Espaços urbanos

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Temporal no Centro Histórico - foto Francisco Nöller

domingo, 31 de janeiro de 2016

Série Casas com passado, presente e futuro

Casa Jacques Bidone

Letreiro da casa de Jacques Bidone
- foto Nelda Scheidt

Fachada atual da casa de Jacques Bidone - foto Claiton Nazar

Foto mais antiga da Casa de Jaques Bidone - fototeca Museu Municipal

No ano de 1916, o jornal O Commercio noticiou, em sua edição de 5 de janeiro, que o Sr. Jacques Bidone tinha mandado demolir o antigo prédio do Hotel Central, localizado na Rua Sete de Setembro, defronte à Praça das Paineiras (atual José Bonifácio), para no local construir um “edifício assobradado, que já recebeu o madeiramento da cumeeira. O mencionado edifício tem 16,20 de frente, 11 metros de altura e 100 palmos de fundo, constando de 17 compartimentos. O andar superior terá cômodos para habitação de duas famílias, e o inferior constará de dois armazéns e ainda de uma residência para família, com entrada pelo lado sul. Uma parte do edifício o Sr. Bidone destina à instalação da sua loja e oficina de calçados, uma outra é reservada para habitação de sua família, ficando o excedente para alugar.”


Quadra da Rua 7 de Setembro antes da construção da Casa de Jacques Bidone
- fototeca Museu Municipal

Em 20 de agosto de 1919, o mesmo jornal registrou que iam “adiantados os trabalhos da construção de um sobrado que o Sr. Jacques Bidone está mandando edificar à Rua Sete de Setembro, defronte ao Coliseu*, para nele instalar uma farmácia e um bem montado laboratório clínico que deverá ser dirigido pelo farmacêutico Dr. Francisco de Revoredo Barros e pelo farmacêutico químico Sr. Carlos Carneiro."

Em abril de 1928, Jacques Bidone abriu no local a Casa Pereira, de J. Pereira & Cia., em sociedade com seu genro João Pereira Júnior. Em julho de 1931 a sociedade foi desfeita com a retirada de Jacques Bidone, o que não impediu da loja seguir no mesmo endereço e sob o controle de Pereira Júnior. No início dos anos quarenta, o grande sortimento da casa comercial eram casimiras e outros artigos de vestuário.


Rua 7 de Setembro, cruzamento Sílvio Scopel - atrás do relógio a casa Jacques Bidone - 1928
- fototeca Museu Municipal

Mas quem foi Jacques Bidone? Nascido em Trento, na Itália, Bidone veio para o Brasil em 1889, passando por Bagé, Lavras e Caçapava, antes de se estabelecer em Cachoeira, como comerciante de tecidos. Casado em primeiras núpcias com Clecilia Félix Bidone, teve os filhos Lina Bidone (Pires), Dina Bidone (Preussler), Ida Bidone (Pereira), Otília Bidone (Pertille), Oscar, Artur, Jaci e Nei.  Viúvo, casou-se com Ema Mussói. O falecimento desse italiano que fez história no comércio de Cachoeira ocorreu em 25 de julho de 1942, contando ele a idade de 72 anos. 

A casa Jacques Bidone, que começou a ser construída há 100 anos, continua a registrar para a posteridade as iniciais do seu proprietário: JB. A parte superior do sobrado, destinada à residência, segue cumprindo esta função. A parte térrea, ao longo de quase um século e até o presente, tem sediado lojas comerciais diversas, notadamente de confecções. É, portanto, uma casa que ilustra as fotos do passado, as do presente e ilustrará, com certeza, as do futuro.

Abaixo, sequência de fotos da Rua Sete de Setembro já com a casa de Jacques Bidone. A primeira foto, de 1926, mostra o calçamento da rua; a segunda, do final da década de 1920; a terceira dos anos 1960, todas pertencentes à fototeca do Museu Municipal de Cachoeira do Sul. Estas imagens confirmam o tanto de história que o sobrado imponente vivenciou e, juntamente com a antiga casa do Dr. Balthazar de Bem, hoje Casa de Cultura Paulo Salzano V. da Cunha, constituem testemunhos únicos de uma época em que Cachoeira começou a se firmar como cidade abastada e próspera.










