Espaços urbanos

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Temporal no Centro Histórico - foto Francisco Nöller

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Menina prodígio


É notória a vocação musical de Cachoeira. Ao longo de sua bicentenária história, não é difícil identificar manifestações musicais protagonizadas por indivíduos ou por grupos que se associavam em bandas, conjuntos e orquestras. A atuação desses talentos marcou os diferentes momentos históricos, como que a lhes conferir trilha sonora. Neste universo predominavam os homens, como Venâncio Érico da Trindade, Roberto Silva, Miguel Iponema, Alcindo Barcellos, Andino Abreu, Souto Menor, Arno Matte e tantos outros. Mas apareciam também os talentos femininos. 

Maria de Lourdes Figueiró, filha de Luiz Ourique Figueiró e Olívia Barcellos Figueiró, foi um dos talentos femininos surgidos nesta terra. Era neta de David Soares de Barcellos e portanto herdeira dos reconhecidos pendores musicais da numerosa família por ele constituída com Alzira Águeda. A residência dos Barcellos, na Rua Sete de Setembro, era local de muitos ensaios e concertos promovidos pelos filhos e filhas do casal.

Sobrado de David Soares de Barcellos - Rua Sete de Setembro
- Fototeca Museu Municipal
Família de David Soares de Barcellos - Acervo familiar

Segundo relata João Carlos Alves Mór em sua obra A Minha Cachoeira, p. 76: 

“Aos seis anos de idade começou seus estudos de música com a prima Izar Barcellos, exímia pianista. Como demonstrou grande facilidade com as noções de música, sua mãe resolveu que a menina deveria estudar violino. D. Olga Fontoura, única professora de violino da cidade, notou logo a grande vocação de Maria de Lourdes e, antes dos três meses de estudos, promoveu um concerto para apresentação da aluna. Mais tarde, com a criação de uma Escola de Música pelos professores porto-alegrenses Guilherme Fontainha e José Corsi, Maria de Lourdes foi prontamente matriculada, chamando a atenção dos mestres. No final do ano, ao prestar exame na escola, a vocação para o violino estava evidente. Os professores então chamaram os pais da menina e ofereceram uma bolsa de estudos no Instituto de Belas Artes, em Porto Alegre, tentando convencê-los sobre o seu talento. Assim, no ano de 1923, a violinista cachoeirense seguiu para Porto Alegre, morando no pensionato do Colégio Nossa Senhora dos Anjos, que recebia jovens de todo o Estado, principalmente para cursarem a Escola Normal e o Conservatório de Música.”

Maria de Lourdes Figueiró - Fototeca Museu Municipal

Interessante destacar que a criação da Escola de Música de Cachoeira, citada por João Carlos Alves Mór em seu livro, remete ao impressionante impulso que Guilherme Fontainha e José Corsi, dois grandes nomes da educação musical no país, proporcionaram aos jovens talentos na década de 1920 ao instalarem em Porto Alegre o Centro de Cultura Artística. O propósito do Centro era fundar escolas de música nas principais cidades do estado, dentre elas Cachoeira, para fomentar a cultura musical. Com a criação, haveria a atração de talentos e a consequente formação e aperfeiçoamento de instrumentistas através dos métodos então mais modernos.  Além disto, as cidades que possuíssem as escolas de música poderiam realizar intercâmbios entre si, promovendo concertos e audições dos alunos e atraindo virtuoses de outros pontos do país para virem se apresentar no estado. 

A instituição cachoeirense, apoiada pela Intendência Municipal e inaugurada na tarde do dia 10 de julho de 1921, favoreceu a vinda de músicos de renome para nela lecionarem, como o francês Maurice Maissiat e o cearense João Souto  Menor.  A violinista Maria de Lourdes Figueiró foi uma das primeiras alunas da escola, que funcionava junto ao Clube Renascença, na Rua Sete de Setembro. No final de 1921, cursando o correspondente ao quinto ano de violino, Maria de Lourdes obteve nota 9,5.  Dois anos depois, seguiu para Porto Alegre para buscar aperfeiçoamento.

Clube Renascença - onde funcionava a Escola de Música
- Fototeca Museu Municipal
Maria de Lourdes seguiu seus estudos de violino até a morte da mãe, quando voltou a Cachoeira. Em 1928, recebeu um convite do Conservatório de Música de Bagé, transferindo-se para aquela cidade. Como às mulheres de seu tempo o ideal era a maternidade e a condução da vida doméstica, Maria de Lourdes encerrou sua carreira quando se casou com o médico carioca Ruy Vasques, dedicando-se à criação das três filhas do casal. Um talento musical que cedo foi subtraído das apresentações públicas, mas certamente seguiu exercitado na animação da vida familiar, fazendo jus à tradição dos Barcellos. 

Maria de Lourdes Figueiró - Fototeca Museu Municipal

Maria de Lourdes faleceu aos 90 anos em 1997.

10 comentários:

  1. Linda história! Uma lástima que na época, matrimônio e profissão não poderiam ser conciliados. Muitos talentos ficaram escondidos entre afazeres domésticos, artes culinárias e maternidade

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    1. Com certeza, Veri! Minha avó, por exemplo, nunca mais tocou num piano depois que casou e teve 12 filhos. Para compensar, aos 70 anos foi aprender a tocar violão.

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  2. Esse assunto merece mais episódios... a música na década de 80 em Cachoeira é muitíssimo rica. Posso falar um pouco do que vivi: fui aluna da Bebeta Salzano de piano, o Coral Cachoeirense, o Coral da Univali, a Banda do Rio Branco e a escola de música do Colégio Rio Branco, onde tive aulas de piano, fomentaram muito o cenário da música na Cidade. Isso sem falar do conjunto João Roberto, das bandas marciais das escolas ROque e Baltazar de Bem e da própria Escola de Artes Santa Cecília! Desse tempo, saíram muitos talentos que hoje já não estão na cidade, como a Luciana Prass, que hoje é coordenadora do Departamento de Musica Popular da Faculdade de Música da UFrgs, Renato Mór, professor de violão em universidade em Blumenau, e muitos outros...

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  3. Ah, só as histórias do IRmão Rovílio no Roque, comandando a banda e o coral Os Rouxinóis do Jacuí rendem um belo texto!

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    1. Verdade, Sílvia! Como disse lá no início do texto, a vocação musical de Cachoeira é notória e marcante nos seus diferentes momentos históricos. Há um universo a desvendar aí!

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  4. Muito interessante, pena que a arte as vezes é deixada de lado.

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  5. Fiquei imensamente feliz de ver uma foto da Familia David soares Barcellos. Sou descendente deles. Faço minha genealogia há anos e não tinha uma foto dessa familia, que reliquia. Muito obrigada pela sua contribuição em manter esses registros vivos em nossas memorias. Como faço para ter mais informações sobre os "soares barcellos"?


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    1. Podes contatar o Arquivo Histórico do Município - email arquivohistorico@cachoeiradosul.rs.gov.br

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