Espaços urbanos

Espaços urbanos
Ponte do Fandango - foto Robispierre Giuliani

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Série Lojas do Passado: Casa Augusto Wilhelm


As primeiras referências ao comerciante Augusto Wilhelm já aparecem no início do século XX, quando na imprensa (jornal Rio Grande, 7/1/1909, p. 4) ele oferecia ao público um “elegante carro de praça com excelente parelha de cavalos”. A tabela de preços do serviço de transporte podia ser encontrada no carro e as corridas eram tabeladas com tempo estabelecido em trajetos que abrangiam os limites da cidade, alto do cemitério, porto da Aldeia, charqueada, volta da charqueada, da estação ferroviária ao centro da cidade, entre outros.

Augusto Wilhelm - Fototeca Museu Municipal
Carro de praça com parelha de cavalos - Fototeca Museu Municipal


Antes de abrir a casa comercial que levaria seu nome, Augusto era proprietário de uma marcenaria e depósito de móveis onde fabricava também caixões fúnebres de variados tamanhos, preços e adereços. O mais rico ataúde custava 175$000 réis e o mais simples 25$000 réis. Dos pobres e sem recursos, Augusto não cobrava nada além do material dos ataúdes. (O Comércio, 24/8/1910, p. 4).

Depois de estar residindo há 28 anos em Cachoeira e ter trabalhado 20 anos com marcenaria e oito com cultura do arroz, Augusto Wilhelm decidiu dedicar-se ao comércio estabelecendo uma casa para ferragens, vidraçaria e materiais de construção. Para isto, mandou construir um prédio à Rua 7 de Setembro n.º 148, cuja planta foi confeccionada pelo engenheiro-arquiteto Frederico Gelbert, de Porto Alegre.

Casa Augusto Wilhelm - 1922
- Grande Álbum de Cachoeira, Benjamin Camozato

A casa térrea com galerias, de 11 metros por 18, tem, internamente, mais de seis metros de altura, conforme descreveu o jornal O Commercio , na edição de 9 de julho de 1919, à página 1.

No dia 17 de janeiro de 1921, às 16h, com a presença de representantes das casas bancárias locais, do comércio, das indústrias e da imprensa foi solenemente inaugurada a casa de ferragens, louças e miudezas estabelecida num dos pontos mais centrais da cidade.

Augusto Wilhelm ficou à frente dos negócios pouco mais de seis anos. Em 1927, com seu falecimento, o negócio passou para as mãos do primogênito Erwino Wilhelm.

Foto Robispierre Giuliani

A Casa Augusto Wilhelm fez história no comércio cachoeirense. Famoso era seu slogan – “Insista, periga ter!”, tal era a variedade e quantidade do estoque de ferragens, louças, brinquedos e outras mercadorias que o cliente tinha à sua disposição. Na época das festas natalinas, um Papai Noel ofertava balas e doces às crianças que, empoleiradas nos ombros dos pais, aglomeravam-se defronte ao casarão fartamente iluminado à espera de seu quinhão de gostosuras.

O tempo e as conjunturas econômicas selaram as portas da tradicional Casa Augusto Wilhelm no princípio da década de 1980. Outras casas comerciais ocuparam o seu nobre espaço. Hoje, quando apesar das portas cerradas ainda tem força suficiente para seguir denominando aquele trecho como a “quadra da Augusto Wilhelm”, vale invocar o seu velho slogan para que o futuro lhe sorria.

Detalhe arquitetônico da Casa Augusto Wilhelm - Nelda Scheidt

domingo, 6 de maio de 2018

A casa 500



O destino da casa 500 parece estar selado. Mas antes de virar escombros ela quer contar a sua história. Quando talvez dela não haja mais nada além de fotografias esmaecidas, saibam os habitantes do futuro que um dia a cidade descartou de sua paisagem um legítimo documento histórico.


Casa 500 - Foto João Carlos Alves Mór


15 de abril de 1847: Antônio Vicente da Fontoura, liderança no desfecho da Revolução Farroupilha, de volta a Cachoeira e disposto a refazer a vida depois do longo envolvimento com a Revolução Farroupilha, pediu licença à Câmara Municipal para construir uma casa no terreno de sua propriedade, havido por doação de Manoel José Pereira da Silva, na Travessa de São José, hoje Rua Conde de Porto Alegre.

