Espaços urbanos

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Ninfas do Château d'Eau - foto Robispierre Giuliani

segunda-feira, 31 de março de 2025

A Cachoeira de 1915

Em tempos muito diferentes dos nossos, quando comunicação instantânea e redes sociais estavam muito longe de se tornarem ferramentas do cotidiano, jornais, periódicos, relatórios de governantes e almanaques costumavam publicar dados estatísticos dos municípios, nos quais se incluíam de aspectos urbanos a aspectos morais. 

O jornal O Commercio, edição de 5 de janeiro de 1916, traz dados do município de Cachoeira preparados e difundidos através do Relatório de Estatística da Intendência Municipal relativos ao ano de 1915, quando estava no posto de mandatário municipal o vice-intendente em exercício, Capitão Francisco Gama. O encarregado do serviço de estatística era então Mário Godoy Ilha, que os apresentou em 17 de setembro de 1915. 

O relatório diz o que segue:

ESTATÍSTICA PREDIAL: A cidade, com as duas zonas – urbana e suburbana – tinha, em 1.º de setembro de 1914, 1.281 prédios. Dessa data à sua igual de 1915 construíram-se 71, somando, portanto, a 1.352 as casas existentes.


Aspecto da Rua 7 de Setembro em 1914 - MMEL

Uma confrontação interessante dão as cifras abaixo dos prédios construídos nos últimos anos:

1910 – 16

1911 – 44

1912 – 66

1913 – 98

1914 – 50

1915 – 54

Soma: 328

Os construídos em 1915 são: de madeira 32, de alvenaria 22; nesse ano fizeram-se ainda 25 aumentos, reconstruções e reparos, 10 galpões e nove muros.

ESTATÍSTICA DEMOGRÁFICA: População – era em 1913, a 31 de dezembro, de 44.239 almas, a qual adicionando-se 1.526 unidades, do excesso fisiológico, atinge para 1915 a 45.765, sendo 23.027 homens e 22.738.

Pelos distritos, esta população está assim distribuída:

1.º distrito (sede e arrabaldes) – 10.016

2.º distrito – 4.611

3.º distrito – 2.862

4.º distrito – 4.778

5.º distrito – 6.841

6.º distrito – 9.666

7.º distrito – 6.991

Soma: 45.765

Tomando por base a densidade predial de 6,6 encontrada no ano anterior, tem a cidade 8.923 almas.

Registro Civil – registraram-se em 1914 1.928 nascimentos contra 1.478 de 1913, ou seja, mais 450. Eram homens 999 e mulheres 929.

Pelos distritos municipais, os nascimentos ficaram distribuídos deste modo:

1.º distrito – 834

2.º distrito – 84

3.º distrito – (não informou)

4.º distrito – 65

5.º distrito – 285

6.º distrito – 474

7.º distrito – 186

Soma: 1928

Quanto à filiação:

São filhos legítimos – 1.678

São filhos ilegítimos – 250

Soma: 1928

Nacionalidade dos pais:

Brasileiro e brasileira – 1.506

Brasileiro e alemã – 23

Brasileiro e diversas – 5

Alemão e brasileira – 43

Alemão e alemã – 54

Alemão e diversas – 4

Italiano e brasileira – 11

Italiano e italiana – 251

Diversos e brasileira – 22

Diversos e diversas – 10

Soma: 1.928

Nasceram:

De dia - 988

De noite – 940

Soma: 1.928 

Realizaram-se 330 casamentos ou menos 92, sendo 439 nubentes alfabetos e 221 analfabetos.

A mortalidade decresceu sensivelmente, fato digno de nota que evidencia a excelência do estado sanitário do município.

Óbitos de 1912 – 602

Óbitos de 1913 – 498

Óbitos de 1914 – 402

Por distrito, os óbitos deste último ano estão assim subdivididos:

1.º distrito – 120 homens, 97 mulheres, total 317

2.º distrito – 3 homens, 2 mulheres, total 5

3.º distrito – (não informou)

4.º distrito – 3 homens, 5 mulheres, total 8

5.º distrito – 31 homens, 31 mulheres, total 62

6.º distrito – 36 homens, 34 mulheres, total 70

7.º distrito – 24 homens, 16 mulheres, total 40

Das 402 pessoas que faleceram em 1914, 244 eram solteiros, 113 casados, 44 viúvos e um de estado ignorado.

