Corria o ano de 1835. A sede da Vila
Nova de São João da Cachoeira experimentava seus primeiros quinze anos de
emancipação da vizinha Rio Pardo. Tinha atravessado breves tempos pacatos,
enfrentado as agitações do primeiro quartel do século XIX e vivia naquele ano
os sinais de um tempo que anunciava dificuldades.
A dita área
urbana, arremedo de cidade, vivia ao redor da Igreja Matriz, maior edificação
da época e a mais importante. Próximo dela, na antiga Praça do Prestes,
erguia-se a rivalizar com o templo religioso, o templo das artes: o audacioso
Teatro Cachoeirense. Iniciativa da
classe caixeiral – como prova da força do comércio na economia de então -
dispunha de incríveis 500 lugares! Na outra ponta da vila, estava demarcada a
Praça do Pelourinho, ladeada por sangas. A Lava-pés, como bem diz o nome,
oferecia suas águas para que os viajantes limpassem os pés antes de adentrar no
recinto da vila, dirigindo-se pela Rua do Loreto ou pela Rua da Igreja, ou
buscando as ruas do Paulista, de Santo Antônio, do Cardoso, chegando às
travessas do Soeiro para, quem sabe, finalizar na dos Pecados...
Teatro Cachoeirense - foto do final do século XIX - Fototeca Museu Municipal |
A principal casa comercial pertencia a Antônio Vicente da
Fontoura e um italiano de nome Estevão Lombardo, segundo a pesquisadora Ione M.
Sanmartin Carlos, provavelmente o primeiro a aportar em Cachoeira, mantinha uma
casa de fazendas e quinquilharias bem promissora. Como dizia Aurélio Porto,
Cachoeira era “a cabeça de uma vasta região” e rota para atingir diferentes
plagas, razão de ser um importante entreposto comercial e de atrair
interessados em investimentos, como Joaquim Barcelos, Antônio Joaquim Barbosa e
João Teixeira de Carvalho, que solicitaram à Câmara, naquele ano, licença para
abertura de casas de negócio.
Outros profissionais vieram instalar-se em Cachoeira. Como
era de praxe, precisavam apresentar seus diplomas, ou títulos, como então eram
chamados, para serem autorizados a trabalhar. Juntaram-se a Gaspar Francisco
Gonçalves, que era cirurgião-mor autorizado por D. João VI, o licenciado José
Francisco Alves Malveiro, especializado em sangria e com título também
concedido por D. João, e o boticário Joaquim dos Santos Falcão, que apresentou à
Câmara titulação na arte da farmácia concedida por D. Pedro em 1825.
As principais autoridades da vila e responsáveis pela
administração municipal eram os vereadores. O presidente, José Pereira da Silva,
no posto por ser o mais velho, dividia as responsabilidades com Tristão da
Cunha e Souza, Manoel Álvares dos Santos Pessoa, Antônio
Vicente da Fontoura, Joaquim Gomes Pereira, Joaquim Corrêa de Oliveira e Antônio
Joaquim Barbosa, este também juiz ordinário. Os vereadores suplentes eram José
Rodrigues de Moraes, Noé Antônio Ramos, João Antônio Galvão, Lucas José Duarte,
Francisco de Barros Lima e Jacinto Lopes Falcão. José Pereira Fortes era outro
juiz ordinário e Antônio Xavier da Silva, juiz de órfãos. Felisberto Machado de
Carvalho Ourique era juiz municipal, Luiz Rodrigues de Castro e Silva e Manoel
da Silva Ferraz eram promotores públicos, havendo ainda os inspetores de
quarteirão, dentre os quais Joaquim Francisco Ilha e Antônio dos Santos Falcão.
Antônio Vicente da Fontoura - Fototeca Museu Municipal |
Em abril, no dia 22, foi instalado o primeiro júri, depois do
desembaraço de problemas, dentre os quais o fato do juiz de direito residir em
Rio Pardo, sede da comarca. Naqueles primeiros tempos, as disputas pelas
funções da justiça eram bastante acirradas; portugueses e brasileiros, os
primeiros ainda em grande número, digladiavam-se pela obtenção das nomeações
para tais funções.
Senhores da política, os portugueses ou caramurus, do Partido
Português, vinham dominando a vila desde 1831 e tinham nas figuras de Manoel Álvares
dos Santos Pessoa e Francisco José da Silva Moura grande influência. Noé Antônio
Ramos, Gaspar Francisco Gonçalves, Antônio Vicente da Fontoura e José Gomes
Portinho despontavam como lideranças de oposição aos portugueses, agitando o
cenário político da vila. E como nada é fruto do acaso, as disputas entre os
portugueses, conservadores, e os brasileiros natos, liberais, indicavam o rumo que
as coisas estavam tomando.
Em 13 de maio, numa sessão da Câmara, o vereador Joaquim
Gomes Pereira comunicou ter ficado sabendo que estavam acontecendo reuniões em
algumas casas para tratarem de assuntos de revoluções, para o que sugeriu
alerta e atenção.
Assinatura de Joaquim Gomes Pereira - Acervo documental Arquivo Histórico |
A partir da instalação do júri, haviam sido presas 211
pessoas pelos crimes de morte, ferimentos e roubos, principalmente. Do total, a
maior parte era da própria vila, sendo os demais infratores trazidos das
capelas filiais ou distritos, dentre eles Santa Maria e Livramento. Os crimes
cometidos incluíam também arrombamentos à cadeia, então uma casa alugada. Em
maio, a Câmara lançou edital para construção da cadeia, conclamando “toda a
pessoa a quem convenha deitar a pedra no lugar destinado para a cadeia haja de
comparecer em sessões da Câmara nos dias 26 e 27 do corrente para se tratar do
ajuste”. A obra não chegou a ser realizada e a cadeia “própria” só se
concretizou com a conclusão da Casa de Câmara, Júri e Cadeia em 1864.