Antônio Vicente da Fontoura
- Fototeca Museu Municipal

13 de abril de 1849: a Câmara convocou o arruador para verificar a correção do alinhamento da casa que Antônio Vicente estava construindo na Rua do Loreto, tomando como parâmetro a casa de Miguel Pereira Simões, situada na mesma quadra, na Travessa de São José.

CM/OF/A-004, fl. 159 - Arquivo Histórico


14 de abril de 1849: o arruador comunicou á Câmara que a casa de Miguel Pereira Simões estava fora do alinhamento em relação à casa de “canto” (esquina) que Antônio Vicente estava construindo na Rua do Loreto (hoje Sete de Setembro).  

1850: o cadastro dos terrenos de Cachoeira, que ensejou a confecção do primeiro mapa, elaborado por João Martinho Buff, traz o registro do terreno n.º 153, pertencente a Antônio Vicente da Fontoura, situado na Rua do Loreto (atual Sete de Setembro), esquina Travessa de São José (atual Conde de Porto Alegre), com 95 palmos de frente por meia quadra de frente ao fundo. Confrontações: ao Sul, a Travessa de São José; a Oeste, a Rua do Loreto, e a Leste, o terreno n.º 221, dos herdeiros de Miguel Pereira Simões.

CM/S/SE/RCT-005 - Arquivo Histórico

Localização do terreno n.º 153 no mapa de J. Martinho Buff - 1850

O proprietário. Antônio Vicente da Fontoura é sabidamente um dos mais importantes vultos da história de Cachoeira e do Rio Grande do Sul. Seu papel na pacificação da província selou o fim da Revolução Farroupilha, não sem o protesto de muitos e a aclamação de outros, rendendo-lhe uma divisão na opinião dos historiadores.

Nascido em Rio Pardo a 8 de junho de 1807, era filho do português Eusébio Manuel Antônio, relojoeiro da Comissão de Demarcação de Limites subordinado ao Cel Francisco João Róscio, autor do projeto da Igreja Matriz em Cachoeira. Estabeleceu-se Eusébio, depois da demarcação, com relojoaria em Rio Pardo, onde casou em 2 de junho de 1798 com Vicênia Cândida da Fontoura. Foram os seguintes os filhos do casal: João (1805), Antônio Vicente (1807), Maria Egípcia (1810), Pedro Antônio (1811), Benta e José Antônio.

Quase menino, Antônio Vicente começou a trabalhar como caixeiro em um armazém de Rio Pardo e, aos 19 anos, veio para Cachoeira, empregando-se também como caixeiro.

Em 16 de janeiro de 1828, casou-se com Clarinda Francisca Porto, irmã de José Gomes Portinho. Desta união nasceram 15 filhos: Antônio (faleceu bebê - 1829), Clarinda Amália (1831), Josefa Leopoldina (1833), Gabriela Benta, Antônia Francisca, Antônio Eusébio (1836), José Propício (1837), Afonso Borges, Bento (1842), Maria Egípcia (1848), Vicência Cândida (1850), João Propício (1851), Francisco de Paula (1853), Luzia Sofia (1854, morreu com 7 anos) e Tito Castilhos (1856).


Clarinda e Antônio Vicente - provável foto de Luigi Terragno
- 1856 - Fototeca Museu Municipal