Quanto à nacionalidade:

Brasileiros – 302

Italianos – 53

Alemães – 39

Família do austríaco Ernesto Müller foi uma das que entrou na estatística
- Acervo Família Ernesto Müller

Diversos – 7

Ignorado – 1

Soma: 402

Na cidade observaram-se as mesmas condições de letalidade:

Em 1912 – 231

Em 1913 – 219

Em 1914 – 217

As classes de moléstias que mais concorreram para o obituário geral foram as gerais, com o coeficiente de 52 casos e delas a tuberculose com 27.

ESTATÍSTICA ECONÔMICA: A área de agricultura está calculada em 200.000 hectares e computado o valor da produção em 11.500:000$000. Os vegetais, que na safra de 1914/1915 acusam maiores colheitas, são os seguintes:

Arroz – 431.328 sacos

Feijão – 60.500 sacos

Milho – 530.000 sacos [sic] *Deve ser 53.000

Fumo – 80.000 arrobas

Lavoura de arroz com calha de irrigação - MMEL

A exportação municipal do ano de 1914 é representada pelo valor oficial de 5.839:932$000, muito inferior em confronto com a do período passado. Pelo seu valor comercial, o verdadeiro, pois é certo que os gêneros tiveram grande alta, a exportação, sem exagero, produziu 9.650:000$.

A riqueza pastoril, de 17.540:091$500, parte essencial da vida financeira do município, é assim representada:

Vacum – 305.120 cabeças

Cavalar – 46.500 cabeças

Muar – 3.580 cabeças

Lanígero – 33.225 cabeças

Suínos – 41.030 cabeças

Caprino – 1.414 cabeças

Soma: 430.869

ESTATÍSTICA INTELECTUAL:

Instrução: o ensino é ministrado por um estabelecimento de cursos secundários, 36 escolas estaduais, 27 municipais, 24 particulares subvencionadas pelo município e 30 particulares isolados. A frequência tem progredido, ano a ano. A matrícula de 1915 em todos os estabelecimentos escolares era de 4.589 alunos, sendo 828 dos municipais, 681 dos subvencionados, 1.476 dos estaduais e 1.599 dos particulares.

Colégio Alemão-Brasileiro, inaugurado em 1914 - MMEL

Havendo uma população com idade escolar de 9.449, ainda 4.860 crianças não frequentam escolas, ou seja a alta percental de 56%.

ESTATÍSTICA MORAL:

Criminalidade: À cadeia civil desta cidade foram recolhidos, de setembro de 1914 a setembro de 1915, pelas causas adiante enumeradas, 121 indivíduos, ou menos 86, se confrontarmos com o igual período anterior. Assim obtemos:

Homicídios - 9 em 1913/1914 e 5 em 1914/1915

Tratativas de homicídio - nenhuma em 1913/1914 e 4 em 1914/1915

Lesões corporais – 5 em 1913/1914 e 18 em 1914/1915

Defloramento – 1 em 1913/1914 e 4 em 1914/1915

Roubo – 9 em 1913/1914 e nenhum em 1914/1915

Furto – 3 em 1913/1914 e 11 em 1914/1915

Moeda falsa – 1 em 1913/1914 e nenhuma em 1914/1915

Desordem – 113 em 1913/1914 e 57 em 1914/1915

Desobediência – 20 em 1913/1914 e 11 em 1914/1915

Ofensas à moral – 4 em 1913/1914 e 3 em 1914/1915

Embriaguez – 21 em 1913/1914 e 6 em 1914/1915

Vadiagem – 4 em 1913/1914 e nenhuma em 1914/1915

Loucura – 4 em 1913/1914 e 2 em 1914/1915

Averiguações – 13 em 1913/1914 e nenhuma em 1914/1915

Soma: 207 em 1913/1914 e 121 em 1914/1915

 (Fonte: Jornal O Commercio, Cachoeira, Ano XVII, N.º 840, de 5 de janeiro de 1916, p. 1)

Como se vê, pelos dados acima transcritos, a seção de estatística da Intendência fazia uma radiografia do município, servindo-se para isto das informações recebidas dos subintendentes dos distritos. Aliás, percebe-se a enorme importância da zona distrital, ou colonial, perdida pelo município a partir da segunda metade da década de 1950, o que justifica e materializa o descenso populacional e o decréscimo econômico de Cachoeira verificado a partir de então.

