Cachoeira, 1906. Um piano existente no Teatro Municipal sumiu. A partir disso, uma enrascada surgiu. Afinal, que fim levou o piano?
Mentirosos relapsos. Um resumido grupo de cafajestes, sem a mínima cotação social, adulterando o fato da transferência de um piano que permanecia no Teatro para os salões do Clube Comercial, aliás legítimo coproprietário do aludido piano, por cessão de direitos que lhe fizeram diversos cidadãos caracterizados, anda a espalhar miseráveis mentiras nesta cidade e até fora dela, por meio de falsíssimos telegramas dirigidos aos jornais.
Um dos tais cafajestes teve a lembrança de telegrafar à Gazeta do Comércio, de Porto Alegre, mentindo desbriadamente e envolvendo entre os torpes embustes o nome de uma autoridade local, inteiramente alheia ao fato narrado no recado expedido. A desbragada calúnia provocou justa revolta, e um dos nossos companheiros resolveu interpelar o conhecidíssimo chefe da patrulha e indigitado autor do telegrama aleivoso.
Como era de esperar, este membro proeminente da patrulhinha dos linguarudos e boateiros negou abertamente a autoria que se lhe havia imputado, chegando a empenhar nesse sentido sua palavra. E ficam assim os homens de bem e as autoridades íntegras expostos às imputações covardes e anônimas de vigaristas documentados e caloteiros sem pudor. Mas, cuidado! A paciência pode vir a esgotar-se e então colocaremos na mesa das autópsias públicas um a um o cadáver de todos esses repulsivos arautos da falsidade e da calúnia. (Jornal Rio Grande, 31/5/1906, p. 1, sem autoria).
Maravalha...
Bondosos leitores e amáveis leitoras!
Para cavaqueá-los simplesmente e mui piano, é que de novo nos achamos diante de vós! Sim, muito pianamente, porque somos um tanto tímidos e receamos meter-nos em altas cavalarias, maximé porque não conhecemos bem o terreno onde pisamos.
Somos novos no ofício e por conseguinte iremos maravilhando conforme Deus nos ajudar, sem ultrapassar os limites da nossa linha de conduta, para imiscuir-nos nas rusgas dos outros ou ocupar-nos da vida alheia.
Nada temos que ver com o que se passa em casa de Pafúncio ou na de Pancrácio. Não nos move o interesse de saber se Fulano abiscoitou o instrumento de Sicrano, porque também se julga com direito de posse do supradito cujo.
Toquem para lá a sua solfa de fá [rasgado no original], porque nós, alegres mancebos, só gostamos de surdina, e isso mesmo tocada alta noite, à janela da eleita de nosso coração, ainda de modo que os carrancas não ouçam.
Essa
música que os filhos da Candinha
andam por aí tocando, de viela em viela, não nos agrada, apesar de asseverarem
os maestros que é tocada piano... piano.
Agrada-nos muito mais ouvir a orquestra que ocupa o coro de nossa matriz, nessas noites de novenas em honra ao Divino Espírito Santo. Composta de profissionais e de alguns novos elementos, como sejam diversas senhoritas e meninas que dedicam-se por amor à sublime arte de Mozart, há nos deliciando os ouvidos com seu concerto de vozes e instrumentos. (Jornal O Commercio, 6/6/1906, p. 2, assinado por Eugenio & Vicente).
As duas repercussões acima foram publicadas nos dois principais jornais que circulavam na Cachoeira de 1906. Como O Commercio e o Rio Grande digladiavam-se com certa frequência, é de se dar um desconto nas afirmações que um e outro fizeram.
No entanto, buscando notícias anteriores ao fato da retirada do piano das dependências do Teatro Municipal, é possível depreender quem foi seu proprietário original.
Existia em Cachoeira, naquele começo de século XX, uma sociedade musical que tomou o nome de Grupo Carlos Gomes, fundada em 20 de outubro de 1903, composta por 21 figuras que tocavam instrumentos de metal e de corda. Ora, desde o Natal de 1900, o lugar em Cachoeira destinado a exibições artísticas era o Teatro Municipal, localizado nas imediações da Igreja Matriz e da Intendência Municipal, hoje Praça Dr. Balthazar de Bem.
Teatro Municipal - Fototeca Museu Municipal Edyr Lima - MMEL |
Em abril de 1904, já contando várias exibições e tendo aumentado para 36 figuras, o Grupo Carlos Gomes adquiriu um piano, estreando-o, como não poderia deixar de ser, em concerto no Teatro Municipal.
Por razões óbvias, o piano ficou estacionado no teatro, tendo para tal o grupo obtido autorização do intendente, o Coronel David Soares de Barcellos. Lá serviu para muitas apresentações. Entretanto, em 26 de maio de 1906, indignados com a retirada do piano das dependências do teatro e depósito do instrumento no Clube Comercial, o diretor do Grupo Carlos Gomes, Abelino Vieira da Silva, e outros integrantes se dirigiram ao intendente, Dr. Cândido Alves Machado de Freitas, para saberem se havia partido dele a ordem de retirada. Cândido consultou o subintendente e este respondeu que o piano depositado no teatro não estava sob a responsabilidade da Intendência, não cabendo à administração municipal o compromisso de guardá-lo. Sendo assim, autorizou a sua retirada pela requisição que fez o Clube Comercial.
O intendente que autorizou a guarda do piano no Teatro Municipal - O Commercio, 21/9/1904, p. 1 |
Na ocasião em que o piano foi retirado do Teatro Municipal por representantes do Clube Comercial, o Grupo Carlos Gomes estava em processo de liquidação, sendo representado pelo liquidante Abelino Vieira e Arthur Macedo, ambos grandes credores da sociedade musical. Teria sido esta a razão de representantes daquele clube acharem-se no direito de levar o piano? Por sua vez, os liquidantes e grandes credores viram no piano um recurso para diminuir seu prejuízo?
O certo é que pouco tempo depois, tanto o Clube Comercial primitivo (outro clube com a mesma denominação surgiria em 1924) quanto o Teatro Municipal deixariam de existir. E o piano aonde foi parar?
Para saber mais sobre esta história e conhecer os documentos que a ela se referem, consulte: http://arquivohistoricodecachoeiradosul.blogspot.com/2017/07/um-piano-em-questao.html
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