O
destino da casa 500 parece estar selado. Mas antes de virar escombros ela quer
contar a sua história. Quando talvez dela não haja mais nada
além de fotografias esmaecidas, saibam os habitantes do futuro que um dia a
cidade descartou de sua paisagem um legítimo documento histórico.
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Casa 500 - Foto João Carlos Alves Mór |
15 de abril de 1847: Antônio Vicente da Fontoura, liderança no desfecho
da Revolução Farroupilha, de volta a Cachoeira e disposto a refazer a vida
depois do longo envolvimento com a Revolução Farroupilha, pediu
licença à Câmara Municipal para construir uma casa no terreno de sua
propriedade, havido por doação de Manoel José Pereira da Silva, na Travessa de
São José, hoje Rua Conde de Porto Alegre.
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Antônio Vicente da Fontoura
- Fototeca Museu Municipal |
13 de abril de 1849: a Câmara convocou o arruador para verificar a
correção do alinhamento da casa que Antônio Vicente estava construindo na Rua do Loreto, tomando
como parâmetro a casa de Miguel Pereira Simões, situada na mesma quadra, na Travessa de São José.
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CM/OF/A-004, fl. 159 - Arquivo Histórico |
14 de abril de 1849: o arruador comunicou á Câmara que a casa de Miguel
Pereira Simões estava fora do alinhamento em relação à casa de “canto” (esquina)
que Antônio Vicente estava construindo na Rua do Loreto (hoje Sete de
Setembro).
1850: o cadastro dos terrenos de Cachoeira, que ensejou a
confecção do primeiro mapa, elaborado por João Martinho Buff, traz o registro do terreno n.º 153, pertencente a Antônio Vicente da Fontoura, situado na Rua do Loreto (atual Sete de Setembro), esquina Travessa de São José (atual Conde de Porto Alegre), com 95 palmos de frente por meia quadra de frente ao fundo. Confrontações: ao Sul, a Travessa de São José; a
Oeste, a Rua do Loreto, e a Leste, o terreno n.º 221, dos herdeiros de Miguel
Pereira Simões.
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CM/S/SE/RCT-005 - Arquivo Histórico |
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Localização do terreno n.º 153 no mapa de J. Martinho Buff - 1850 |
O proprietário. Antônio Vicente da Fontoura é sabidamente um dos
mais importantes vultos da história de Cachoeira e do Rio Grande do Sul. Seu
papel na pacificação da província selou o fim da Revolução Farroupilha, não sem
o protesto de muitos e a aclamação de outros, rendendo-lhe uma divisão na
opinião dos historiadores.
Nascido em Rio Pardo a 8 de junho de 1807, era filho do português Eusébio Manuel Antônio, relojoeiro da Comissão de Demarcação de Limites subordinado ao Cel Francisco João Róscio, autor do projeto da Igreja Matriz em Cachoeira. Estabeleceu-se Eusébio, depois da demarcação, com relojoaria em Rio Pardo, onde casou em 2 de junho de 1798 com Vicênia Cândida da Fontoura. Foram os seguintes os filhos do casal: João (1805), Antônio Vicente (1807), Maria Egípcia (1810), Pedro Antônio (1811), Benta e José Antônio.
Quase menino, Antônio Vicente começou a trabalhar como caixeiro em um armazém de Rio Pardo e, aos 19 anos, veio para Cachoeira, empregando-se também como caixeiro.
Em
16 de janeiro de 1828, casou-se com Clarinda Francisca Porto, irmã de José
Gomes Portinho. Desta união nasceram 15 filhos: Antônio (faleceu bebê - 1829),
Clarinda Amália (1831), Josefa Leopoldina (1833), Gabriela Benta, Antônia
Francisca, Antônio Eusébio (1836), José Propício (1837), Afonso Borges, Bento
(1842), Maria Egípcia (1848), Vicência Cândida (1850), João Propício (1851),
Francisco de Paula (1853), Luzia Sofia (1854, morreu com 7 anos) e Tito
Castilhos (1856).
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Clarinda e Antônio Vicente - provável foto de Luigi Terragno
- 1856 - Fototeca Museu Municipal |
Em sociedade com um amigo, Fontoura adquiriu seu próprio armazém
que logo se transformou no mais próspero da Vila Nova de São João da Cachoeira.