Relatórios como este são capazes de transportar no tempo, assim como reforçar o quanto as ações do passado ditam o presente e o futuro.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Coliseu Cachoeirense X Cine-Teatro Coliseu

Muitas vezes as pessoas fazem confusão entre dois cinemas que existiram em Cachoeira, muito provavelmente porque ambos tinham Coliseu no nome. A localização também colabora para reforçar o imbróglio, pois  ambos estavam situados na Rua 7 de Setembro. Ainda que um tivesse que morrer para o outro poder nascer, por um tempo houve convivência marcada pela desigualdade. Enquanto um era erguido com tudo que havia de mais moderno para uma casa de cinema, o outro estava instalado em um barracão que foi sendo paulatinamente abandonado à própria sorte. 

Mas havia outro traço em comum entre os dois cinemas: o último proprietário do mais velho, associado a outro empreendedor, lançou-se à construção do mais novo, cujo prédio ainda existe e é tombado como patrimônio histórico-cultural. 

Henrique Comassetto - Coleção Família Carvalho Bernardes

O primeiro, chamado Coliseu Cachoeirense, com origem no antigo Cinema Familiar, fundado em 1910 pelos irmãos Pohlmann, ocupava um barracão postado na esquina da Praça José Bonifácio com a Rua Andrade Neves. Sua entrada se dava pela Avenida das Paineiras, que era o trecho da Rua 7 de Setembro fronteiro à Praça José Bonifácio, então circundada por fileira destas árvores, daí a denominação popular.

Avenida das Paineiras - Coleção Claiton Nazar

O segundo, chamado Cine-Teatro Coliseu, foi inaugurado em 17 de fevereiro de 1938 e pertencia aos sócios Henrique Comassetto, que havia sido o último proprietário do Coliseu Cachoeirense, e Algemiro Carvalho.  Mas o nome Coliseu não parece ter sido a primeira opção para o novo empreendimento, pois a imprensa cachoeirense, em 1937, publicou enquete para os leitores sugerirem nomes para a casa de espetáculo em construção, estando dentre as sugestões a de Cinema Central.

Avenida das Paineiras movimentada pelo Coliseu Cachoeirense - Coleção Claiton Nazar

Interior do Cinema Coliseu Cachoeirense (1922) - foto Benjamin Camozato


Uma das últimas fotos do Coliseu Cachoeirense - Coleção Claiton Nazar


O prefeito Reinaldo Roesch descerrando a fita do novo Cine-Teatro Coliseu - 17/2/1938 - MMEL

Cine-Teatro Coliseu - Coleção Aldo Penna

Escadaria de entrada do Cine-Teatro Coliseu no dia do seu primeiro aniversário - 17/2/1939 - MMEL

Interior do Cine-Teatro Coliseu - 1960 - Coleção Família Carvalho Bernardes

Letreiro do tombado Cine-Teatro Coliseu - foto Renato Thomsen
                    

O fato é que o zum-zum-zum da inauguração de um novo e luxuoso cinema fez com que o velho Coliseu Cachoeirense, já bastante depauperado, ficasse quase às moscas, sem maiores atrações, sem nenhuma manutenção.

Para demonstrar, de forma poética, o drama do velho barracão, outrora tão cheio de vida e ponto de atração da cidade, foi publicado no jornal O Coringa*, de Cachoeira, no dia 1.º de janeiro de 1937, o seguinte lamento:         

Lamento do Coliseu Cachoeirense

Gente ingrata

Noite de lua cheia.

Por volta das 10 horas, a massa humana que enchia o Coliseu jorrou pelas bocas, imprimindo fugaz animação às ruas do centro.

