A história que trago hoje é de família.
Há 90 anos, num 25 de abril de 1935, João Domingos Machado deixava este mundo. Era jovem, cheio de vida e sonhos, especialmente porque tinha uma pequena e amorosa família, composta da mulher e do filho pequenino. A morte tirou-lhe todas as oportunidades, inclusive a de poder contar a própria história.
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João Domingos Machado |
Para homenageá-lo, reproduzo abaixo esta crônica de memória, originalmente publicada na Coletânea Escritores da Aurora, da Academia Cachoeirense de Letras.
João Domingos
Mirian R. M. Ritzel
João Domingos faz parte daquelas pessoas que eu gostaria de ter conhecido. Pouco sei dele e este pouco vinha das memórias de outros, cujos destinos o tempo concretizou há eras. Portanto, sua imagem provém de fotografias em preto-e-branco, posadas para ambulantes que percorriam os rincões do Rio Grande com uma velha máquina em tripé e um pano pintado que usavam de fundo. Quando a foto era “batida”, uma explosão se anunciava pelo estouro e a fumaça. Mas que perfeição de registros! O moço era bem apanhado nos traços, cabelo farto, olhar marcante. Os ternos sugerem que o tecido de que eram confeccionados fosse o linho, denunciado pelo amarrotado. As mãos parecem grandes para o restante do corpo. Talvez efeito do muito que trabalharam.
João Domingos era arrimo de irmãos que ficaram na orfandade ainda crianças. Cedo teve que buscar trabalho para levar o pão de cada dia àqueles infelizes desassistidos: Ana Francisca, Antônio e José. Não era fácil a vida de órfãos no começo do século XX, pois o país não tinha ainda adotado a legislação que disciplinou o trabalho e deu garantias aos trabalhadores e seus dependentes. O que sei de sua história é que bem jovem trabalhava numa empresa de arroz da zona distrital do município de Cachoeira, granjeando algum sucesso, pois atingiu o posto de capataz.
Também não sei como nem quando, João Domingos se interessou numa mocinha bonita, de estatura pequena, tez morena clara, cabelos lisos e escorridos, bem apropriados para o corte “à la garçonne”. Seu nome era Dorildes. Como quase todas as mulheres de seu tempo, Dorildes era analfabeta, mas sabia costurar. Será que o lindo vestido com que aparece nas fotos, assim como os das suas irmãs, eram feitio dela? O modelo, igual para todas, era moda nos anos 1920, bem ao estilo das chamadas “melindrosas”. De corte reto, o vestido ganhava graça na faixa que amarrava a saia nos quadris. Também um frufru terminando em laço no decote ajudava a alongar a silhueta. Nas pernas, reluzentes meias de seda e, para arrematar, sapatos de tira e fivela sobre o dorso dos pés.
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Dorildes e João Domingos |
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João Domingos, Dorildes e a irmã Aurora da Luz |
Creio que ambos se apaixonaram. Nunca ninguém me contou isto, mas as esparsas histórias que ouvi sobre eles sinalizam que havia amor na união que se concretizou depois. A data do casamento, como foi, onde aconteceu ficaram perdidos em memórias que não chegaram até mim. O fato é que em 22 de maio de 1932 Dorildes deu à luz o filho Waldicyr. Menino moreno, forte. Muitas vezes a jovem mãe ficou sozinha com o filho, pois cedo João Domingos tomava rumo da empresa, onde as tarefas nas lavouras de arroz o aguardavam. Será que ele agenciava trabalhadores, fazia os devidos registros e os orientava? Ou tinha tarefas mais práticas, como consertar equipamentos, abrir taipas, semear ou colher o grão? Muitas vezes me angustio com tantas perguntas e quase nenhuma resposta.
O fato é que ela contou para sua nora que João Domingos nunca voltava para casa sem um mimo. Nem que fosse um buquê destas singelas flores que nascem no meio do capim dos caminhos. De mãos abanando ele não chegava.
Numa noite de muito temporal, frio e ventania, como é comum no descompassado tempo do Rio Grande, Dorildes perdeu o pai. João Domingos assumiu o compromisso de providenciar tudo o que fosse necessário para as exéquias do sogro. Andou de um lado para o outro, tomou toda a chuva, tiritou de frio, mas cumpriu suas obrigações, dando sepultura digna ao pai de sua Dorildes.
A juventude não é garantia de nada, especialmente da saúde. Os problemas respiratórios logo vieram para João Domingos. Primeiro foi a tosse, o peito roncando, as secreções que logo se tomaram de sangue. Vieram para Cachoeira buscar tratamento médico. O diagnóstico veio logo: pleurisia. Difícil enfermidade para tempos em que os recursos da medicina eram escassos, os remédios fracos. O quadro se agravou e uma cirurgia foi feita pelos doutores José Félix Garcia e David Fontoura de Barcellos. Provavelmente uma drenagem de líquido dos pulmões. Surtiu algum efeito, apesar das dores e das febres. Com o auxílio da esperança.
João Domingos morreu. Nem a juventude, nem o amor de sua Dorildes, nem o desvelo dos médicos resolveram a situação. Mais uma vez a espada da orfandade sobre o seu destino, ou melhor, sobre o destino do seu único filho. Chegaram a levar o menino para ver o pai no esquife, gravando na memória do pequenino a única imagem que carregou de João Domingos pelo resto de seus dias...
Esta é uma história cheia de lacunas. Mais do que isto, esta é uma história que mostra o quão difícil é reconstituir algo de que não se tem ninguém que possa juntar os fios da meada ou fornecer pistas para completar o quadro de uma vida, de várias vidas, da história de uma família.
João Domingos era o meu avô. E eu não posso, por mais que queira, completar a sua história.
2/9/2024