digno, por tantos títulos, da veneração dos seus contemporâneos.

Por iniciativa da comissão executiva do Partido Republicano local, composta dos senhores Capitão Francisco Gama, Drs. Annibal Loureiro e João Neves da Fontoura realizaram-se, às 9 horas da manhã de 10, solenes exéquias na Igreja Matriz, que ficou cheia de excelentíssimas famílias e cavalheiros. Uma banda musical executou funerais no recinto do templo.

Igreja Matriz na década de 1920 - fototeca Museu Municipal

Finda a missa, efetuou-se uma romaria ao túmulo que encerra os preciosos despojos mortais do preclaro extinto, no Cemitério Municipal. Ali falou emocionante e comovedoramente o Dr. Annibal Loureiro, vendo-se muitos dos presentes verterem copiosas lágrimas de dor e saudade.


Ao meio-dia, um numeroso grupo de amigos e admiradores seguiu, em automóveis, para o Barro Vermelho, 3.º distrito deste município, chegando às 3 horas da tarde ao lugar onde tombou, mortalmente ferido, o saudoso clínico, nas imediações da casa comercial do Sr. Theofilo Lobato.

Nesse lugar, para sempre memorável, foi colocada uma lápide com a seguinte inscrição:
Aqui tombou em 10 de Novembro de 1924 o Dr. Balthazar de Bem, luctando heroicamente pelos seus ideaes. Estimado pelos inimigos, amado e chorado pelos amigos.


Monumento no Barro Vermelho - fototeca Museu Municipal

Esta significativa homenagem foi-lhe prestada pelo seu ilustre colega e amigo Sr. Dr. Milan Kras, prestando continência no ato um pelotão do 3.º Batalhão de Engenharia, aqui aquartelado.

Passados 90 anos do acontecido, o monumento, embora descuidado, segue testemunhando página triste da história local e refletindo o sentimento de respeito e veneração dos nossos antepassados pela figura marcante do Dr. Balthazar de Bem.