Espaços urbanos

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Ponte do Fandango - foto Robispierre Giuliani

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Série Lojas do Passado: José Dini & Cia.

José Dini - Monte Domecq (1916)

Da Toscana, Itália, para o Brasil. Este foi o caminho tomado pelo italiano Giuseppe Dini, natural de Castiglione di Garfagnana, em 1886. Contava 24 anos quando, depois de percorrer diversas cidades como mascate, estabeleceu-se em Cachoeira com comércio em 1890. No ano de 1914, admitiu como sócio o seu gerente, o uruguaio de ascendência italiana Julio Castagnino, com quem trabalhava desde 1910. 

A casa comercial de José Dini & Cia., como várias de sua época em Cachoeira, comercializava de tudo um pouco. Desde secos e molhados, louças, ferragens, produtos coloniais até gêneros e equipamentos importados. Com o fim da Primeira Grande Guerra, além dos produtos convencionais, passou a trabalhar com importação. Tornou-se, em 1919, agente de automóveis da fábrica italiana Fiat para Cachoeira, Caçapava e São Sepé. Incluiu no catálogo de gêneros as afamadas farinhas de trigo argentinas das marcas Sublime e Imperial. Mantinha também um depósito de fumo em corda.

Cartaz de propaganda da loja José Dini & Cia. - AHMCS

O endereço da José Dini & Cia. era a Rua 7 de Setembro, esquina com a Rua Major Ourique, rivalizando com outras que se localizavam na artéria principal da cidade, nas adjacências da Estação Ferroviária ou do Mercado Público.

Casa comercial de José Dini & Cia., à direita (década de 1920) - Coleção Claiton Nazar

Em 1912, quando a Intendência Municipal passou a comercializar terrenos para a abertura do Bairro Rio Branco, o italiano José Dini adquiriu um na recém-aberta Rua Comendador Fontoura, assim como Augusto Wilhelm, José Fernandes, Victor Menezes, Jeronymo Brandes, a viúva de José Müller, uma das suas concorrentes no ramo comercial, Odon Cavalcanti e João Neves da Fontoura.

Com a retirada espontânea de Julio Castagnino da sociedade em 1921, José Dini ainda seguiu com seu negócio até 1927, quando encerrou atividades.  

Além dos filhos Eugênio e Mansueto, que o auxiliavam na loja, José Dini era pai de João, Martin e Antônio. Seu falecimento, em Cachoeira, foi no dia 30 de dezembro de 1930.

domingo, 25 de agosto de 2024

A revolução de 1923 e três personalidades ligadas a Cachoeira

Cachoeira é daqueles lugares que nasceram para figurar no mapa como terra ligada aos principais acontecimentos históricos. E ainda que a sua economia e outros aspectos da vida comunitária tenham mudado muito no último século, mesmo assim a sua relevância se sustenta no protagonismo de seus filhos ou dos homens e mulheres que aqui viveram e fizeram história.

A revolução de 1923 é uma mostra disto. Três figuras de relevo daquele acontecimento que convulsionou o estado de janeiro a dezembro daquele ano, tiveram laços fortes com Cachoeira.

O primeiro deles, Antônio Augusto Borges de Medeiros, cuja eleição para mais um mandato estadual foi o estopim do movimento revolucionário, congregando os opositores políticos em torno do nome de Joaquim Francisco de Assis Brasil, tinha vínculos familiares com Cachoeira. Sua mãe, Miguelina, era cachoeirense e irmã mais velha do Coronel Horácio Borges. Talvez por isto, o menino tenha sido batizado na Igreja Matriz de Cachoeira, em 21 de fevereiro de 1866, quase três anos depois de seu nascimento, ocorrido em Caçapava no dia 19 de novembro de 1863.

Borges de Medeiros, especialmente com seu apadrinhado João Neves da Fontoura, que o defendeu em sessão da assembleia dos representantes nos primeiros dias de janeiro de 1923, foi impulsionador de grandes obras em Cachoeira, concedendo apoio político e aporte financeiro do estado para sua realização.

Borges de Medeiros - MMEL

O segundo vulto de destaque na revolução de 1923 foi Honório Lemes da Silva, o Leão do Caverá, único dos três nascido em Cachoeira. Honório Lemes era um ano mais jovem que Borges de Medeiros e nascido no Barro Vermelho em 23 de dezembro de 1864. Mudou-se cedo para Rosário do Sul e seu ofício de tropeiro tornou-o hábil nos caminhos da intrincada Serra do Caverá, onde se entranhava com seus seguidores desde a revolução de 1893. Sua astúcia e conhecimento da geografia da região foram fundamentais para os intentos das guerrilhas de que participou.