*Cinema Coliseu Cachoeirense, localizado na esquina da Praça José Bonifácio com Rua Andrade Neves.

sábado, 9 de janeiro de 2016

A Lenda das Sangas da Inês e da Micaela

Quando as sangas da Inês e da Micaela se encontrarem, diz a lenda, a cidade desaparecerá! 

Nunca antes esta antiga lenda foi tão lembrada... e temido seu vaticínio! Cachoeira do Sul tem sido assolada por eventos naturais de grandeza poucas vezes experimentada e em tão repetidos eventos! Será que as crendices do passado e o folclore surgido em torno delas têm lugar em pleno século XXI? 

Pelo sim, pelo não, eis a lenda extraída da edição de número 976 do jornal O Commercio, datado de 14 de agosto de 1918:

Não é nenhuma novidade dizer-se que cada cidade, cada lugarejo, cada sítio tem suas lendas: umas verdadeiramente interessantes e poéticas outras despidas destes requisitos, revelando crendices mais ou menos bárbaras dos primitivos povoadores desses lugares.

Esta que vamos contar, ou melhor, dizer como no-la contaram, está muito longe de pertencer à classe da lenda de Psiquê e de tantas outras que fazem “o encanto de quem as lê”, ou dos que as ouvem da voz da tradição. Esta, dizemos, é uma lenda essencialmente rústica, que nada mais pode despertar senão o sabor de ouvir o relato das coisas passadas.

O nosso interlocutor – não importa saber-lhe o nome – é naturalmente uma pessoa antiga, amante de coisas antigas. E vem daí o reter ele (ou ela) na memória o que dizem, desde os tempos idos, dessas duas sangas que, lançando-se no Jacuí, limitam, pelos lados Leste e Oeste, a colina em que atualmente se estende a cidade da Cachoeira.

Ouçamos a narração:
“Ali entre a Bica e o rancho onde residiu e morreu o velhinho João Rabequista que, quando não pôde mais pescar saía a tocar uma velha rabeca para ganhar a vida, era o ranchinho da Inês, viúva, segundo dizem, de um português em cuja companhia viveu por dilatado tempo numa constante e bem compreendida harmonia, descontados apenas alguns bate-bocas terminados em pontapés. Mas como tudo neste mundo tem um fim, mais hoje, mais amanhã, o seu velho, homem mais robusto e ativo agenciador da vida, apareceu um belo dia atacado de uma doença esquisita, a modos que enfeitiçado; e não houve remédios caseiros nem benzeduras que impedissem o seu Manoel entrar a definhar a olhos vistos, até que uma noite quatro velinhas bruxuleantes iluminaram-lhe o caminho da posteridade.

Ninguém pôde explicar, senão pelo feitiço, a natureza da moléstia que o matara, ainda os mais entendidos na arte de curar daquele tempo.

De sua junção com a preta Inês não ficou prole; e isto acrescentou sobremodo a desolação da pobre que, só e abandonada, deixou-se tomar de grande acabrunhamento; e então, às horas sombrias carpia suas mágoas, divagando pelas margens da sanga que, a esse tempo, eram revestidas de árvores, não contando algumas clareiras resultantes dos caminhos abertos pelos moradores do sítio e das devastações dos lenhadores.

Um dia, já ao escurecer, Inês sentara-se ao portal de seu velho rancho, e, pensando no passado, recordava-se que antes do seu homem enfermar e bater asas para o outro mundo notara, diversas vezes que, no silêncio da noite, uma coruja muito grande, muito grande, pousava sobre tocos carcomidos em derredor do rancho e soltava pios agourentos e lúgubres.

E assim absorta e passando em revista na mente doentia todos os fatos que pudessem explicar a causa do desandar de sua sorte, ouviu uma voz saída das sombras, que assim dizia:
- Não se apoquente, siá Inês; nesta vida não valem tristezas; o que vale é a gente saber d’onde veio o mal e tratar de dar-lhe remédio. Olhe, o seu homem não era nenhum santo, e foi por isso mesmo que a sirigaita da Micaela deu-lhe as coisas ruins para beber de que veio a enfermar e morrer.

E uma sombra passou-lhe diante dos olhos, sumindo-se na treva.

A pobre criatura tomou-se de tal pavor que nada mais fez que recolher-se para o interior do casebre, passando, porém, a noite em claro, atormentada pela revelação misteriosa da qual resultava uma amarga desilusão e uma funda irritação contra Micaela.