Do banco onde me achava, vi passarem apressados alguns pares, a rápida quietude em que tudo de novo caiu mais realçou a sensação de tristeza que havia em torno.

O luar e o calor eram meus companheiros.

Aproximei-me do grotesco casarão, cujo telhado irradiava com luxos de abundância os reflexos do satélite noturno.

Parecia-me estar só na praça; subitamente ouvi estranho soluçar e percebi que alguém, próximo, mal retinha sentido pranto; às vezes dizia baixinho algumas palavras, cujo sentido não conseguia apreender.

Rebusquei em torno: ninguém.

- Quem está chorando? – Perguntei a esmo, e – pasmem-se – do interior do velho prédio uma voz cavernosa, soturna, me atendeu:

- Eu, moço; não posso mais suportar em silêncio a ingratidão que me fazem...

- Mas pobre Coliseu, que se passa contigo? Por que chora? – Ah! o senhor não é daqui, e por isso não poderia me compreender; sente-se aí nesse banco que lhe contarei minha história. Quero desabafar tanta mágoa que me vai n’alma e só lhe peço julgar se tenho ou não razão! Estava intrigadíssimo: fiz-lhe a vontade e ele prosseguiu, num tom cavo, repassado de dor.

... – Há vinte e poucos anos aqui me puseram os homens desta terra e a minha aparição foi saudada com entusiasmo por todos, crianças, velhos e principalmente moços, pois eu representava a alegria mesma, a diversão indispensável, o melhor lugar onde passar algumas horas satisfeito.

Vivi muitos anos de felicidade; traziam-me sempre enfeitado, limpinho e me via prestigiado pelos bons cachoeirenses; ansiava para que viesse logo a noite a fim de recolher em meu bojo o povo ao qual dispensava um amor quase paternal, tanto o queria...

Mas vieram os anos; começaram, aos poucos, a se descuidarem de minhas paredes, do assoalho, poltronas mal substituídas; nenhuma pintura nova, limpezas mal feitas, até que, - supremo ultraje – as pulgas invadiram-me o corpo todo, transformando meu viver num constante desespero.

E,  não é só: as chuvas conseguiram franquear passagem pela minha cúpula; roeram-me os meus alicerces e denegriram minhas paredes. Eu, sozinho, lutei desesperadamente contra essa invasão de elementos destruidores; resisti quanto pude à sanha demolidora, na esperança de um socorro oportuno de meus patrões, até que, - ironia cruel – numa terrível noite, por uma conversa que ouvi, fiquei sabendo que eles haviam decidido maldosamente o meu desaparecimento!

Abafou um soluço que mais parecia um trovejar longínquo e retornou, magoado:

- Vou morrer, seu moço, e por quê?... Porque estou velho e não sirvo mais, não?... Mas quanta gente há por aí que tanto mais estimada se torna quanto mais envelhece? O tio Luiz, por exemplo... ou será por que ocupo muito espaço?...  mas... e o Ernesto Krieger?...

O senhor não acha que será crueldade? Depois se ao menos eu pudesse dizer como o general romano – “ingrata gente, não possuirás meus ossos” – seria um consolozinho, mas tenho quase certeza que o Nicolau já contou minhas tábuas, para ver por quantos meses ainda servirei de combustível...

Por cúmulo, venho suportando as zombarias do que me vai substituir; o miserável não fora de pedra e cal, tem-se mostrado de um cinismo desumano para comigo e, à medida que se alçam suas paredes, lança-me indiretas e ri-se com desdém de minha decrepitude, orgulhoso de sua estrutura.

O vil nem se apercebe de que um dia, quiçá daqui a quantos anos, ele também... mas... não falemos dele.

Recolheu-se por um momento e, como em delíquio, pôs-se a engrolar, em surdina, palavras ininteligíveis; ora eu percebia um sentido lamento, ora uma injúria acovardada aos seus algozes.

Quis tirá-lo desse devaneio, para que prosseguisse, quando surgiu à esquina do Província o Eliseu e outros patativos.

