Espaços urbanos

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Ponte do Fandango - foto Robispierre Giuliani

domingo, 1 de dezembro de 2024

Sumiu o piano!

Cachoeira, 1906. Um piano existente no Teatro Municipal sumiu. A partir disso, uma enrascada surgiu. Afinal, que fim levou o piano?

Mentirosos relapsos. Um resumido grupo de cafajestes, sem a mínima cotação social, adulterando o fato da transferência de um piano que permanecia no Teatro para os salões do Clube Comercial, aliás legítimo coproprietário do aludido piano, por cessão de direitos que lhe fizeram diversos cidadãos caracterizados, anda a espalhar miseráveis mentiras nesta cidade e até fora dela, por meio de falsíssimos telegramas dirigidos aos jornais.

Um dos tais cafajestes teve a lembrança de telegrafar à Gazeta do Comércio, de Porto Alegre, mentindo desbriadamente e envolvendo entre os torpes embustes o nome de uma autoridade local, inteiramente alheia ao fato narrado no recado expedido. A desbragada calúnia provocou justa revolta, e um dos nossos companheiros resolveu interpelar o conhecidíssimo chefe da patrulha e indigitado autor do telegrama aleivoso.

Como era de esperar, este membro proeminente da patrulhinha dos linguarudos e boateiros negou abertamente a autoria que se lhe havia imputado, chegando a empenhar nesse sentido sua palavra. E ficam assim os homens de bem e as autoridades íntegras expostos às imputações covardes e anônimas de vigaristas documentados e caloteiros sem pudor. Mas, cuidado! A paciência pode vir a esgotar-se e então colocaremos na mesa das autópsias públicas um a um o cadáver de todos esses repulsivos arautos da falsidade e da calúnia. (Jornal Rio Grande, 31/5/1906, p. 1, sem autoria).

Maravalha...

Bondosos leitores e amáveis leitoras!

Para cavaqueá-los simplesmente e mui piano, é que de novo nos achamos diante de vós! Sim, muito pianamente, porque somos um tanto tímidos e receamos meter-nos em altas cavalarias, maximé porque não conhecemos bem o terreno onde pisamos.

Somos novos no ofício e por conseguinte iremos maravilhando conforme Deus nos ajudar, sem ultrapassar os limites da nossa linha de conduta, para imiscuir-nos nas rusgas dos outros ou ocupar-nos da vida alheia.

Nada temos que ver com o que se passa em casa de Pafúncio ou na de Pancrácio. Não nos move o interesse de saber se Fulano abiscoitou o instrumento de Sicrano, porque também se julga com direito de posse do supradito cujo.

Toquem para lá a sua solfa de fá [rasgado no original], porque nós, alegres mancebos, só gostamos de surdina, e isso mesmo tocada alta noite, à janela da eleita de nosso coração, ainda de modo que os carrancas não ouçam.

Essa música que os filhos da Candinha andam por aí tocando, de viela em viela, não nos agrada, apesar de asseverarem os maestros que é tocada piano... piano.

Agrada-nos muito mais ouvir a orquestra que ocupa o coro de nossa matriz, nessas noites de novenas em honra ao Divino Espírito Santo. Composta de profissionais e de alguns novos elementos, como sejam diversas senhoritas e meninas que dedicam-se por amor à sublime arte de Mozart, há nos deliciando os ouvidos com seu concerto de vozes e instrumentos. (Jornal O Commercio, 6/6/1906, p. 2, assinado por Eugenio & Vicente).

As duas repercussões acima foram publicadas nos dois principais jornais que circulavam na Cachoeira de 1906. Como O Commercio e o Rio Grande digladiavam-se com certa frequência, é de se dar um desconto nas afirmações que um e outro fizeram.

No entanto, buscando notícias anteriores ao fato da retirada do piano das dependências do Teatro Municipal, é possível depreender quem foi seu proprietário original.

