Espaços urbanos

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Temporal no Centro Histórico - foto Francisco Nöller

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Desastre ferroviário - 1912

Há na fototeca do Museu Municipal, o melhor banco de imagens de Cachoeira do Sul, algumas fotografias de desastres ferroviários, acontecimentos não tão incomuns no tempo em que os trens eram o principal meio de transporte.
A questão é que há dúvidas a respeito da época destas fotos, de forma que toda vez que uma notícia do gênero aparece, surge esperança de finalmente associar o fato à imagem.
Na coleção d’O Commercio, edição de quarta-feira, 24 de janeiro de 1912, uma notícia chama a atenção, podendo muito bem ser o elo entre as imagens que seguem e o relato publicado naquele jornal. Aliás, do relato se pode dizer que foi de fato uma cobertura jornalística, nos moldes das que se veem hoje, e que não eram muito comuns naqueles tempos, ao menos na imprensa local.


Desastre ferroviário - fototeca Museu Municipal

Domingo último, pelas 10h30 da manhã, circulou nesta cidade a notícia de ter ocorrido um grande desastre sobre a ponte de ferro do arroio Botucaraí, no 1º distrito municipal.
            Alguns mais incrédulos ainda gracejavam do fato, lembrando a circunstância de que não corriam trens aos domingos e querendo levá-lo à conta de alguma invenção de mau gosto.
            Imediatamente procuramos o nosso amigo Franklin Martins Ferreira, que constava haver sido um dos passageiros do trem, e o qual, ainda visivelmente apavorado e com tremores na voz, confirmou-nos a verdade da triste nova.
            A fim de bem informarmos os nossos leitores sobre o triste acontecimento, dirigimo-nos, às primeiras horas da tarde, ao local do desastre, onde colhemos as seguintes notas:
            Sábado último saiu de Montenegro, com destino a Santa Maria, o trem de carga nº 206, que pernoitou na estação do Couto, donde partiu na manhã de domingo, 21 do corrente, levando mais de 170 toneladas de carga, distribuídas em 10 vagões.
            Às 7h10 partia o referido trem da estação do Bexiga, onde embarcaram, no carro auxiliar, os Srs. Franklin Martins Ferreira e Aristides Brum, representantes comerciais, vindo no mesmo carro o Sr. Antonio da Silva Cidade, chefe do trem, e o Sr. Mathias Ruschel Sobrinho, negociante na Estrela.
            Devido à extraordinária quantidade de carga, o trem corria com velocidade inferior à costumeira.
            Pelas 8 horas, depois de ter entrado na ponte de ferro do Botucaraí, sita a 13 quilômetros desta cidade, entre os quilômetros 127 e 128, o maquinista João Machado viu subitamente afundar-se no primeiro vão o carro de carga da frente que, com o seu peso, ia arrastando o “tender”*.
            O maquinista, num movimento impulsivo, abriu o regulador da máquina, dando-lhe assim toda a força e conseguindo que esta não deixasse cair na profundidade o tender, cujas rodas traseiras foram, entretanto, arrebatadas, sendo o ferro de ligação com o carro rompido pelas duas forças que se contrariavam e ficando por cima do segundo vão da ponte, cuja altura calculamos ser de 8 a 10 metros.
            Vinham também no trem o foguista Pedro Antão de Faria e os guarda-freios Lino Alves e Guilherme.
            Mais um momento e os passageiros do carro auxiliar sentiram repetidos solavancos, sendo as suas pernas jogadas violentamente umas contra as outras. Assustando-se com o ruído que vinha da frente, atiraram-se pela porta do carro auxiliar os três passageiros, sendo em primeiro lugar o Sr. Aristides, depois os senhores Franklin e Ruschel e, por último, o chefe do trem, que nada sofreram, graças à marcha vagarosa do mesmo, e tiveram então ocasião de presenciar um espetáculo horrível: todo o material do primeiro vão da ponte tinha desabado, e com ele haviam caído os 10 carros de carga, que atulharam parte do leito da margem esquerda do Botucaraí, onde atualmente não corre água. O auxiliar em que vinham teve as rodas fronteiras desencarriladas para a direita, pendendo parte da frente para a profundidade que havia tragado os outros carros.
            O guarda-freios Lino Alves, preto, de 38 anos e que tem mulher e filhos em Santa Maria, ficou soterrado entre os escombros e, ao que parece, teve morte rápida, ficando uma perna fraturada e graves contusões na cabeça, principalmente no rosto. Foi encontrado de cabeça para baixo, dentro de uma pequena poça d'água estagnada que ainda ali havia.
            Do guarda-freio Guilherme pode-se dizer que esteve, no terrível momento, com toda a presença de espírito e extraordinariamente animado do instinto de conservação. Vinha no quarto carro e quando percebeu que o primeiro foi-se fragorosamente sumindo, correu desabridamente em direção aos carros traseiros, saltando-os um a um e também pulando de cima do carro auxiliar para o trilho, fora da ponte.