Honório Lemes da Silva - www.claudemirpereira.com.br

O terceiro personagem ligado a Cachoeira na revolução de 1923 foi o dentista, fotógrafo e cinegrafista Benjamin Celestino Camozato, nascido em Porto Alegre em 19 de maio de 1885, ou seja, mais de vinte anos mais moço que Borges e Honório. Residente em Cachoeira desde a metade da década de 1910, o inquieto e criativo Dr. Benjamin Camozato ganhou fama e conhecimento na cidade em que nasceram os seus três filhos, Walmor, Wanda e Weimar, e muitos de seus empreendimentos foram desenvolvidos. 

Benjamin entrou para a história da revolução de 1923 por ter produzido o único filme existente sobre a contenda, um curta-metragem. Durante quase todo aquele ano ele percorreu o Rio Grande do Sul fazendo registros dos partidários de Borges de Medeiros, ou chimangos, e dos defensores de Assis Brasil, ou maragatos. A imprensa de Cachoeira registrou toda a movimentação de Camozato, inclusive as exibições da "fita" em vários lugares do Brasil e do estado. 

Benjamin Camozato - acervo familiar

Estes três homens teceram laços profundos com Cachoeira, ainda que Honório Lemes tenha sido dentre eles o único cachoeirense e, ao contrário dos demais, o que menos tempo tenha vivido por aqui. Borges de Medeiros mantinha uma rotina de idas e vindas entre Porto Alegre e Cachoeira, onde se internava na Estância do Irapuazinho, de sua propriedade no interior do município, para onde se retirou depois que findou sua trajetória política. Camozato tomou o rumo de Porto Alegre, lá abrindo seu consultório de odontologia, mantendo permanente vínculo com Cachoeira.

Três homens, três trajetórias, a revolução de 1923 como interseção com Cachoeira.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Cemitério a perigo!

Engana-se quem pensa que a situação em que se encontra atualmente o Cemitério das Irmandades seja inédito. O desmoronamento do barranco em que ele foi em parte assentado é um processo que vem ocorrendo há bastante tempo, causando dores de cabeça aos gestores e à comunidade, especialmente à católica. Tal condição limita em muito a capacidade daquele campo santo receber novos sepultamentos, praticamente inviabilizando os serviços que oferece. E é esta situação especificamente que não apresenta ineditismo, pois em outros momentos de seus quase duzentos anos de história o Cemitério das Irmandades esteve cheio e foi alvo de reclamações da população e autoridades.

Desmoronamento no Cemitério das Irmandades - foto Rádio Cachoeira

Em 5 de março de 1887, segundo documento que está preservado no Arquivo Histórico, a Câmara Municipal, então o aparelho administrativo da época, estava empenhada em construir um novo cemitério em Cachoeira, pois o mantido pelas Irmandades estava com sua capacidade de sepultamentos esgotada. A questão era inquietante. Os vereadores necessitavam definir logo a situação e encontrar um lugar conveniente e acessível, que favorecesse a condução dos corpos e que atendesse aos preceitos de higiene, uma vez que o Cemitério das Irmandades, além de ser "propriedade das irmandades religiosas, (...) é situado dentro da cidade e está completamente cheio, tornando-se já difícil nele os enterramentos".

Como era prática administrativa na época, foi formada uma comissão de cidadãos para escolher um "local apropriado nos subúrbios desta cidade" (CM/S/SE/RE-011, fl. 28). Os nomeados foram: Dr. Affonso Pereira da Silva, Dr. Caetano Ignacio da Silva, Dr. Candido Alves Machado de Freitas e os vereadores João Jorge Krieger, Crescencio da Silva Santos e João Thomaz de Meneses Junior. 

A comissão havia sido escolhida com critério, pois integravam-na médicos (Affonso Pereira da Silva, Caetano Ignacio da Silva e Candido Alves Machado de Freitas), o homeopata João Jorge Krieger e o construtor Crescencio da Silva Santos. Eram, pois, homens que tinham condições de promover uma boa escolha, pois estavam capacitados para levar em consideração as questões de higiene pública e também próprias de erguimento da obra. 

