Espaços urbanos

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Ponte do Fandango com leito submerso - 5/5/2024 - foto Ângelo Netto

domingo, 30 de junho de 2024

João do Adro

Dos poetas espera-se lirismo, encantamento, palavras escolhidas para tocar o coração. Tristeza, alegria, amor, desencanto e todo tipo de sentimento pode servir de inspiração para estes seres que têm o dom de despertar em nós divagação e até estranhamento.

Alguns poetas (e aqui o termo é generalista) deixam um legado de amplo espectro. João do Adro é um deles. Mas quem é João do Adro? Era um jovem poeta que na igreja enamorou-se de uma moça. Um belo dia, encorajado pelo coração, escreveu-lhe um bilhete, assinando-o com o pseudônimo João do Adro. Deduz-se pelo apelido que o moço ficava em frente à igreja esperando por sua amada.

Nilo Fernandes Barbosa, o terceiro sentado à mesa - MMEL

João do Adro era Nilo Fernandes Barbosa e a moça se chamava Marina. 

Mas o interessante do pseudônimo João do Adro é que Fernandes Barbosa o utilizava quando escrevia sobre assuntos graves e sérios, tratando-os com linguagem mais severa e combativa. Os amores, galanteios, assuntos cotidianos e regionalistas eram assinados pelo Fernandes Barbosa.

Sobre ele mesmo e o seu pseudônimo, escreveu em 1968:

O Fernandes girondino

E João do Adro jacobino

Moram juntos, num galpão...

Basta um ser ofendido,

Para que os dois, sem partido,

Ergam a luva do chão!

Nilo Fernandes Barbosa nasceu em Rosário do Sul no dia 5 de fevereiro de 1912. Seus pais eram Antônio Fernandes Barbosa e Ana Rita Jacques Fernandes Barbosa. Veio para Cachoeira na infância, tendo aqui cursado o primário com professores de renome, como Alzira Carlos e Antonieta Gouvêa. Em 1929, foi um dos primeiros alunos a ser matriculado no Colégio dos Maristas, naquele ano instalado. Tinha 17 anos e era o mais velho dos alunos a ingressar no novo estabelecimento de ensino.

Depois do Colégio Marista seguiu para Porto Alegre, onde entrou no Colégio Militar. Sem vocação para a vida nas armas, iniciou-se por lá na literatura, escrevendo para uma revista do colégio. Foi o primeiro passo para rumar ao jornalismo, empregando-se como revisor do jornal Diário de Notícias.

De volta a Cachoeira, passou a trabalhar com Virgílio de Abreu e Mário Godoy Ilha, fundadores do Jornal do Povo, colaborando também com O Commercio, O Cachoeirense e o Correio do Povo, de Porto Alegre.

Para falar sobre a obra de Fernandes Barbosa é preciso, em primeiro lugar, falar sobre a fluência e a extrema habilidade com o uso das palavras. A qualidade de seus trabalhos e a pluralidade de temas redundaram em várias obras publicadas, quase todas às suas expensas, algumas delas premiadas em concursos literários promovidos pela revista Alterosa, de Minas Gerais, e do Globo, de Porto Alegre.

A vida do "Poeta", como ficou conhecido na cidade, ou João do Adro, como assinava vez ou outra, não era só de poesia. Aventurou-se na orizicultura e foi funcionário público municipal, tendo desempenhado o importante cargo de Diretor da Instrução Pública Municipal, correspondente hoje à Secretário de Educação, e dirigiu a Biblioteca Pública Municipal "Dr. João Minssen" por vários anos. 

Quem o conheceu, certamente lembra de vê-lo postado à porta do Jornal do Povo, órgão da imprensa cachoeirense em que certamente mais publicou seus poemas. Dizem que o nível de exigência com a correção de seus escritos era tão grande, que muitas vezes ele se postava na redação, próximo ao linotipista, para conferir se não haveria troca nas letras ou qualquer erro em suas produções, o que não admitia e cobrava veementemente. Para entendimento dos que não viveram o tempo da composição manual das páginas, a figura do linotipista era a do funcionário do jornal que montava uma a uma as palavras até que a página estivesse completa. Uma trabalheira só!

Frutinha proibida foi a sua primeira obra (1938) e reúne poemas produzidos na juventude, especialmente no Colégio Militar. Depois veio Minhas flores de jacarandá (1944), revelando um poeta mais maduro, Os gatos e o remédio (1949), mais tarde Súplica ao Negrinho do Pastoreio (1959) e outras, como Sepé - o morubixaba rebelde, todas dignas de análise apurada pelo valor literário e estilístico.