Líder de sua classe, teve ativa participação política como vereador em mais de
uma legislatura, procurador fiscal da Câmara (1831), juiz de paz e juiz
ordinário, chefe de polícia (1837), entre outros. Apesar de filho de português,
suas ideias eram liberais, fato que o levou à intensa e representativa
participação na Revolução Farroupilha (1835-1845), despontando já no início da
contenda, juntamente com Manduca Carvalho e Gaspar Francisco Gonçalves, em
missão de pacificação na vizinha vila de Rio Pardo, quando lá não queriam
reconhecer a autoridade instituída pelo governo republicano. Foi major da
Guarda Nacional e, implantada a República Rio-Grandense, tornou-se ministro da
fazenda; deputado à Constituinte de Alegrete, superando em votos a Bento
Gonçalves da Silva, Domingos José de Almeida e Antônio de Souza Neto,
indiscutíveis líderes da revolução. No final, vendo derrotada a república,
começou a costurar o acordo de paz com o império, voltando da corte com as
condições de paz que precisou apresentar às lideranças em seus acampamentos.
Finda a revolução, integrou a comissão para liquidar as indenizações devidas e
pagar as dívidas públicas. Por estas atuações tornou-se o Embaixador da Paz.
Foi condecorado, por sua participação e esforço, como Comendador da Imperial
Ordem de Cristo, por decreto de 18 de outubro de 1855.
A
atuação política forte de Antônio Vicente da Fontoura rendeu-lhe inimizades. O
falecimento, ocorrido em 20 de outubro de 1860, se deu em decorrência do
atentado que sofreu dentro da Igreja Matriz, no início de setembro, quando lá
se realizavam eleições. Os mandantes do crime foram Hilário Pereira Fortes,
Felisberto Machado de Carvalho Ourique e Dr. José Pereira da Silva Goulart, seus
antigos opositores políticos. O infausto acontecimento desencadeou um longo
inquérito policial com repercussão estadual e nacional, considerando a importância das pessoas envolvidas e as implicações políticas.
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de fevereiro de 1861: abertura do inventário de Antônio Vicente da Fontoura
pela viúva Clarinda Francisca Porto da Fontoura. Os bens de raiz, ou seja, os imóveis
herdados foram: uma morada de casas sita na Rua Sete de Setembro (...) fazendo
esquina com a Rua de São José (...); um armazém em frente às casas e rua acima
referida; um armazém na Rua de São José contíguo às mesmas casas.
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Capa do inventário de Antônio Vicente
- Arquivo Público do RS |
14 de abril de 1877: falecimento da viúva Clarinda Francisca Porto da Fontoura. Foi
nomeado inventariante o genro José Antônio Machado de Araújo, comerciante,
casado com Vicência Cândida da Fontoura. Em 1882, Vicência Cândida morreu. Um
ano depois, cumprindo o protocolo de luto, José Antônio casou com Benta
Portinho, prima de Vicência e filha do General Portinho. Em 1908, José Antônio
morreu, herdando a casa sua viúva, Benta Portinho de Araújo.
1917: Benta
Portinho de Araújo vendeu a casa para Djalma Pereira da Silva. Esta transação
encerrou o ciclo de utilização da casa pela família de Antônio Vicente da
Fontoura.
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Jornal O Commercio, 20/6/1917, p. 1 - Arquivo Histórico |
4/10/1917: Djalma Pereira da Silva solicitou licença à Intendência para "reformar" a casa da Rua Sete de Setembro. A licença foi concedida dois dias depois.
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Requerimento para reformar a casa - IM/OPV/AOP/Req. Cx. 21
- Acervo documental Arquivo Histórico |
Apesar da vida construída em Cachoeira e da relevância de sua atuação como cidadão e homem público além fronteiras do município, poucos resquícios materiais da figura Antônio Vicente da Fontoura ainda existem. A casa, embora as mudanças determinadas pelo tempo, pelas modificações exigidas por lei e as sucessivas adaptações a que deve ter sido submetida ao longo de mais de 170 anos de história, paira sobre ela o espectro de Antônio Vicente da Fontoura e a vida familiar que suas paredes encerraram.
Por fim, fugindo da personagem histórica que lançou as fundações da casa 500, resta ainda a sua condição de edificação encravada no centro histórico, compondo a paisagem de casarões que se localizavam em torno do polo exercido pela Igreja Matriz, por muito tempo a maior e mais importante edificação urbana.
Lutemos pela preservação da casa 500 e do tanto que ela é capaz de nos contar. Seja sobre os seres que a habitaram, seja sobre os fatores que nela interferiram ao longo do tempo. Que logo ali adiante, quando o discernimento e o progresso material e intelectual nos mostrarem que o passado é o alicerce do futuro, não sejamos tomados pelo arrependimento que volta e meia nos assalta em cobranças.