A Guarda Nacional, força militar composta por cidadãos, tinha
um contingente de 194 homens, sendo 167 de serviço ordinário e 27 da reserva no
1º distrito da vila. No 2º distrito havia 87. Os esquadrões da Guarda Nacional
tinham ordem de se organizar e, às vésperas da eclosão da revolução
farroupilha, a sua reunião foi dificultada pelos rios caudalosos, o que foi
certamente ocasionado pelas chuvas que são comuns no mês de setembro. Um desses
esquadrões, de cavalaria, foi formado em junho de 1835, reunindo cidadãos
residentes entre Jacuí, Botucaraí e Serra Geral, sob o comando de Antônio
Vicente da Fontoura.
Questões envolvendo a escolha dos juízes de paz dos distritos
e dificuldades para reunir guardas nacionais ou mesmo formar esquadrões
começavam a preocupar as autoridades. As alegações eram de toda ordem e denotavam
a cautela com o clima belicoso já então pressentido.
O 20 de setembro não produziu registro na documentação da
Câmara, mas no dia seguinte, 21, um ofício do juiz de paz José Gomes Porto
participava aos vereadores que havia fixado edital de convocação de voluntários
para sentarem praça no corpo de polícia, mas que não aparecera nenhum candidato
no prazo marcado de trinta dias. Era evidente o temor do povo. Os próprios
vereadores começaram a apresentar justificativas para suas ausências às
sessões. Calos, hemorroidas, pisaduras e toda sorte de problemas eram alegados
para as faltas... O vereador Manoel Álvares dos Santos Pessoa, depois de ter se
envolvido em uma questão em que fora alvejado no pé, comunicou a Câmara, em 13
de outubro de 1835, que estava de mudança para Porto Alegre.
Assinatura de Manoel Álvares dos Santos Pessoa - Acervo documental Arquivo Histórico |
A vila envolveu-se de fato com o conflito no dia 23 de
setembro, quando o juiz de paz Gaspar Francisco Gonçalves soube que em Rio
Pardo um grupo contrário à causa liberal estava se negando a aceitar a
autoridade do Dr. Marciano Pereira Ribeiro como presidente da província. Em 26 de setembro Gaspar, juntamente com
Antônio Vicente da Fontoura, comandante de um esquadrão e companhia da Guarda
Nacional, acompanhados por Manduca Carvalho, dirigiu-se à cidade vizinha para
socorrer os revolucionários, fazendo Rio Pardo aderir aos farroupilhas.
Assinatura de Gaspar Francisco Gonçalves - Acervo documental Arquivo Histórico |
No dia 24 de setembro, a Câmara divulgou um edital
conclamando o povo a manter a tranquilidade e o respeito às autoridades
constituídas.
Entre celebrações religiosas, ataques ora de liberais, ora de
legalistas, destruição de registros documentais da Câmara e fuga de
autoridades, Cachoeira adentrou no decênio.
Finda a revolução farroupilha, ficaram adormecidos os ódios
cultivados naqueles tempos – e antes mesmo deles – para desabrocharem novamente
num frio dia do início de setembro de 1860, quando os conservadores Hilário
Pereira Fortes, José Pereira da Silva Goulart e Felisberto Machado de Carvalho
Ourique mandaram justiçar os liberais, perecendo Antônio Vicente da Fontoura
depois do atentado sofrido na Igreja Matriz. O passado seguia muito presente...
Igreja Matriz - Fototeca Museu Municipal |
Muito bom!!! Adorei! Observei que aí estavam Antonio Gonçalves Borges que foi casado com Joana Rosa Pereira Fortes, bisavós da Carlinda Borges de Medeiros e José Pereira Fortes (1783/1849) bisavô do Ramiro Barcellos.
ResponderExcluirSuzana, logo lembrei de ti. Mas como existem vários Antônios Gonçalves Borges, qual deles seria? O casado com a Joana morreu em 1795. Não seria. Seu filho, de mesmo nome, morreu em 22/11/1834. E logo eu seria levada a pensar que também não seria este, mas ele foi eleito vereador em 1833. E aí tua pergunta me fez ver que em 1835 o Antônio Gonçalves Borges, apesar de estar na nominata de vereadores, já havia falecido! Muito bom! Fui conferir nas atas e as assinaturas dele cessam em janeiro de 1834. Devia estar doente. Obrigada, Suzana!
ExcluirRamiro Barcellos é o bisavô dos meus filhos. Meu filho guarda com muito zelo o livro, com capa de couro, onde ele publico sua tese de medicina, "Alianças Consanguíneas".
ResponderExcluirQue bacana, Magda! Beleza que teu filho guarde esta preciosa relíquia. O Museu de Cachoeira parece-me que tem cópia desta tese. Se fosse possível, gostaria de ver uma foto do livro. Obrigada.
ExcluirMuito bom ! Cita aí vários parentes meus: Antonio Gonçalves Borges era meu pentavô; Antonio Vicente da Fontoura meu primo, com 4 gerações de diferença - seus avós, João Peixoto de Azevedo e Jerônima Veloso da Fontoura,são meus pentavós
ResponderExcluirObrigado,
Luiz Fernando Leitão de Carvalho
Teus parentes são nomes fortes na nossa história, Luiz Fernando!
ResponderExcluirAbraço.
Pergunto se Ramiro fortes Barcelos não era genrro de Joaquim Gomes pereira?
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