Fernandes Barbosa casou com a moça que paquerava no adro da Igreja Matriz e com ela teve quatro filhos: Danton, Barnave, Ana Rita e Ana Maria. Faleceu em 10 de outubro de 1988, legando à cidade onde viveu uma obra riquíssima, especialmente a dispersa nos exemplares dos jornais e que merece ser resgatada, permitindo constatar o talento e a versatilidade do "Poeta" que andava sempre de terno, gravata, chapéu e óculos escuros, mantendo a fleuma e o porte daqueles que enxergam o mundo com a ótica da razão sem desprezar o que lhes vai no coração.

Nilo Fernandes Barbosa (1988) - Jornal do Povo

Agradecimentos à Simone Fernandes Barbosa, neta, pela revelação do emprego do pseudônimo João do Adro.

Informações literárias em: O público e o privado na obra de Fernandes Barbosa, de Ellen dos Santos Oliveira. Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras

     

sábado, 25 de maio de 2024

Tempos difíceis!

Todos nós ouvimos, em algum momento de nossas vidas, relatos ou histórias sobre a famosa enchente de 1941. Pessoas ilhadas, famílias refugiadas em sótãos e telhados, lavouras submersas, destruição e miséria, fome, frio e medo. Mas o que boa parcela de nós jamais pensou é que a história se repetiria e que os eventos fossem vir maiores, mais dramáticos e devastadores. 

83 anos depois experimentamos a dor e a impotência diante da fúria dos elementos da natureza, deixando a grande enchente de 1941 na vice-liderança dos maiores cataclismos vividos no Rio Grande do Sul!

Para avaliarmos melhor os dois eventos, o de 1941 e o de 2024, ambos acontecidos exatamente no mesmo período, entre final de abril e princípios de maio, precisamos entender as diferenças que separam o mundo da década de 1940 e o deste primeiro quarto do século XXI. 

Em 1941, não havia toda a tecnologia hoje disponível, tampouco as medidas de verificação do evento em si e de suas consequências se aproximam do que atualmente se tem. E, principalmente, a comunicação instantânea que caracteriza este século dá outra dimensão à tragédia, permitindo que as pessoas a acompanhem em tempo real e sejam impactadas imediatamente pelo que veem. Isto explica as reações de quase todo o país e até do exterior no enfrentamento da catástrofe e no auxílio aos flagelados. 

As verificações dos impactos da tragédia climática são facilitadas hoje pelos avanços tecnológicos, assim como os recursos empregados no resgate, salvamento e apoio às vítimas, sejam pessoas ou animais. Hoje toda vida importa, o que não deixa de ser uma contradição, tendo em vista que a sociedade moderna não dá a mesma atenção aos reclames da natureza.

Na enchente de 1941, por exemplo, quando a cheia se encontrava em seu auge, uma comissão de cidadãos cachoeirenses se lançou num barco pelas águas do Jacuí para verificar os impactos. Os cavalheiros subiram na embarcação com seus trajes costumeiros, sem nenhum tipo de proteção! Mesmo os voluntários de hoje, grande parte oriunda da sociedade civil, porta coletes salva-vidas e trafega pelas cidades inundadas com o mínimo de proteção.

Comissão de verificação da enchente em Cachoeira em 1941, vendo-se, à frente,
Floriano Neves da Fontoura (3) e o  prefeito Cyro da Cunha Carlos (4) - MMEL

Outra diferença grande entre 1941 e 2024 são os alertas meteorológicos, feitos com a necessária antecedência em razão dos modelos utilizados pelas agências de verificação e o grau bem maior de precisão. 

Os impactos de uma época e outra, apesar dos grandes destaques que a imprensa deu ao primeiro evento, com registros fotográficos abundantes, em 2024 são muito abrangentes, pois nenhuma região ficou sem o monitoramento dos efeitos da grande enchente. Drones, aviões, helicópteros, satélites, todo aparato disponível se volta para o estado calamitoso do Rio Grande do Sul. A ajuda humanitária, em razão do grande poder da comunicação e do uso das redes sociais, vem de todos os lados e procura atender ao que é essencial.

Nenhum de nós, testemunhas da grande cheia de 2024, pode dizer que não foi avisado das mudanças climáticas drásticas que passamos a sofrer em razão do desrespeito à natureza, materializada na forma de desmatamentos desmedidos, ocupação de áreas sem prévia verificação de impacto, exploração do solo de forma predatória e outras causas advindas do uso irracional dos recursos naturais.

