Espaços urbanos

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Temporal no Centro Histórico - foto Francisco Nöller

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

A primeira morte da Cachoeira do Fandango


A leitura de jornais antigos, ainda que seja preciso atenção à grafia e à forma de expressão, é uma das mais interessantes fontes para descobrir as histórias que estão por trás da história, ou que lhe servem de pano de fundo.  

Um texto, sem autor, publicado no extinto jornal O Commercio, edição de 13 de agosto de 1919, revela a origem do nome da Cachoeira do Fandango e expõe um crime ambiental que, de certa forma, ocasionou a sua primeira morte. 

Cachoeira do Fandango - Fototeca Museu Municipal

No texto, há a referência de que a Cachoeira do Fandango, pela tradição oral reforçada por um homem de apelido João Rabequista, era conhecida com esta denominação há séculos, ou seja, desde o tempo dos índios povoadores da Aldeia, origem da cidade.

A margem esquerda da Cachoeira do Fandango era o local tradicional de piqueniques das famílias cachoeirenses desde o século XIX. Os piqueniques daqueles tempos eram acompanhados por músicos e onde há música há dança. Daí os "fandangos". 

Segundo o jornal, "não havia domingo, ou dia de guarda, sendo bom o tempo, em que a cachoeira não estivesse cheia de gente espalhada em grupos, cada qual acolhido à sombra das árvores prediletas, debaixo das quais fumegava o seu fogãozinho para o preparo das refeições, pois ali, em geral, passavam o dia de comezainas (1), de passeios e de folguedos. Assim sendo, não era de estranhar que aqui ou ali formassem bailes campestres, ao som das gaitas, das violas ou das bandas musicais que para ali eram levadas, às vezes, depois que a grande arte dos sons entrou a ser cultivada pelos habitantes do lugar. A Cachoeira do Fandango, pois, foi o ponto inicial da formação da sociedade cachoeirense, principalmente das sociedades dançantes." 

Piquenique - Acervo Sociedade Rio Branco

O autor do texto do velho jornal afirma ainda que a denominação Cachoeira do Fandango não foi dada pelos índios habitantes da Aldeia, mas por outros elementos que foram se agregando ao lugar. E termina o seu texto com um lamento, infelizmente bem atual, apesar de ter sido expresso há mais de 100 anos, referindo que a Cachoeira do Fandango havia sido bela, mas que tinha sido espoliada da sua beleza e função:

"(...) ex-formosa cachoeira, aquele sítio pitoresco infelizmente já não existe; não que mudasse de lugar ou fosse arrasada pela comissão (2) que andou tratando de pôr o rio permanentemente navegável (mesmo por cima das cachoeiras) em virtude de cujo melhoramento se eliminasse aquele lindo e vasto banco de pedra que, no tempo das secas, opondo uma formidável barreira ao curso impetuoso das águas, faz com que estas o galguem aqui e ali, forçando a passagem e precipitando-se numa raiva barulhenta e espumosa. Não. Não foi a comissão, honra lhe seja. Essa nenhum mal fez às belezas naturais do rio, nem tão pouco nenhum bem à navegação, a não ser talvez o de revelar-lhe, com uma certeza geográfica e matemática, a situação e a medida das cachoeiras que, trezentos e cinquenta dias por ano, pelo menos, ostentam os seus galhardos vultos aos olhos de todos os navegantes. Não. Quem estragou a maior beleza natural dos nossos subúrbios foi o machado devastador dos lenhadores, abatendo literalmente o formoso bosque que, ainda há pouco tempo, cobria a margem esquerda da nossa saudosa cachoeira, deixando-a deploravelmente nua - um sacrilégio! Não mais piqueniques à sombra do mato frondoso a ouvir-se o murmúrio das águas espumantes! Não mais tardes amenas gozadas sob a copa das árvores amigas (...)
Oh! Que bom seria se os poderes públicos tivessem o poder de coibir a desnudação das margens do nosso formoso e fecundo rio, já não dizemos para o conforto dos passeantes e pescadores, mas, ao menos, para evitar que essa cruel "desmatação" favoreça o esboroo (3) das suas margens, tornando-o ainda menos navegável!

A Cachoeira do Fandango morreu pela primeira vez quando, espoliada de seus matos, deixou de ser o ponto de encontro das famílias. Na década de 1950, quando iniciaram as obras para construção da barragem-ponte para travessia do Jacuí, ela foi o ponto escolhido para assentamento da estrutura da ponte. 

Desaparecida definitivamente do leito do rio, a cachoeira segue sendo lembrada pelo nome que a própria ponte tomou. Se a Cachoeira do Fandango não existe mais e restam hoje poucos que dela tenham lembrança, as águas do rio que se revoltam ao encontrar a ponte remetem à ideia de que bailam, tal qual bailavam as águas da extinta cachoeira. Segue pois o fandango, referência do que um dia foi a nossa principal cachoeira.

Ponte do Fandango - Jorge Ritter
(1) comezainas: lautas refeições.
(2) comissão: grupo de empresários e políticos cachoeirenses que a partir de 1912 se organizaram para planejar e executar uma ponte que transpusesse o rio Jacuí, antigo anseio da comunidade.
(3) esboroo: desmoronamento.

3 comentários:

  1. Mirian, que história legal, as meninas trajadas tão lindamente. Uma pena mesmo o desmatamento,o pessoal antigo dava um valor muito maior para a natureza.

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  2. oi, mirian! sou jornalista da zero hora e estou pesquisando um fato do passado de cachoeira. gostaria de saber se tu poderia me dar alguma dica... pode me passar algum contato teu, por favor? meu e-mail é larissa.roso@zerohora.com.br
    obrigada!

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