Existia em Cachoeira, naquele começo de século XX, uma sociedade musical que tomou o nome de Grupo Carlos Gomes, fundada em 20 de outubro de 1903, composta por 21 figuras que tocavam instrumentos de metal e de corda. Ora, desde o Natal de 1900, o lugar em Cachoeira destinado a exibições artísticas era o Teatro Municipal, localizado nas imediações da Igreja Matriz e da Intendência Municipal, hoje Praça Dr. Balthazar de Bem. 

Teatro Municipal - Fototeca Museu Municipal Edyr Lima - MMEL

Em abril de 1904, já contando várias exibições e tendo aumentado para 36 figuras, o Grupo Carlos Gomes adquiriu um piano, estreando-o, como não poderia deixar de ser, em concerto no Teatro Municipal.

Por razões óbvias, o piano ficou estacionado no teatro, tendo para tal o grupo obtido autorização do intendente, o Coronel David Soares de Barcellos. Lá serviu para muitas apresentações. Entretanto, em 26 de maio de 1906, indignados com a retirada do piano das dependências do teatro e depósito do instrumento no Clube Comercial, o diretor do Grupo Carlos Gomes, Abelino Vieira da Silva, e outros integrantes se dirigiram ao intendente, Dr. Cândido Alves Machado de Freitas, para saberem se havia partido dele a ordem de retirada. Cândido consultou o subintendente e este respondeu que o piano depositado no teatro não estava sob a responsabilidade da Intendência, não cabendo à administração municipal o compromisso de guardá-lo. Sendo assim, autorizou a sua retirada pela requisição que fez o Clube Comercial.

O intendente que autorizou a guarda do piano no Teatro Municipal
O Commercio, 21/9/1904, p. 1

Na ocasião em que o piano foi retirado do Teatro Municipal por representantes do Clube Comercial, o Grupo Carlos Gomes estava em processo de liquidação, sendo representado pelo liquidante Abelino Vieira e Arthur Macedo, ambos grandes credores da sociedade musical. Teria sido esta a razão de representantes daquele clube acharem-se no direito de levar o piano? Por sua vez, os liquidantes e grandes credores viram no piano um recurso para diminuir seu prejuízo?

O certo é que pouco tempo depois, tanto o Clube Comercial primitivo (outro clube com a mesma denominação surgiria em 1924) quanto o Teatro Municipal deixariam de existir. E o piano aonde foi parar?

Para saber mais sobre esta história e conhecer os documentos que a ela se referem, consulte: http://arquivohistoricodecachoeiradosul.blogspot.com/2017/07/um-piano-em-questao.html


quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Os hotéis Müller

Muitos foram os estabelecimentos em Cachoeira que ofereceram hospedagem para os viajantes. Nos primórdios, os pousos se davam sob o abrigo de uma árvore, num galpão de estância ou na casa de algum conhecido. Com o passar do tempo, hospedeiros passaram a se organizar para a recepção e acomodação em locais específicos e com o mínimo de conforto àqueles que estavam fora de suas cidades de origem. 

Graças ao acervo de imprensa existente no Arquivo Histórico foi possível levantar propaganda de dois antigos estabelecimentos do gênero: os hotéis Brazil, de Francisco Negroni, e Democrata, de Germano Wergkerle, ambos em funcionamento no ano de 1890.

Anúncio do Hotel Democrata - Jornal 15 de Novembro (1890)
- Acervo de Imprensa do AHMCS

Outro dos mais antigos e longevos é o Hotel Müller, que se localizava, desde o final do século XIX, na Rua Saldanha Marinho n.º 112, esquina com a Rua Tiradentes

Na publicação Cachoeira Histórica e Informativa, de Vitorino e Manoel Carvalho Portela, em sua segunda edição (1942), o Hotel Müller é referido dentre as firmas ativas da cidade e atendendo no mesmo endereço com o telefone número 76. Era seu proprietário Walther José Müller que comunicara na imprensa, dois anos antes, ter aberto ao lado do novo Hospital de Caridade um hotel com esta denominação e que o estabelecimento se achava confortavelmente aparelhado, atendia às exigências da higiene e oferecia banhos quentes e frios. Muito provavelmente o Hotel Müller noticiado era sucessor do antigo, o que se depreende pela manutenção do nome e endereço originais. 