O saldo advindo da catástrofe de 2024 ainda não pôde ser integralmente medido, mas submeterá todo o estado a uma cota substancial de sacrifícios e, principalmente, de mudança de atitude. 

As semelhanças entre as enchentes de 1941 e 2024 são tantas que o relato abaixo, recolhido na imprensa cachoeirense da época, parece descrever o cenário atual:

"Jamais os corações dos rio-grandenses se sentiram tão cheios de tristeza, de aflição, de tantas apreensões, como por ocasião dessa catástrofe imensamente incalculável nos prejuízos, estragos e fatalidades, derivados das incessantes e cerradas chuvaradas que, caindo impiedosamente sobre o solo dos pampas, fizeram transbordar arroios e rios, irrompendo suas águas por lugares onde nunca tinham chegado, ficando submersos campos, fazendas, lavouras, estradas (...) e muitíssimas partes de localidades e de cidades e ainda cortadas quase todas as comunicações. (Jornal O Comércio, Cachoeira, 14 de maio de 1941 - Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico).

A enchente no Engenho Central - MMEL

O cais da Rua Moron com depósitos submersos - 1941 - MMEL

Flagelados da enchente de 1941 - Coleção Emília X. Gaspary - MMEL
Porto de Cachoeira - 1941 - Coleção Armando Fontanari

Enchente - abril de 1941 - Coleção Emília X. Gaspary - MMEL





Série de fotos da enchente de 1941 - Coleção Achylles Figueiredo - MMEL

As descrições feitas pela imprensa em 1941 coincidem com o triste aspecto que avistamos hoje por todo o Rio Grande do Sul. Em Cachoeira, algumas tomadas da enchente que superou a de 1941, encobrindo o leito da Ponte do Fandango, fato nunca ocorrido desde a sua inauguração em 1961.

Ponte do Fandango em 5/5/2024 - foto Ângelo Netto


Registros da enchente em 5/5/2024 - fotos Ângelo Netto

BR 153 - foto O Correio

A estupefação diante da violência do clima está a exigir de todos nós uma mudança de conduta com relação ao uso/abuso dos recursos naturais. Se não frearmos a ânsia consumista, talvez o ocaso esteja a nos aguardar logo ali.

sexta-feira, 29 de março de 2024

A morte

Dela ninguém foge, ninguém traz notícia e nem de longe alguém a quer! Triste sina esta que temos de conviver com sua sombra...

Quem nos leva a refletir sobre a morte, em texto que será sempre atual, é o jornalista pelotense Antônio Ferreira Vianna (1855-1903), que foi conselheiro, ministro da Justiça do Império e abolicionista. 

Conselheiro A. Ferreira Vianna - Museu Histórico Nacional

A publicação foi feita num antigo e raro jornal da nossa velha Cachoeira, o 15 de Novembro, fundado entre o final de 1889 e 1890, cujo diretor de redação foi nada mais nada menos que Borges de Medeiros, antes de se tornar o mais longevo administrador do Rio Grande. A edição é de 22 de março de 1890, quando o número de circulação chegou ao 24 no seu primeiro ano de existência. Esta preciosidade faz parte do Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico do Município de Cachoeira do Sul "Carlos Salzano Vieira da Cunha", coleção de avulsos raros de jornais cachoeirenses.

Jornal 15 de Novembro, Cachoeira, 22/3/1890 - Acervo de Imprensa do AHMCS

À primeira página do 15 de Novembro, sob o título Excerto de um discurso, assim escreveu A. Ferreira Vianna:

A onda misteriosa da morte arrebatou das praias desta vida mais um dos valentes lidadores, espírito de fé e alma preparada para o combate. Eu o vi imóvel, vinculado e vencido pela morte; vi inanimado aquele que foi uma luz, que foi uma grande energia e um coração cheio de esperança.

A morte é sempre uma lição, lição sublime: é o soldo que pagamos neste mundo do pecado. A morte faz pensar e tremer: é o nosso maior inimigo, não tanto pelo seu poder como principalmente pelo seu mistério.

Não me parece tão grandioso tirar o homem do nada como restituí-lo, depois da morte, ao amor e à luz. 

A morte é como o desprendimento do vínculo entre o passado e o futuro. Profundo enigma entre o que nós fomos e o que esperamos ser!

Senhores, é preciso meditar na morte; e eu vos convido a fazê-lo, reservando o dia de hoje para estes silêncios e solidões em que a alma quase fulminada pelo terror só se levanta pela fé e pela esperança.

Não tenho tanto medo da morte como terror da vida. A morte é uma aposentadoria, a vida é um combate.