As tratativas e o início das obras redundaram na construção do Cemitério Municipal, inaugurado em 1891. Naquele ano, no dia 17 de agosto, os integrantes da junta governativa do município (após a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, já não era mais a Câmara Municipal o aparelho administrativo, e sim uma comissão de cidadãos nomeados para gerenciar as questões municipais) enviaram uma correspondência ao Arcediago Vicente Dias Lopes, vigário da Paróquia de Cachoeira, comunicando achar-se pronto e aprovado o novo cemitério, solicitando que "vos digneis ordenar às respectivas irmandades que desde esta data façam cessar os sepultamentos no antigo cemitério, atendendo-se assim as conveniências da salubridade e interesse público." (CM/S/SE/RE-011, fls. 144v). Também o delegado de polícia, Liberato Vieira da Cunha, recebeu comunicado de abertura e aprovação do Cemitério Municipal (CM/S/SE/RE-011, fl. 145) e a recomendação de que nos seus despachos relacionados a sepultamentos que ordenasse fosse ouvido o secretário do município para que este avisasse o zelador do cemitério (CM/S/SE/RE-011, fls. 146v a 147v).

Pórtico do Cemitério Municipal - COMPAHC

A resposta da Igreja foi de que não se opunham aos sepultamentos no Cemitério Municipal, mas que desejavam que fosse "aberto uma parte dele e que seja colocado o símbolo da religião católica, que ainda não foi desprezada pelo povo, e que não podem em face da lei que garante o culto dos mortos deixar em abandono o cemitério religioso para nele enterrarem os corpos de seus irmãos que fizerem parte de seu governo, e por existirem nele muitos despojos que suas famílias veneram, sobre túmulos e jazigos perpétuos, nos quais desejam ser também ali depositados." A junta, por sua vez, afirmou ter ficado "emocionada por essas tiradas de beatitude dos nossos caríssimos irmãos, tendo o prazer (...) de vos comunicar que nunca cogitou de entorpecer ou embaraçar as demonstrações religiosas, e podemos dizer que foi também este sentimento de veneração a Deus, à memória dos Santos e dos finados em geral que motivou a construção do novo cemitério para ficar a cargo da administração municipal." 

E, depois das saudações à atitude da Igreja, as autoridades municipais desandaram: "Vós sabeis, todos sabem, a forma vergonhosa por que tem sido tratados os restos mortais de nossos irmãos" e solicitam ao arcediago que "fazei saber a essa diretoria a indignação de que devem achar-se possuídos estes entes que veneramos ao contemplar o quadro asqueroso, brutal que oferece o velho cemitério. Eles (os entes) que vivem no céu desfrutando os gozos que o Criador oferece aos justos verem seus despojos numa promiscuidade horrível, na maior desordem, confusão e desleixo. Tende a bondade de fazer saber a esses três irmãos diretores, responsáveis por estes horrores, o castigo que o Criador lhes há de infligir, se não fizerem rigorosa penitência por causa deste grande pecado, e quem sabe talvez de outros." O ofício da junta prossegue dizendo que é mais religiosa que a diretoria das irmandades, "não consentindo mais sepultamentos neste meio horroroso, quiçá pestífero e sem dúvida prejudicialíssimo aos habitantes desta cidade". E finaliza deixando as irmandades livres para reabilitarem-se com o público, promovendo as obras necessárias para que o velho cemitério seja melhorado e conservado (CM/S/SE/RE-011, fls. 146v a 147v).

Tais documentos provam que a situação atual do Cemitério das Irmandades, apesar de não estar relacionada com questões de higiene e cuidado com os serviços que oferece, não é inédita no embate surgido entre as autoridades e seus mantenedores, tampouco no esvaziamento de possibilidades de seguir recebendo os corpos dos falecidos. A questão agora é de risco de colapso daquele campo santo, sendo iminente o seu sepultamento definitivo no leito do Jacuí se providências não forem tomadas. Mais do que isto, o Jacuí engolirá também todas as histórias, os monumentos erguidos em homenagem aos mortos e uma infinidade de exemplares de arte cemiterial de valor inigualável, abalando ainda as importantes e necessárias estruturas que ficam nas suas imediações. 


Destruição de túmulos pela erosão do terreno - fotos Jornal do Povo

domingo, 30 de junho de 2024

João do Adro

Dos poetas espera-se lirismo, encantamento, palavras escolhidas para tocar o coração. Tristeza, alegria, amor, desencanto e todo tipo de sentimento pode servir de inspiração para estes seres que têm o dom de despertar em nós divagação e até estranhamento.

Alguns poetas (e aqui o termo é generalista) deixam um legado de amplo espectro. João do Adro é um deles. Mas quem é João do Adro? Era um jovem poeta que na igreja enamorou-se de uma moça. Um belo dia, encorajado pelo coração, escreveu-lhe um bilhete, assinando-o com o pseudônimo João do Adro. Deduz-se pelo apelido que o moço ficava em frente à igreja esperando por sua amada.