Hotel Müller - seria o da esquina da Rua Saldanha Marinho com Tiradentes? 
- Acervo Guido Milan Böck

Mas havia outro Hotel Müller. Depois de ter adquirido o antigo Hotel Schreiner, Alberto Müller abriu o Hotel Müller em 1924, na Rua Júlio de Castilhos, conforme noticiou O Commercio em 22 de outubro daquele ano. 

Além dos dois hotéis de nome Müller, um próximo ao Hospital e outro na Rua Júlio, havia  também uma Pensão Müller, do casal Otto e Adela Müller. O casal anteriormente fora proprietário de um outro Hotel Müller, na mesma Rua Júlio de Castilhos, e que depois foi vendido para Alfredo Schott. Com o negócio, Otto e Adela instalaram a pensão ao lado do hotel vendido, junto ao potreiro que a família mantinha para que os hóspedes do hotel e da pensão pudessem deixar os seus animais de montaria ou transporte de carga. A porteira do potreiro ficava voltada para a Rua Juvêncio Soares, quase na junção com a Rua D. Pedro II.

O comprador do Hotel Müller, Alfredo Schott, o repassou para o genro Elemar Schiefelbein, que trocou o nome da casa de pouso para Hotel Avenida, denominando-o depois Everson Palace Hotel, estabelecimento até hoje existente.

Everson Palace Hotel - Trivago

A história dos hotéis Müller ainda está em aberto. Contribuições para expandi-la ou aperfeiçoá-la serão muito bem-vindas!

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Série Lojas do Passado: José Dini & Cia.

José Dini - Monte Domecq (1916)

Da Toscana, Itália, para o Brasil. Este foi o caminho tomado pelo italiano Giuseppe Dini, natural de Castiglione di Garfagnana, em 1886. Contava 24 anos quando, depois de percorrer diversas cidades como mascate, estabeleceu-se em Cachoeira com comércio em 1890. No ano de 1914, admitiu como sócio o seu gerente, o uruguaio de ascendência italiana Julio Castagnino, com quem trabalhava desde 1910. 

A casa comercial de José Dini & Cia., como várias de sua época em Cachoeira, comercializava de tudo um pouco. Desde secos e molhados, louças, ferragens, produtos coloniais até gêneros e equipamentos importados. Com o fim da Primeira Grande Guerra, além dos produtos convencionais, passou a trabalhar com importação. Tornou-se, em 1919, agente de automóveis da fábrica italiana Fiat para Cachoeira, Caçapava e São Sepé. Incluiu no catálogo de gêneros as afamadas farinhas de trigo argentinas das marcas Sublime e Imperial. Mantinha também um depósito de fumo em corda.

Cartaz de propaganda da loja José Dini & Cia. - AHMCS

O endereço da José Dini & Cia. era a Rua 7 de Setembro, esquina com a Rua Major Ourique, rivalizando com outras que se localizavam na artéria principal da cidade, nas adjacências da Estação Ferroviária ou do Mercado Público.

Casa comercial de José Dini & Cia., à direita (década de 1920) - Coleção Claiton Nazar

Em 1912, quando a Intendência Municipal passou a comercializar terrenos para a abertura do Bairro Rio Branco, o italiano José Dini adquiriu um na recém-aberta Rua Comendador Fontoura, assim como Augusto Wilhelm, José Fernandes, Victor Menezes, Jeronymo Brandes, a viúva de José Müller, uma das suas concorrentes no ramo comercial, Odon Cavalcanti e João Neves da Fontoura.

Com a retirada espontânea de Julio Castagnino da sociedade em 1921, José Dini ainda seguiu com seu negócio até 1927, quando encerrou atividades.  