Estava desfeita a confidência; em vão aguardei que se fosse dali; em vão tentei reanimar aquele arcabouço que me falara; mergulhara no indiferentismo das coisas inanimadas.

Vai esperar a morte...

E a morte veio, o barracão foi abaixo e hoje só restam dele meia dúzia de fotografias e algum bom número de reclames das velhas fitas, muitas delas ainda do tempo do cinema mudo, quando o pianista Curt Dreyer dava o tom à história que rodava na telona. 

E o mais interessante é que o Coliseu que ganhou voz e chorou suas mágoas ao solitário homem sentado no banco da praça vaticinou que o novo que se erguia um dia poderia passar pelo que ele estava passando. Foi a mais pura verdade! Por anos a fio o Cine-Teatro Coliseu ficou em flagrante perigo de desmoronar ou ser demolido, o que felizmente não aconteceu, permitindo que hoje contemos a história dos dois cinemas de nome Coliseu, cada um com seu valor e importância. Cada um marcando para sempre a memória do cinema em Cachoeira do Sul.

* Em próxima postagem, informações sobre o jornal O Coringa. Aguarde

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

O alvorecer de 1925

Cachoeira, janeiro de 1925. A cidade ainda lambia as feridas pela morte do benquisto Dr. Balthazar Patrício de Bem, alvejado mortalmente, em 10 de novembro de 1924, no Barro Vermelho. Seu desaparecimento, além do drama familiar, causou sérios embaraços aos negócios da família e muito especialmente à política. Como escreveu João Neves da Fontoura em suas Memórias, volume I: "Sua morte abriu um claro profundo na sociedade cachoeirense."

João Neves não sentira a morte de Balthazar apenas como a perda de um amigo pelo qual nutria afeição, ou pelo médico que o aconselhava nas questões de sua fraqueza pulmonar, mais do que isto, ficara sozinho na direção política de Cachoeira. O triunvirato, integrado por ele, pelo falecido Balthazar e por Annibal Loureiro, que foi viver em Itaqui, estava desfeito, desmantelando a comissão executiva do Partido Republicano local. O intendente municipal, Francisco Fontoura Nogueira da Gama, de coração frágil, afastava-se seguidamente de suas funções. Balthazar também era o vice. As peças necessitavam ser repostas e o presidente do estado, Borges de Medeiros, precisou movimentá-las antes do esperado.

Os doutores Balthazar de Bem e João Neves da Fontoura - O Rio Grande do Sul (1922)

Política à parte, a cidade seguia registrada nas páginas do jornal O Commercio, que saía todas as quartas-feiras. Chegadas e partidas, aniversários, celebrações de toda ordem, proclames comerciais, sociais e religiosos ocupavam os espaços do órgão comercial, literário e noticioso. 

Nos reclames, destaque para seguros da Companhia Ítalo-Brasileira de Seguros Gerais, cujo agente em Cachoeira era José Cidade Ilha; aos produtos variados da Agência Bromberg & Cia.; ao legítimo sal mossoró distribuído por Conrado Zimmer e ao carrapaticida Ideal, o mais acreditado produto do gênero, oferecido pela Casa Fialho. Roupas, tecidos, aviamentos, chapéus e calçados podiam ser encontrados na Alfaiataria Elegante, de Husek & Motta; na Chapelaria e Alfaitaria Santos, de Bopp & Cia.; na Casa da Bandeira Branca, de Haguel Botomé; na Casa Kraide, de Abud J. Kraide. Se o freguês precisasse de fumo em corda, devia dirigir-se à casa de Camillo J. Ache, na Rua Saldanha Marinho; frutas, couros, cabelo e lã na Barraca de Frutos* de José Gomes de Oliveira. O resto que fosse preciso, a Casa Augusto Wilhelm podia oferecer. Para citar apenas alguns...

