Vamos iniciar uma nova série e contar histórias populares que chegaram aos nossos dias como sói acontecer com histórias deste tipo: ou viram lendas, ou "coisas de que se ouviu falar"... modificadas aqui e ali, acrescidas cá e lá pela passagem do tempo, pela interpretação dos que as recontaram, pelo imaginário popular. Estas histórias são forjadas pela nossa cultura, pelo nosso meio, pela natureza humana. Tem coisa mais nossa?
Para começar a série, recorremos ao jornal O Commercio (1900 - 1966) e na edição do dia 6 de março de 1907 encontramos: A Cachoeira.
"Em risonha aldeia de pescadores, à margem de caudaloso rio, que mais além ia formar uma cachoeira, vivia Elias, guapo e esbelto mancebo, de tez bronzeada e cabelos negros. Amava de todo coração o moço pescador a Clarinha, a mais encantadora donzela do lugarejo, filha do velho David, o qual, sem motivo algum, antipatizava solenemente com Elias, a quem hostilizava, assim como à filha, procurando destruir os laços de afeição que ligavam os dois jovens. A oposição que fazia o pai de Clarinha, longe de arrefecer-lhes o amor, tornou-o ainda mais violento.
David, apesar de ver malogrados seus esforços obstinava-se em não ceder aos rogos da filha. Não encontrava defeito nenhum no rapaz, que era bom, honrado e trabalhador, mas não queria... porque não queria... Era mera questão de capricho.
Atingindo finalmente Clarinha a maioridade, impôs ao pai a sua vontade e, como se não quisesse ele submeter, partiu a moça para a casa de seus padrinhos que moravam na outra banda do rio. Todas as tardes, lutando na frágil canoa de cedro com as marulhosas da torrente, lá ia o mancebo cantando alegremente ver a querida noiva.
Uma tarde a aldeia estava em festa. Naquele dia casavam-se Elias e Clarinha. O sol, ao deitar-se preguiçoso no horizonte, dourava com seus últimos raios as águas encrespadas do rio que iam lá adiante formar a cachoeira. Na canoa ornada de flores, que balouçava na praia, saltou Elias. O vento era favorável, não tinha necessidade de remos, deitou-os no fundo da embarcação e, desfraldando a vela, fez-se ao largo. Ia buscar a noiva. O casamento deveria realizar-se, à noite, na capelinha do lugar.
Cachoeiras no Jacuí - fototeca Museu Municipal |
Quando o jovem pescador afastou-se com a vela solta ao vento, o velho David, em pé sobre a barranca, rugiu entre dentes: - Maldição!... Vais à vela, miserável!... o vento te protege... Quisera que fosses remando, como é teu costume, porque então havias de ir parar, despedaçado, no fundo da cachoeira... e a minha Clarinha, a minha querida filha não seria tua!... O velho não recuara diante do crime para impedir o casamento. Havia feito vários furos nos remos de Elias para que, assim enfraquecidos, se partissem antes dele atingir a margem oposta.
Pano enfunado, a canoa do noivo abicava à praia fronteira. Clarinha, que ali o esperava, embarcou. Amainara o vento. Colhida a vela, a embarcação, acompanhada de outra em que vinham os padrinhos da donzela, cortou as águas em demanda da aldeia. Chegando o barco ao meio da corrente, para vencê-la o moço pescador começou a remar com todo o vigor de seus braços fortes. Mas, de repente, empalideceu – acabavam de quebrar-se, um após outro, os dois remos – e a canoa descia o rio, a princípio lenta, depois em vertiginosa corrida. Elias tomou nos braços a noiva que desfalecera e, atirando-se à água, tentou nadar para terra. Baldados esforços. A correnteza o arrastava. Várias embarcações, entre as quais a em que vinham os padrinhos de Clarinha, lançaram-se em socorro. Foi tudo em vão...
O velho David, de pé sobre a ribanceira, imóvel como se fora de pedra, as mãos na cabeça, o olhar desvairado, viu-os abraçados lá ao longe despenharem-se na cachoeira. E murmurava: - Matei-o... mas matei também minha filha...
Na capelinha da aldeia, lugubremente, começou o sino a dobrar a finados...
De pé ainda sobre a barranca, louco, o velho, com os olhos desmesuradamente abertos, fitava a neblina que além subia da cachoeira e repetia baixinho, muito baixinho: - Matei-a... matei-a..."
Marques Júnior
Bem, este rio certamente é o Jacuí... E o Elias e a Clarinha um daqueles tantos casais que encontraram resistência ao seu amor. Coisas do passado. Coisas do presente. Coisas de sempre!
Que espetáculo de conto, que maravilha de narrativa, e a foto nova de capa do blog, superando-te a cada dia, obrigado, estaremos todos aguardando ansiosamente pelas novas histórias.
ResponderExcluirComentários como o teu são combustível para melhorar cada vez mais. Obrigada!
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirObrigada, Ju!
ExcluirMuito bom Mírian, um garimpo verdadeiramente precioso! Sou fã deste teu blog!
ResponderExcluirObrigada, Cleiton! Tua apreciação é honrosa para mim!
ResponderExcluirShow, Adorei o.texto. bons tempos
ResponderExcluirOutros virão, Paulo!
ResponderExcluirObrigada pela leitura.
Muito linda a história! Tem algumas semelhanças com o amor de Peri e Ceci, de O Guarani...também com Romeu e Julieta...o que só ratifica a tese de que as histórias que fazem parte da formação da humanidade tem uma raiz comum que nos faz iguais...
ResponderExcluirCoisa mais linda esta história !
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