Não importa a época. Política é sempre política. A um partido sempre se oporá outro. Ou outros, como hoje acontece, pela profusão de siglas...
Entre o final do século XIX e começo do século XX, o Rio Grande do Sul vivia uma acirrada disputa entre os republicanos, do PRR - Partido Republicano Rio-Grandense, chefiado por Júlio de Castilhos, e o Partido Federalista, com acendrada liderança de Silveira Martins. Marcados pela simbologia dos adereços que usavam, os republicanos, de lenços verdes e depois brancos, chamados de pica-paus, e os federalistas, ou maragatos, de lenços vermelhos, estampavam nas cores a ideologia e, com o seu uso, a consequente antipatia que uns nutriam pelos outros.
O republicano Júlio de Castilhos - Wikipédia |
O federalista Gaspar Silveira Martins - Wikipédia |
Na Cachoeira de 1907, a grande liderança republicana era o Coronel Isidoro Neves da Fontoura e os federalistas, ainda que sufocados pela hegemonia dos republicanos, contavam com o apoio incondicional - e não local - de Raphael Cabeda, conhecido como o "generalito de Gaspar". Por sua conta, Cabeda percorreu o estado difundindo as ideias federalistas. Amealhou e congregou seguidores, contrabandeou armas, investiu e arrecadou recursos para a causa, conquistando, logicamente, amigos e inimigos. Em Cachoeira também.
Raphael Cabeda - Wikipédia |
Na época, dois jornais de Cachoeira noticiavam a política, sendo o Rio Grande órgão ferrenho do Partido Republicano e O Comércio, embora não oficialmente de caráter político, acolhia outras bandeiras, aninhando dissidentes. Os embates entre ambos às vezes se tornavam virulentos.
Em setembro de 1907, Raphael Cabeda passou por Cachoeira. O Rio Grande, de forma satírica e debochada, relatou a vinda usando como personagem uma figura popular da época, Jacintho Urso, negro que ficou registrado para a posteridade em uma fotografia de autor anônimo, cuja identificação se deve à memória do Dr. Fritz Strohschoen.
Jacintho Urso - Coleção Martinho Schünemann - Museu Municipal |
Manifestadela
Passou o condutor do Urso, isto é, o Cabeda.
Música, foguetes. O Jacyntho,
homônimo doutro, foi ouvir o discurso do Macedo. Vivas, palmas. Foi notada a
falta do Virgilio. O Feliciano ontem tinha prevenido o Macedo, pelo telefone. E
saiu a manifestadela. O Macedinho falou baixinho que quase nem se ouvia. De vez em quando o Felicianno o cutucava: - Fala mais alto! O Cabeda não ouve! Viva!
Viva! Mas, o Virgilio? Onde está o Virgilio?
O Jacyntho Urso ria, o Cabeda
abraçou-o. Viva a democracia!
E o homem do Accacio ergueu-se.
Choveram palmas! Viva o Dr. Fernandes! Um cão uivou, profundo, nostálgico,
triste. Subiram no ar três foguetes pchiiii... pom... bom!
O Macedo tomou fôlego. Um dos da
manifestação encatarroado tossiu, cuspiu. O Macedo continuou... As moscas
zumbiam... O Felicianno, por praxe, pôs a taça na boca...
Irra! Este cão maldito a uivar...
Alguns populares se afastaram. O tempo anda de cães danados! Podia esse ser um.
Viva! Viva! Viva!
Eis as notas tomadas por um
repórter da manifestação ao Cabeda.
(Rio Grande, p. 4, 20/9/1907, nomes
próprios mantidos com a grafia original).
Em outro lugar da mesma página, a seguinte nota:
Passou ontem por esta cidade, com
destino à fronteira, o Sr. Raphael Cabeda, um dos chefes agitacionistas da
atualidade.
Seus correligionários foram com
música e foguetes, cumprimentá-lo, na gare da Estação da Estrada de Ferro.
(Rio Grande, p. 4, 20/9/1907, nomes
próprios mantidos com a grafia original).
As personalidades citadas pelo Rio Grande apenas pelo sobrenome devem ser os "republicanos democratas", dissidentes dos republicanos conservadores e referidos em matéria do jornal O Comércio, edição de 4 de setembro de 1907, na página 1, noticiando que uma circular dirigida aos republicanos democratas do município da Cachoeira era assinada por João Augusto Leitão, Virgilio Carvalho de Abreu,
Henrique Möller Filho (proprietário do jornal), Felicianno Aniceto da Silva,
Roberto Danzmann, Germano Treptow, Alberto Zimmer, Luiz Leão e Arthur Ferreira
de Macedo. Eis alguns dos personagens referidos na recepção ao federalista Raphael Cabeda!
Mais do que desvendar os envolvimentos e os personagens de uma política violenta, o mais sensacional é trazer à luz e dar vida, ainda que de uma forma jocosa e satírica, a um personagem que, ao que tudo indica, deixou-se fotografar há mais de século para que um dia pudesse emergir da obscuridade e mostrar, ainda que incidentalmente, as rusgas políticas de seu tempo.
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Ofereço esta postagem ao pesquisador Coralio B. P. Cabeda, sempre pronto a me fornecer ótimas fontes.