Além dos filhos Eugênio e Mansueto, que o auxiliavam na loja, José Dini era pai de João, Martin e Antônio. Seu falecimento, em Cachoeira, foi no dia 30 de dezembro de 1930.

domingo, 25 de agosto de 2024

A revolução de 1923 e três personalidades ligadas a Cachoeira

Cachoeira é daqueles lugares que nasceram para figurar no mapa como terra ligada aos principais acontecimentos históricos. E ainda que a sua economia e outros aspectos da vida comunitária tenham mudado muito no último século, mesmo assim a sua relevância se sustenta no protagonismo de seus filhos ou dos homens e mulheres que aqui viveram e fizeram história.

A revolução de 1923 é uma mostra disto. Três figuras de relevo daquele acontecimento que convulsionou o estado de janeiro a dezembro daquele ano, tiveram laços fortes com Cachoeira.

O primeiro deles, Antônio Augusto Borges de Medeiros, cuja eleição para mais um mandato estadual foi o estopim do movimento revolucionário, congregando os opositores políticos em torno do nome de Joaquim Francisco de Assis Brasil, tinha vínculos familiares com Cachoeira. Sua mãe, Miguelina, era cachoeirense e irmã mais velha do Coronel Horácio Borges. Talvez por isto, o menino tenha sido batizado na Igreja Matriz de Cachoeira, em 21 de fevereiro de 1866, quase três anos depois de seu nascimento, ocorrido em Caçapava no dia 19 de novembro de 1863.

Borges de Medeiros, especialmente com seu apadrinhado João Neves da Fontoura, que o defendeu em sessão da assembleia dos representantes nos primeiros dias de janeiro de 1923, foi impulsionador de grandes obras em Cachoeira, concedendo apoio político e aporte financeiro do estado para sua realização.

Borges de Medeiros - MMEL

O segundo vulto de destaque na revolução de 1923 foi Honório Lemes da Silva, o Leão do Caverá, único dos três nascido em Cachoeira. Honório Lemes era um ano mais jovem que Borges de Medeiros e nascido no Barro Vermelho em 23 de dezembro de 1864. Mudou-se cedo para Rosário do Sul e seu ofício de tropeiro tornou-o hábil nos caminhos da intrincada Serra do Caverá, onde se entranhava com seus seguidores desde a revolução de 1893. Sua astúcia e conhecimento da geografia da região foram fundamentais para os intentos das guerrilhas de que participou.

Honório Lemes da Silva - www.claudemirpereira.com.br

O terceiro personagem ligado a Cachoeira na revolução de 1923 foi o dentista, fotógrafo e cinegrafista Benjamin Celestino Camozato, nascido em Porto Alegre em 19 de maio de 1885, ou seja, mais de vinte anos mais moço que Borges e Honório. Residente em Cachoeira desde a metade da década de 1910, o inquieto e criativo Dr. Benjamin Camozato ganhou fama e conhecimento na cidade em que nasceram os seus três filhos, Walmor, Wanda e Weimar, e muitos de seus empreendimentos foram desenvolvidos. 

Benjamin entrou para a história da revolução de 1923 por ter produzido o único filme existente sobre a contenda, um curta-metragem. Durante quase todo aquele ano ele percorreu o Rio Grande do Sul fazendo registros dos partidários de Borges de Medeiros, ou chimangos, e dos defensores de Assis Brasil, ou maragatos. A imprensa de Cachoeira registrou toda a movimentação de Camozato, inclusive as exibições da "fita" em vários lugares do Brasil e do estado. 

Benjamin Camozato - acervo familiar

Estes três homens teceram laços profundos com Cachoeira, ainda que Honório Lemes tenha sido dentre eles o único cachoeirense e, ao contrário dos demais, o que menos tempo tenha vivido por aqui. Borges de Medeiros mantinha uma rotina de idas e vindas entre Porto Alegre e Cachoeira, onde se internava na Estância do Irapuazinho, de sua propriedade no interior do município, para onde se retirou depois que findou sua trajetória política. Camozato tomou o rumo de Porto Alegre, lá abrindo seu consultório de odontologia, mantendo permanente vínculo com Cachoeira.

Três homens, três trajetórias, a revolução de 1923 como interseção com Cachoeira.