Casa Fialho - Rua 7 de Setembro, esquina com a atual Dr. Sílvio Scopel - MMEL

Provavelmente casa comercial de Conrado Zimmer - Coleção Ernesto Müller

Interior da Casa Augusto Wilhelm (1922) - Benjamin Camozato

Dentista aprovado em Berlim era Victor L. Preuss, na Travessa Major Ourique n.º 19. Clínica médica era a do Dr. Ricardo D'Elia, formado em academias de Nápoles e Paraguai, com atendimento na Rua 15 de Novembro n.º 22. Ou então aqueles que necessitassem de médico operador e parteiro, a pedida era o Dr. Marajó de Barros, residente no Bairro Rio Branco e com consultório na Farmácia Moron. Também o Dr. José Felix Garcia, conceituado em sua formação, oferecia seus préstimos, além do já conhecido Silvio Scopel. Outros havia, assim como construtores, engenheiros, arquitetos, prestadores do serviço de saneamento e muitos instaladores hidráulicos, afinal, a água chegara para boa parte da cidade em 1921 e as tratativas para ampliação da distribuição e da rede de esgotos encontrariam no ano de 1925 o seu melhor momento, assim como as obras de embelezamento urbano.

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Assentamento dos condutos de esgoto na Rua 7 de Setembro - MMEL

Já findando o primeiro mês do ano de 2025, podendo recontar com boa fidelidade, graças à documentação e acervos de imprensa disponíveis, a Cachoeira de 100 anos passados, espero poder seguir relembrando a nossa história com os fatos e documentos que a construíram grande e memorável.

*Segundo o pesquisador Coralio Bragança Pardo Cabeda, a expressão "frutos do país" ou "frutos da terra" refere-se à compra e venda de couros, lãs, cabelo, chifres, cascos e outros do gênero, produtos comercializados pelas antigas "barracas"  que, a exemplo da pertencente a José Gomes de Oliveira, havia muitas outras, como de Isidoro Neves da Fontoura, de Antônio Joaquim Corrêa, que funcionava no Mercado Público, de José Maria e Alcides Duarte, de Pedro Bonugli e Julio Castagnino, Viúva Claussen & Cia. (da Charqueada do Paredão) e de Francisco Antunes da Cunha, para citar algumas.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Sumiu o piano!

Cachoeira, 1906. Um piano existente no Teatro Municipal sumiu. A partir disso, uma enrascada surgiu. Afinal, que fim levou o piano?

Mentirosos relapsos. Um resumido grupo de cafajestes, sem a mínima cotação social, adulterando o fato da transferência de um piano que permanecia no Teatro para os salões do Clube Comercial, aliás legítimo coproprietário do aludido piano, por cessão de direitos que lhe fizeram diversos cidadãos caracterizados, anda a espalhar miseráveis mentiras nesta cidade e até fora dela, por meio de falsíssimos telegramas dirigidos aos jornais.

Um dos tais cafajestes teve a lembrança de telegrafar à Gazeta do Comércio, de Porto Alegre, mentindo desbriadamente e envolvendo entre os torpes embustes o nome de uma autoridade local, inteiramente alheia ao fato narrado no recado expedido. A desbragada calúnia provocou justa revolta, e um dos nossos companheiros resolveu interpelar o conhecidíssimo chefe da patrulha e indigitado autor do telegrama aleivoso.

Como era de esperar, este membro proeminente da patrulhinha dos linguarudos e boateiros negou abertamente a autoria que se lhe havia imputado, chegando a empenhar nesse sentido sua palavra. E ficam assim os homens de bem e as autoridades íntegras expostos às imputações covardes e anônimas de vigaristas documentados e caloteiros sem pudor. Mas, cuidado! A paciência pode vir a esgotar-se e então colocaremos na mesa das autópsias públicas um a um o cadáver de todos esses repulsivos arautos da falsidade e da calúnia. (Jornal Rio Grande, 31/5/1906, p. 1, sem autoria).

Maravalha...

Bondosos leitores e amáveis leitoras!

Para cavaqueá-los simplesmente e mui piano, é que de novo nos achamos diante de vós! Sim, muito pianamente, porque somos um tanto tímidos e receamos meter-nos em altas cavalarias, maximé porque não conhecemos bem o terreno onde pisamos.

Somos novos no ofício e por conseguinte iremos maravilhando conforme Deus nos ajudar, sem ultrapassar os limites da nossa linha de conduta, para imiscuir-nos nas rusgas dos outros ou ocupar-nos da vida alheia.