Em sociedade com um amigo, Fontoura adquiriu seu próprio armazém que logo se transformou no mais próspero da Vila Nova de São João da Cachoeira. Líder de sua classe, teve ativa participação política como vereador em mais de uma legislatura, procurador fiscal da Câmara (1831), juiz de paz e juiz ordinário, chefe de polícia (1837), entre outros. Apesar de filho de português, suas ideias eram liberais, fato que o levou à intensa e representativa participação na Revolução Farroupilha (1835-1845), despontando já no início da contenda, juntamente com Manduca Carvalho e Gaspar Francisco Gonçalves, em missão de pacificação na vizinha vila de Rio Pardo, quando lá não queriam reconhecer a autoridade instituída pelo governo republicano. Foi major da Guarda Nacional e, implantada a República Rio-Grandense, tornou-se ministro da fazenda; deputado à Constituinte de Alegrete, superando em votos a Bento Gonçalves da Silva, Domingos José de Almeida e Antônio de Souza Neto, indiscutíveis líderes da revolução. No final, vendo derrotada a república, começou a costurar o acordo de paz com o império, voltando da corte com as condições de paz que precisou apresentar às lideranças em seus acampamentos. Finda a revolução, integrou a comissão para liquidar as indenizações devidas e pagar as dívidas públicas. Por estas atuações tornou-se o Embaixador da Paz. Foi condecorado, por sua participação e esforço, como Comendador da Imperial Ordem de Cristo, por decreto de 18 de outubro de 1855.

A atuação política forte de Antônio Vicente da Fontoura rendeu-lhe inimizades. O falecimento, ocorrido em 20 de outubro de 1860, se deu em decorrência do atentado que sofreu dentro da Igreja Matriz, no início de setembro, quando lá se realizavam eleições. Os mandantes do crime foram Hilário Pereira Fortes, Felisberto Machado de Carvalho Ourique e Dr. José Pereira da Silva Goulart, seus antigos opositores políticos. O infausto acontecimento desencadeou um longo inquérito policial com repercussão estadual e nacional, considerando a importância das pessoas envolvidas e as implicações políticas.

26         de fevereiro de 1861: abertura do inventário de Antônio Vicente da Fontoura pela viúva Clarinda Francisca Porto da Fontoura. Os bens de raiz, ou seja, os imóveis herdados foram: uma morada de casas sita na Rua Sete de Setembro (...) fazendo esquina com a Rua de São José (...); um armazém em frente às casas e rua acima referida; um armazém na Rua de São José contíguo às mesmas casas.


Capa do inventário de Antônio Vicente
- Arquivo Público do RS


14 de abril de 1877: falecimento da viúva Clarinda Francisca Porto da Fontoura. Foi nomeado inventariante o genro José Antônio Machado de Araújo, comerciante, casado com Vicência Cândida da Fontoura. Em 1882, Vicência Cândida morreu. Um ano depois, cumprindo o protocolo de luto, José Antônio casou com Benta Portinho, prima de Vicência e filha do General Portinho. Em 1908, José Antônio morreu, herdando a casa sua viúva, Benta Portinho de Araújo.

1917: Benta Portinho de Araújo vendeu a casa para Djalma Pereira da Silva. Esta transação encerrou o ciclo de utilização da casa pela família de Antônio Vicente da Fontoura.

Jornal O Commercio, 20/6/1917, p. 1 - Arquivo Histórico

4/10/1917: Djalma Pereira da Silva solicitou licença à Intendência para "reformar" a casa da Rua Sete de Setembro. A licença foi concedida dois dias depois.


Requerimento para reformar a casa - IM/OPV/AOP/Req. Cx. 21
- Acervo documental Arquivo Histórico
Apesar da vida construída em Cachoeira e da relevância de sua atuação como cidadão e homem público além fronteiras do município, poucos resquícios materiais da figura Antônio Vicente da Fontoura ainda existem. A casa, embora as mudanças determinadas pelo tempo, pelas modificações exigidas por lei e as sucessivas adaptações a que deve ter sido submetida ao longo de mais de 170 anos de história, paira sobre ela o espectro de Antônio Vicente da Fontoura e a vida familiar que suas paredes encerraram. 

Por fim, fugindo da personagem histórica que lançou as fundações da casa 500, resta ainda a sua condição de edificação encravada no centro histórico, compondo a paisagem de casarões que se localizavam em torno do polo exercido pela Igreja Matriz, por muito tempo a maior e mais importante edificação urbana.

Lutemos pela preservação da casa 500 e do tanto que ela é capaz de nos contar. Seja sobre os seres que a habitaram, seja sobre os fatores que nela interferiram ao longo do tempo. Que logo ali adiante, quando o discernimento e o progresso material e intelectual nos mostrarem que o passado é o alicerce do futuro, não sejamos tomados pelo arrependimento que volta e meia nos assalta em cobranças.