Espaços urbanos

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Temporal no Centro Histórico - foto Francisco Nöller

domingo, 25 de novembro de 2018

Uma casa de cidade grande



A Cachoeira de 1850 era um lugar bem acanhado. A maior edificação existente era a Igreja Matriz, ainda um templo inconcluso. Havia nele sempre um retoque a ser feito, um remendo em alguma rachadura, uma torre erguida apenas e a outra em permanente vontade de subir... Até o padre Antônio Homem de Oliveira andava desassossegado – queria muito adquirir uma cruz para encimar o frontão da igreja.

Em 1856, o devoto Ferminiano* iniciou a construção do Império do Divino Espírito Santo, salão destinado às festas religiosas da tradição lusitana e que ficava no meio da quadra seguinte à da igreja. Ficou quase tão imponente quanto o Teatro Cachoeirense, construção de 1830 que dominava a quadra fronteira ao que deveria ser - e ainda não era - a Praça da Igreja.


Prédio do Império à direita - década de 1910 - Fototeca Museu Municipal
Teatro Cachoeirense - Fototeca Museu Municipal

Nessa mesma Cachoeira de 1850, em ano ainda incerto, um português – que portugueses havia ainda muitos naqueles tempos – de nome José Custódio Coelho Leal, de comprovadas posses e importância no cenário da Vila da Cachoeira, erguia na Rua do Loreto (Sete de Setembro), proximidades da igreja, uma vistosa casa para os padrões da época. Será que tinha em mente reunir a família que lhe restara? Viúvo, José Custódio só tinha um neto, José Custódio, o Júnior, filho de seu único filho, também José Custódio, falecido aos 33 anos em 1831. Será que a nora, Inocência Joaquina, vivia na companhia do sogro? Conjeturas do passado presas à imaginação e por enquanto habitantes da ficção. 

Casa de José Custódio Coelho Leal ao tempo do Clube Renascença -
Fototeca Museu Municipal

O neto já era então casado com Heduviges Falcão, com três filhos nascidos na década de 1850: João (1855), Josephina (1857) e Olympio (1859). Nos anos 1860 nasceriam mais dois: Rhea Silvia (1866) e Nelson (1868).

O interessante é que a casa que José Custódio, o avô, construiu extrapolava os padrões da acanhada Cachoeira. A rivalizar com ela somente a do Dr. José Afonso Pereira, na Rua dos Cachorros (Saldanha Marinho), que havia hospedado D. Pedro II em 1846, por ser a maior e mais confortável existente.

Casa que hospedou D. Pedro II - Fototeca Museu Municipal

Em 5 de setembro de 1858, José Custódio faleceu. O neto José Custódio herdou “uma morada de casas sitas à Rua Sete de Setembro desta cidade, com frente a Oeste e fundos a Leste, com cinco janelas, porta de entrada e portão ao lado, contendo toda a frente dezessete metros e setenta e sete centímetros, dividindo ao Sul com casas do inventariante, ao Norte com terreno de Luiz da Silva, a Leste com terrenos e casas de Gaspar Xavier da Silva e de D. Mathilde Nunes da Silva Castro, a qual acharam valer seis contos de réis...” Pela data do inventário é possível verificar que a casa já estava construída no final da década de 1850. Na descrição sucinta do bem, não constam as estátuas do frontão. Teriam sido elas adereços originais da casa ou colocadas ali posteriormente?

Estátuas do frontão - Imagem Antônio Sarasá

No meio tempo entre a morte de José Custódio e a do neto, ocorrida em 1910, há uma lacuna de informações sobre a casa exceto que no ano de 1907 estava alugada para o Dr. Balthazar de Bem, ocasião em que foi sondada para servir de colégio aos irmãos maristas. Em 1911, quando Heduviges, viúva de José Custódio, o neto, faleceu, no inventário do casal apareceu “uma casa, sob número 41, nesta cidade, à Rua Sete de Setembro, que avaliamos em dezesseis contos de réis; uma casa sob n.º 39,  mesma rua, que avaliamos em nove contos de réis; uma outra casa, sob n.º 37, à citada Rua Sete de Setembro, que avaliamos em seis contos de réis...”, demonstrando que as posses da família não se restringiam apenas à casa das estátuas.

Família de José Custódio Coelho Leal Jr. e Heduviges Falcão Leal
- Acervo Ucha Mór

Seis anos depois, o herdeiro da casa em questão, Olympio Coelho Leal, vendeu o imóvel para o Clube Renascença, iniciando-se um período em que várias entidades fizeram dele sua sede, como a União de Moços Católicos, nova proprietária a partir de 1925, entidade de cunho religioso e social que acabou por incorporar à edificação a denominação pela qual a casa do português José Custódio Coelho Leal chegou aos nossos dias.

Da casa original restou a fachada, ora em processo de restauro, e que confere imponência ao residencial que atrás dela se descortina. Os elementos e técnicas construtivas empregadas na edificação revelam segredos do passado e poderão alcançar respostas à estatuária que domina o frontão, cujas figuras despertam curiosidade pela significação que encerram. Que segredos guardam? Que propósitos deveriam refletir? As respostas podem surgir na delicada tarefa de reconstituí-las, assim como um documento do passado poderá surgir dentre os escaninhos do tempo e dizer mais sobre os propósitos do português que construiu a casa de cidade grande numa ainda acanhada e inculta vila.

Esta postagem é dedicada à colega Maria Lúcia Mór Castagnino, a Ucha, detentora das informações preciosas aqui traçadas.

*Ferminiano: provavelmente Ferminiano Pereira Soares, o construtor da Casa de Câmara, Júri e Cadeia, atual Museu Municipal.