Nada temos que ver com o que se passa em casa de Pafúncio ou na de Pancrácio. Não nos move o interesse de saber se Fulano abiscoitou o instrumento de Sicrano, porque também se julga com direito de posse do supradito cujo.

Toquem para lá a sua solfa de fá [rasgado no original], porque nós, alegres mancebos, só gostamos de surdina, e isso mesmo tocada alta noite, à janela da eleita de nosso coração, ainda de modo que os carrancas não ouçam.

Essa música que os filhos da Candinha andam por aí tocando, de viela em viela, não nos agrada, apesar de asseverarem os maestros que é tocada piano... piano.

Agrada-nos muito mais ouvir a orquestra que ocupa o coro de nossa matriz, nessas noites de novenas em honra ao Divino Espírito Santo. Composta de profissionais e de alguns novos elementos, como sejam diversas senhoritas e meninas que dedicam-se por amor à sublime arte de Mozart, há nos deliciando os ouvidos com seu concerto de vozes e instrumentos. (Jornal O Commercio, 6/6/1906, p. 2, assinado por Eugenio & Vicente).

As duas repercussões acima foram publicadas nos dois principais jornais que circulavam na Cachoeira de 1906. Como O Commercio e o Rio Grande digladiavam-se com certa frequência, é de se dar um desconto nas afirmações que um e outro fizeram.

No entanto, buscando notícias anteriores ao fato da retirada do piano das dependências do Teatro Municipal, é possível depreender quem foi seu proprietário original.

Existia em Cachoeira, naquele começo de século XX, uma sociedade musical que tomou o nome de Grupo Carlos Gomes, fundada em 20 de outubro de 1903, composta por 21 figuras que tocavam instrumentos de metal e de corda. Ora, desde o Natal de 1900, o lugar em Cachoeira destinado a exibições artísticas era o Teatro Municipal, localizado nas imediações da Igreja Matriz e da Intendência Municipal, hoje Praça Dr. Balthazar de Bem. 

Teatro Municipal - Fototeca Museu Municipal Edyr Lima - MMEL

Em abril de 1904, já contando várias exibições e tendo aumentado para 36 figuras, o Grupo Carlos Gomes adquiriu um piano, estreando-o, como não poderia deixar de ser, em concerto no Teatro Municipal.

Por razões óbvias, o piano ficou estacionado no teatro, tendo para tal o grupo obtido autorização do intendente, o Coronel David Soares de Barcellos. Lá serviu para muitas apresentações. Entretanto, em 26 de maio de 1906, indignados com a retirada do piano das dependências do teatro e depósito do instrumento no Clube Comercial, o diretor do Grupo Carlos Gomes, Abelino Vieira da Silva, e outros integrantes se dirigiram ao intendente, Dr. Cândido Alves Machado de Freitas, para saberem se havia partido dele a ordem de retirada. Cândido consultou o subintendente e este respondeu que o piano depositado no teatro não estava sob a responsabilidade da Intendência, não cabendo à administração municipal o compromisso de guardá-lo. Sendo assim, autorizou a sua retirada pela requisição que fez o Clube Comercial.

O intendente que autorizou a guarda do piano no Teatro Municipal
O Commercio, 21/9/1904, p. 1

Na ocasião em que o piano foi retirado do Teatro Municipal por representantes do Clube Comercial, o Grupo Carlos Gomes estava em processo de liquidação, sendo representado pelo liquidante Abelino Vieira e Arthur Macedo, ambos grandes credores da sociedade musical. Teria sido esta a razão de representantes daquele clube acharem-se no direito de levar o piano? Por sua vez, os liquidantes e grandes credores viram no piano um recurso para diminuir seu prejuízo?

O certo é que pouco tempo depois, tanto o Clube Comercial primitivo (outro clube com a mesma denominação surgiria em 1924) quanto o Teatro Municipal deixariam de existir. E o piano aonde foi parar?

Para saber mais sobre esta história e conhecer os documentos que a ela se referem, consulte: http://arquivohistoricodecachoeiradosul.blogspot.com/2017/07/um-piano-em-questao.html