Não compreendo que o criador do universo, expressão absoluta e substancial da verdade e da justiça, animasse uma poeira, desse-lhe o sopro da vida por alguns dias e a lançasse como um joguete ao furor das tempestades e aos caprichos do mundo. Aqui, o nada absurdo, ali, a morte eterna.

Não compreendo o criador regozijando-se nessa obra de um momento, nessa vida comprada com o sacrifício enorme e doloroso de lágrimas e de angústias!

E se assim pudesse ser; se a catástrofe fosse real; se aquém e além nada houvesse senão esta vida de combate, ó Deus, onde a tua justiça?!!!

Pensemos na morte. Há pouco vi uma ilustre vítima que caiu na estrada da vida. Eu a vi, vô-lo digo, inanimada; a morte apagara-lhe o sorriso nos lábios, desbotara-lhe o colorido nas faces: era uma verdadeira transformação. Parece que o ser reduziu-se ao não ser; que um ente inteligente, livre e de nobres qualidades ia entrar apenas como combustível na fornalha do grande processo da química do universo.

Mas aquele coração que não palpitava, aquela língua que estava colada, aqueles olhos fechados para sempre, aquele gelo da morte, enfim, parecia reanimar-se e voltar à vida, porque diante dele estava a imagem de Jesus Cristo, fonte da vida, resumo da nossa fé, síntese das nossas esperanças.

A. Ferreira Vianna

Com este excerto (fragmento) de discurso, cabe-nos interessante reflexão nestes tempos de Páscoa, quando a morte anuncia também a ressurreição...

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Incêndio voraz

Vem do jornal O Commercio que circulou em Cachoeira no dia 27 de fevereiro de 1924, a descrição de um incêndio voraz que consumiu duas imponentes construções da Rua 7 de Setembro, ameaçando outras casas que ficavam próximas.

Casa Fialho (esquina) e palacete de Ignácia Oliveira - Rua 7 de Setembro 
- Fototeca Museu Municipal

Foi na madrugada de sábado, 23 de fevereiro,  pelas duas horas da manhã, que a Casa Fialho, pertencente a João Fialho e localizada na Rua 7 de Setembro n.º 173, defronte à Avenida das Paineiras, foi tomada pelo fogo. Os vizinhos deram o sinal com alguns tiros de revólver, atraindo a atenção de várias pessoas das redondezas que acorreram ao local, algumas delas portando baldes de água no afã de apagar as chamas.  O fogo, no entanto, alastrou-se rapidamente, tomando conta do prédio da esquina e do palacete da Viúva Oliveira. A tentativa vã de extinguir o incêndio, com gestos de audácia e coragem de alguns socorristas, foi de grande valia para evitar que o sobrado de propriedade de Jacques Bidone também fosse atingido.

Quadra da Rua 7 de Setembro, vendo-se o palacete da Viúva Oliveira e, na esquina, a Casa Fialho
- Fototeca Museu Municipal

Com muita rapidez o fogo consumiu os dois vastos prédios. Felizmente a família da D. Ignácia Amélia de Oliveira estava fora, em sua chácara na Vila Oliveira. 

A perda na Casa Fialho foi total. Fartamente sortida de fazendas, miudezas, armarinho, roupas feitas, perfumarias e chapéus, fazia pouco menos de dois anos que estava aberta ao público, sendo bastante frequentada não só pelo enorme sortimento que mantinha, como pelos preços atrativos que oferecia.

Bilhete postal (frente e verso) da Casa Fialho - Fototeca Museu Municipal

O incêndio decretou o fechamento temporário da Casa Fialho, que foi reaberta em 2 de setembro de 1924, em outro endereço na mesma Rua 7 de Setembro. Em 1927, João Fialho vendeu a loja para Rosa & Cia., permanecendo na gerência do negócio até 1928, quando transferiu residência com sua família para Porto Alegre.

Quanto ao palacete de Ignácia Amélia, a Viúva Oliveira, que depois ficou conhecida como a "Casa dos Arcos", foi reconstruída em obra contratada com o construtor Santiago Borba, ao custo de 60 contos de réis. Por muito tempo, depois da grande reforma, a Casa dos Arcos foi palco para muitos discursos políticos, pois oferecia uma sacada em três arcos, arquitetura propícia para tais acontecimentos.

Uma das últimas fotos da Casa dos Arcos (1989) - Acervo COMPAHC

Infelizmente a Casa dos Arcos não sobreviveu aos nossos dias, apagando da memória da Rua 7 de Setembro a sua elegante estrutura e abafando o eco dos discursos e das manifestações que empolgaram a Cachoeira de outros tempos.