- Mas, quem era essa Micaela?

- Pouco abaixo do lugar que se conhece por Santa Josefa – continuou a narração – existiu antigamente um casinha à margem esquerda da sanga situada ao lado Leste da cidade, que muita gente conheceu habitada por uma cabocla, - dizem que de muita figura, a quem davam o nome de Micaela, cuja vida era cercada de certo mistério e cheia de acidentes. Daí é que vem o nome de Sanga da Micaela, da mesma forma que Inês deu o nome à outra.

Mas como ia dizendo, Inês, extremamente abalada por aquela noite mal passada, resolveu, logo ao amanhecer, ir à Aldeia, onde decerto colheria explicações sobre o que lhe acontecera; e sucedeu que ali chegando não faltou quem não estranhasse a sua cegueira em relação aos fatos ocorridos entre Micaela e seu finado companheiro, os quais ao princípio muito amigos, como todo o povo sabia, tornaram-se depois inimigos por causa de umas coisas que se meteram na cabeça da cabocla que, por sinal, era bem boa bisca.

Desde essa manhã a boca da Inês incendiou-se contra Micaela, da qual, daí em diante pôs todos os podres na rua, os que tinha e mais ainda os que não tinha.

Sabedora disso, a cabocla pagou-se na mesma moeda. Finalmente, sempre que se avistavam era um bate-boca interminável! Certo dia, pegaram-se à unha com tanto encarniçamento que, se não apartassem, estrangular-se-iam uma à outra.

Passaram os tempos; mas como ódio velho não cansa, à medida que o tempo corria mais se azedavam aquelas rivalidades.

Assim passaram os anos até que Inês, muito velhinha e já quase em estado de fantasma, veio uma noite a falecer perto da Bica, praguejando até ao seu último alento contra sua odienta inimiga. Pouco lhe sobreviveu a cabocla, morrendo também em estado de extrema pobreza e abandono.

Toda esta história vem para dizer, meu senhor, que após o desaparecimento dessas duas mulheres, entraram a aparecer as almas delas quase todas as noites nas respectivas sangas, viradas em fantasmas, empenhadas ambas no trabalho de, com as unhas, solaparem as terras das margens – cujas terras as enxurradas andam levando para o rio desde aquele tempo até agora.

Parece que com isto as sangas querem se encontrar para se devorarem mutuamente, continuando a vontade dos seres extintos.

Como se vê, a sanga da Inês, que começava da Bica e era muito estreita, está num socavão imenso e já está no ponto de tragar a volta da estrada do Seringa, ao mesmo tempo que vai avançando para o dorso da colina onde, daí a pouco, as casas da cidade se precipitarão ao abismo que a alma da Inês está cavando a seus pés.

Pelo outro lado, a da Micaela vai fazendo a sua tarefa, talvez com maior empenho. Haja vista o que ela tem feito pela altura do Lava-pés. Não há paredões de pedra que bastem a obstar as deslocações das terras corroídas pelas unhas da Bruxa.

Se a engenharia se descuidar, a cidade será igualmente arrastada ao abismo também por esse lado.

Por isso é que o povo diz que quando as sangas se encontrarem, a Cachoeira se acabará.

“Das Crônicas”

Sobre a Inês não há referências à sua existência. Mas Micaela existiu de fato e era moradora das proximidades da sanga que leva seu nome, mais precisamente na área que hoje se constitui o Parque Municipal da Cultura, onde estão o Museu, o Jardim Botânico e o Zoológico Municipal. 

Parque Municipal da Cultura - foto Jorge Ritter
A documentação primitiva das terras, encontrada no Cadastro de Terrenos da Vila Nova de São João da Cachoeira, complemento da planta de João Martinho Buff, de 1850, diz o seguinte:
- número do terreno: 281
- localização: frente - Rua Santa Helena (hoje Rua Dr. Liberato S. Vieira da Cunha), fundos - junção das duas sangas (hoje denominadas Lava-pés e Micaela)
- dimensões: 320 palmos de frente
- proprietários: sucessores da falecida Michaella
- autoridade concessora do título: José Carvalho Bernardes, Comandante da Vila
- época de demarcação: 1820 aproximadamente.

As lendas, histórias nascidas no seio da população e difundidas geração a geração, mesclam com maestria verdade e ficção...