            Os passageiros foram conduzidos em “trolly”**  para esta cidade...
            Quando, pelo trilho, um pouco antes das 2 horas, dirigíamo-nos ao Botucaraí, encontramos nas proximidades da estação desta cidade o trolly que conduzia o infeliz guarda-freios Lino Alves, que vinha amortalhado com ramos verdes, a fim de que sobre seu corpo não incidissem demasiadamente os ardentes raios solares.
            Pelas 4 horas da tarde chegamos ao local do sucesso e, transportando-nos em canoa para a margem esquerda do Botucaraí, tivemos ocasião de apreciar “de visu”*** os extraordinários prejuízos materiais que causou o comentado desastre.
            Dos sete primeiros carros nada mais restava que lembrasse vagamente as suas formas. Um amontoado de escombros: sacos de sal e de farinha de trigo, querosene e piche derramados em promiscuidade com pedaços de trilho e rodas torcidas, telhas de zinco do teto e tábuas das paredes dos carros, molduras de cimento para frontispícios, dormentes de madeira e guarnições de ferro da ponte, tudo isto dava um feio aspecto àquela solidão, em cujas imediações as águas do Botucaraí rolam preguiçosamente.
            Os três últimos carros ainda ficaram com parte de sua aparência, se bem que muito danificados e talvez de todos imprestáveis, pois derramaram e estragaram a mor parte das mercadorias. Estes penderam para a esquerda (referimo-nos à direção que seguia o trem) sendo que o último ficou colocado obliquamente, com uma extremidade contra o paredão em que principiava a ponte, impedindo assim a queda do carro auxiliar.
            A máquina também desencarrilou para a direita, ficando com o tender no meio da ponte, que tem três vãos e mede 70 metros de comprimento, mais ou menos.
            Muitos curiosos desta cidade e também algumas famílias da vizinhança afluíram ao teatro do acontecimento imprevisto, que causou prejuízos de grande monta à viação férrea e igualmente ao comércio.
            As guarnições de ferro dos dois lados do primeiro vão da ponte, que são de chapas de ferro justapostas, tendo mais de um centímetro de grossura cada uma, foram arrancadas totalmente com o peso e a violência dos carros em queda.
            O primeiro pilar, que é de pedra bruta e de sólida construção, foi também danificado pelo choque sofrido, com certeza, pela queda do carro, ficando muito abalado na base.
            Anteontem começaram os trabalhos de remoção das cargas e do material estragado, sendo a condução de passageiros feita por dois trens, que paravam de um e outro lado da ponte.
            Para o transporte dos passageiros pelo rio e a baldeação das suas bagagens foi improvisada uma barca construída sobre três canoas, enquanto não estiver reconstruída a ponte, que igualmente ficou um pouco estragada na parte que fica sobre o segundo vão.
            Qual a causa do desastre? Sobre este ponto não há certeza absoluta, pois ainda no dia anterior passaram os trens de passageiros, nada parecendo haver de anormal.
            Calcula-se, porém, que a forte chuva de 5 do corrente, em razão da qual tantos cursos d'água cresceram extraordinariamente, houvesse concorrido para eluir**** o paredão de pedra da margem esquerda do arroio.
            Os passageiros que anteontem seguiram para o interior chegaram com três horas de atraso à estação desta cidade.

            Nesse dia houve ainda maior afluência de curiosos à ponte do Botucaraí, que desta cidade e de outros pontos seguiram a cavalo, em aranhas e carroças, e muitos pelo trem.

Curiosos observam o lugar do acidente - fototeca Museu Municipal

*tender: vagão que transporta o combustível.
**trolly: carrinho sobre trilhos utilizado para transportar material da estrada de ferro.
***de visu: à vista, ao vivo.
****eluir: separar.

4 comentários:

  1. Coisa boa poder acompanhar os causos e fatos de antanho, aguardamos ansiosamente todo a semana pelo momento de lermos esse blog, a despeito da tragédia que foi, o interessante é através dessa leitura podermos nos transportar como se estivéssemos presenciando o fato,de visu, como escreves.
    Obrigado !

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  2. Hugo, as fotos que ilustram a matéria me intrigam há muito tempo. Creio ter localizado o fato que provocou tristes imagens. Tua leitura de minhas postagens, não me canso de dizer, é motivo de alegria e grande estímulo. Obrigada!

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  3. Muito bom, adoro essas histórias do passado.

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  4. Oi Mirian. Sabes a localização desse acidente? Há algum vestígio de época no local?

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