Nilo Fernandes Barbosa, o terceiro sentado à mesa - MMEL

João do Adro era Nilo Fernandes Barbosa e a moça se chamava Marina. 

Mas o interessante do pseudônimo João do Adro é que Fernandes Barbosa o utilizava quando escrevia sobre assuntos graves e sérios, tratando-os com linguagem mais severa e combativa. Os amores, galanteios, assuntos cotidianos e regionalistas eram assinados pelo Fernandes Barbosa.

Sobre ele mesmo e o seu pseudônimo, escreveu em 1968:

O Fernandes girondino

E João do Adro jacobino

Moram juntos, num galpão...

Basta um ser ofendido,

Para que os dois, sem partido,

Ergam a luva do chão!

Nilo Fernandes Barbosa nasceu em Rosário do Sul no dia 5 de fevereiro de 1912. Seus pais eram Antônio Fernandes Barbosa e Ana Rita Jacques Fernandes Barbosa. Veio para Cachoeira na infância, tendo aqui cursado o primário com professores de renome, como Alzira Carlos e Antonieta Gouvêa. Em 1929, foi um dos primeiros alunos a ser matriculado no Colégio dos Maristas, naquele ano instalado. Tinha 17 anos e era o mais velho dos alunos a ingressar no novo estabelecimento de ensino.

Depois do Colégio Marista seguiu para Porto Alegre, onde entrou no Colégio Militar. Sem vocação para a vida nas armas, iniciou-se por lá na literatura, escrevendo para uma revista do colégio. Foi o primeiro passo para rumar ao jornalismo, empregando-se como revisor do jornal Diário de Notícias.

De volta a Cachoeira, passou a trabalhar com Virgílio de Abreu e Mário Godoy Ilha, fundadores do Jornal do Povo, colaborando também com O Commercio, O Cachoeirense e o Correio do Povo, de Porto Alegre.

Para falar sobre a obra de Fernandes Barbosa é preciso, em primeiro lugar, falar sobre a fluência e a extrema habilidade com o uso das palavras. A qualidade de seus trabalhos e a pluralidade de temas redundaram em várias obras publicadas, quase todas às suas expensas, algumas delas premiadas em concursos literários promovidos pela revista Alterosa, de Minas Gerais, e do Globo, de Porto Alegre.

A vida do "Poeta", como ficou conhecido na cidade, ou João do Adro, como assinava vez ou outra, não era só de poesia. Aventurou-se na orizicultura e foi funcionário público municipal, tendo desempenhado o importante cargo de Diretor da Instrução Pública Municipal, correspondente hoje à Secretário de Educação, e dirigiu a Biblioteca Pública Municipal "Dr. João Minssen" por vários anos. 

Quem o conheceu, certamente lembra de vê-lo postado à porta do Jornal do Povo, órgão da imprensa cachoeirense em que certamente mais publicou seus poemas. Dizem que o nível de exigência com a correção de seus escritos era tão grande, que muitas vezes ele se postava na redação, próximo ao linotipista, para conferir se não haveria troca nas letras ou qualquer erro em suas produções, o que não admitia e cobrava veementemente. Para entendimento dos que não viveram o tempo da composição manual das páginas, a figura do linotipista era a do funcionário do jornal que montava uma a uma as palavras até que a página estivesse completa. Uma trabalheira só!

Frutinha proibida foi a sua primeira obra (1938) e reúne poemas produzidos na juventude, especialmente no Colégio Militar. Depois veio Minhas flores de jacarandá (1944), revelando um poeta mais maduro, Os gatos e o remédio (1949), mais tarde Súplica ao Negrinho do Pastoreio (1959) e outras, como Sepé - o morubixaba rebelde, todas dignas de análise apurada pelo valor literário e estilístico.

Fernandes Barbosa casou com a moça que paquerava no adro da Igreja Matriz e com ela teve quatro filhos: Danton, Barnave, Ana Rita e Ana Maria. Faleceu em 10 de outubro de 1988, legando à cidade onde viveu uma obra riquíssima, especialmente a dispersa nos exemplares dos jornais e que merece ser resgatada, permitindo constatar o talento e a versatilidade do "Poeta" que andava sempre de terno, gravata, chapéu e óculos escuros, mantendo a fleuma e o porte daqueles que enxergam o mundo com a ótica da razão sem desprezar o que lhes vai no coração.

Nilo Fernandes Barbosa (1988) - Jornal do Povo

Agradecimentos à Simone Fernandes Barbosa, neta, pela revelação do emprego do pseudônimo João do Adro.

Informações literárias em: O público e o privado na obra de Fernandes Barbosa, de Ellen dos Santos Oliveira. Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras