Espaços urbanos

Espaços urbanos
Temporal no Centro Histórico - foto Francisco Nöller

segunda-feira, 27 de março de 2017

As dimensões do Château d'Eau


Château d'Eau - 25/3/2017 - ato de entrega do restauro
- foto Renato F. Thomsen
No dia 25 de março de 2017, o Château d'Eau foi reaberto à comunidade, depois de 10 meses de processo de restauração. Naquele dia, tive a honra de representar o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico-Cultural - COMPAHC em pronunciamento de saudação ao retorno de nosso principal cartão-postal à sua magnitude. Eis o discurso proferido na ocasião:  

Foto Renato F. Thomsen
                                                                                                            
A DIMENSÃO SIMBÓLICA. Muitos de nós sabíamos da dimensão simbólica do Château d’Eau, das mensagens subliminares que ele continha enquanto monumento em interação com o seu entorno, com a história e o povo de Cachoeira do Sul. Mas estávamos cegos e surdos... As camadas do tempo e da falta de cuidado encobriram a sua capacidade de dialogar conosco. Ou nós, obtusos, perdemos a sintonia com ele... Seu estado fez com que adquiríssemos um certo constrangimento de apresentá-lo aos visitantes, cartão-postal que sempre foi, e as fotos que registravam nossos melhores momentos passaram a buscar ângulos favoráveis.

A DIMENSÃO HISTÓRICA. 91 anos de história perpassam gerações. As primeiras, testemunhas da construção e inauguração do Château d’Eau em 1925, experimentaram a beleza do monumento em sua condição de recém-construído,  vivenciaram a movimentação dos operários, dos engenheiros, dos técnicos que realizaram o milagre da distribuição de água para um maior número de casas, ampliando a área atingida. Devem ter sentido a emoção de ver a colocação do deus Netuno, com seu tridente, dominar os céus e as ninfas que em torno dele se assentaram. Obras do mestre Giuseppe Gaudenzi executadas por João Vicente Friedrichs. Sua chegada, provavelmente na Estação Ferroviária, em grandes caixas de madeira protegidas de palha, não passaram despercebidas. Tais figuras mitológicas passaram a habitar o cotidiano, remetendo à antiguidade e aos mistérios de deuses e sábios do passado. Hoje nos surpreendemos o quanto de tempo, conhecimento e visão de futuro Walter Jobim, o engenheiro responsável pela parte arquitetônica da obra, e Antônio de Siqueira, pelos cálculos e estabilidade, empregaram para planejar este fascinante monumento. E somos levados a pensar que a funcionalidade do passado podia ser expressa em simbologia e beleza e que para isto era preciso domínio de técnicas sofisticadas em um mundo ainda com pouca tecnologia. Mas com o distanciamento temporal, assim como a estrutura física, também a relevância histórica precisa ser restaurada e repassada às gerações que não testemunharam o seu surgimento.

A DIMENSÃO DA RECUPERAÇÃO. A contemplação do Château d’Eau agora, em semelhante aspecto de quando foi inaugurado há quase 92 anos, nos leva a crer que assim como enquanto pessoas temos a capacidade de recuperar nossa auto-estima, também os monumentos, especialmente aqueles que traduzem o nosso meio, a nossa cultura e a nossa cidadania, ao serem restaurados em sua estrutura conferem à cidade a condição de reencontrar-se com sua história e tomar partido dela para acreditar em desenvolvimento, em superação e em um futuro de novas conquistas. O mestre Antônio Sarasá, protagonista do restauro do Château d’Eau, promoveu em cada um de nós, de acordo com a  capacidade de entendimento individual, uma espécie de comunhão entre a  materialidade do monumento e sua simbologia. E, por nossa conta, fomos além: não conseguimos mais dissociar a harmonia e a grandiosidade dos elementos que compõem o nosso centro histórico. Paço, Château d’Eau e Catedral são a expressão máxima do quanto a civilidade, o empreendedorismo e a visão prospectiva marcaram os movimentos dos nossos antepassados, ditando o presente e o futuro.

A DIMENSÃO DO AGRADECIMENTO. 25 de março de 2017. Dia de celebração e de agradecimento. À CORSAN – Companhia Riograndense de Saneamento, patrocinadora do restauro e ao Estúdio Sarasá, executor das obras, destacando Antônio Sarasá e sua equipe de operários, cuja interação com a comunidade foi especial;  ao Executivo Municipal em sua gestão anterior e atual; aos colegas conselheiros do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico-Cultural – COMPAHC, aos cidadãos voluntários pela preservação do patrimônio histórico e muito especialmente, in memoriam, a Nelda Scheidt e seu excepcional olhar sobre o Château d’Eau. Nelda, onde estiveres, ele voltou a realçar tudo aquilo que o teu olhar nos fez enxergar. E como agradecimento combina com pedido: Senhor Presidente da CORSAN, o Château d’Eau em sua funcionalidade trabalhava em conjunto com outra maravilha arquitetônica de nosso patrimônio: o reservatório enterrado da Praça Borges de Medeiros. Olhe por ele, ouça seu pedido de socorro e atenda-o.

A DIMENSÃO DA RESPONSABILIDADE. O COMPAHC, criado em 1981, sentia-se responsável e era cobrado como tal pela recuperação dos bens do nosso patrimônio histórico e tomou para si o compromisso de buscar meios de trazer o Château d’Eau de volta à condição de nosso principal cartão-postal, atendendo a cobranças da própria comunidade. Muitas reuniões de discussões, de estudos, de levantamento de patologias e análises de problemas estruturais foram realizadas. Alguns conselheiros, especialmente os que possuíam conhecimento técnico, ofereceram seus préstimos para que chegássemos ao dia de hoje. E agora que recebemos de volta o nosso ícone, joia preciosa do tesouro urbano, caberá a cada um de nós zelar pela sua integridade e entendê-lo como documento afirmativo de uma verdade: povo que guarda seu passado não perderá jamais a sua identidade.

Em nome do corpo de conselheiros do COMPAHC, meu muito obrigada! A vivência deste momento já o tornou inesquecível!

Cachoeira do Sul, 25 de março de 2017.

Mirian R. M. Ritzel,

Vice-presidente do COMPAHC.

Foto Renato F. Thomsen

No mesmo ato, o Château d'Eau foi declarado patrimônio histórico-cultural do Rio Grande do Sul, sendo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado - IPHAE, quando o Secretário de Estado da Cultura,  Vitor Hugo, acompanhado pela presidente do IPHAE, Míriam Sartori Rodrigues, assinaram com o prefeito e outras testemunhas a portaria de tombamento.

Secretário de Estado da Cultura, Vitor Hugo, prestes a assinar o tombamento do Château d'Eau
- foto Renato F. Thomsen

Para assistir ao pronunciamento, clique no link abaixo. Agradecimento a Renato F. Thomsen:

Recomendado: Château d'Eau: símbolos que vivem, de Flávia Sutelo - Estúdio Sarasá:

segunda-feira, 20 de março de 2017

Teatro Municipal - uma dívida que atravessou décadas

Pode-se dizer que Cachoeira teve tradição em erguer casas de espetáculos para o entretenimento da população. Tais casas logicamente representavam o seu tempo, ou melhor, atendiam ao tipo de diversão da época. Foi assim no século XIX, com os teatros, e no século XX, com os cinemas. 

A primeira grande casa do gênero que se levantou em Cachoeira foi o Teatro Cachoeirense, erguido antes da Revolução Farroupilha, com incríveis 500 lugares! Cabia quase toda a população da Vila Nova de São João da Cachoeira lá dentro! Há divergências a respeito da finalização desta obra, mas o fato é que em abril de 1830 houve a encenação de uma peça jocosa no seu palco, estando a assistência lotada. A classe comerciária, então chamada de caixeiral, foi a responsável por erguer o tal templo das representações, um forte sinal de que o comércio era a grande força econômica nos primeiros tempos, sendo fundamental para o crescimento e a ascensão da freguesia à vila e depois da vila à cidade!


Teatro Cachoeirense - fototeca Museu Municipal

Do Teatro Cachoeirense há poucas notícias. Seu prédio estava ali quando teve começo a construção da Casa de Câmara, Júri e Cadeia, em 1861, e bem mais tarde, no final de 1885, uma correspondência do delegado de polícia recomendava aos vereadores que gradeassem uma janela da cadeia que “dava para o pátio (...) de forma que qualquer preso não possa servir-se dela para galgar o muro que tem do lado do Teatro desta cidade”. Quase vinte anos depois, a Intendência contratou a construção de um muro “na parede do lado sul do teatro velho que foi  incendiado”. Esta informação de 1909 confirma, embora não haja documento descrevendo o sucedido, que o “teatro velho”, ou o Teatro Cachoeirense, havia sido consumido pelo fogo, provavelmente na virada do século XIX para o século XX.


A Intendência e o Teatro Cachoeirense - fototeca Museu Municipal

Talvez em razão da perda do primeiro teatro, o povo de Cachoeira logo começou a sonhar com outro. As tratativas para isto envolveram pessoas influentes da comunidade, de forma que o intendente David Soares de Barcellos, homem que se depreende fosse apreciador das artes, uma vez que mantinha uma orquestra familiar integrada pelos filhos, empenhou-se sobremaneira para a construção do Teatro Municipal. A Intendência passou a emitir apólices com o intuito de arrecadar recursos para a obra que foi inaugurada no Natal de 1900.


Construção do Teatro Municipal - fototeca Museu Municipal

Teatro e Intendência Municipal - fototeca Museu Municipal

Levando em consideração o investimento na construção e o pouco tempo de funcionamento do Teatro (menos de oito anos), arruinado pelo desmoronamento do telhado**, a ideia das apólices resultou em uma dívida aos cofres municipais que levou mais de 60 anos para ser saldada!

Sobre isto a edição do Jornal do Povo de 24 de setembro de 1961 estampou:

Prefeitura vem resgatando apólices emitidas em 1900 para a construção do Teatro Municipal

“No período de 1900 a 1924, o Município emitia um determinado número de apólices visando mealhar fundos para a compra de terrenos e a construção do Teatro Municipal e quartéis militares. As apólices emitidas em 1924 eram assinadas pelo então intendente Aníbal Loureiro, pelo contador Wladimir Nogueira e pelo tesoureiro Augusto Cézar de Lima, sendo seu valor nominal de 1.000,oo cruzeiros, rendendo juros de 10% aos adquirentes. Quanto às emitidas em 1900, eram do mesmo valor nominal, rendendo porém um menor juro anual (8%), sendo rubricadas pelo intendente David S. Barcellos, Galvão de Abreu, Alfredo Xavier da Cunha, Pedro Kieper, Manoel Paes de Freitas, José Friedrich e Júlio Jacobim*. A colocação desses valores permitiu ao Município colimar seus objetivos: os terrenos foram adquiridos. Um deles, entregue ao governo para a construção dos quartéis e que corresponde àquele onde até hoje se situam nossas guarnições militares. Sobre o outro imóvel ergueu-se o Teatro Municipal que funcionou até por volta de 1907 (...)."

E o jornal segue a matéria dizendo que até aquele momento o município estava resgatando essas apólices, sobre as quais pagava juros. Havia procedido ao resgate de 37, restando ainda 44 a serem resgatadas...

Sem condições de recuperar os estragos advindos do desabamento, a Intendência passou o prédio em 1913 para o governo estadual para que nele fosse instalado o fórum e o Colégio Elementar Antônio Vicente da Fontoura. 

Como se vê, grande foi o investimento, pequeno o retorno do portentoso prédio do Teatro Municipal. A dívida contraída pela municipalidade com as apólices a juros demorou décadas para ser saldada. Mesmo assim é de se lamentar que o prédio tenha desaparecido e, se porventura ainda existisse, comporia com grande garbo o já rico conjunto arquitetônico de nosso Centro Histórico.

*Foi mantida a grafia utilizada pelo jornal nos nomes próprios referidos na matéria transcrita.
**http://historiadecachoeiradosul.blogspot.com.br/search?q=desmoronamento+do+teatro+municipal

segunda-feira, 13 de março de 2017

Ruben Otto Prass - simplesmente genial, genialmente simples

Ruben Prass na direção do Prass 1956 - acervo familiar

Alguém um dia disse que “os homens vão, mas ficam suas obras”. De Ruben Otto Prass, que partiu no dia 11 de março de 2017, pode-se fazer um inventário enorme de obras, fruto da sua genialidade e de um espírito inventivo advindo da dedicação extrema e incansável à sua paixão: a eletricidade.

Desse homem que viveu 92 anos produtivos não serão lembradas somente as obras, boa parte delas em pleno funcionamento dentro do recinto do seu lar e da esposa Ieda, mas também a fama da genialidade e a associação popular de sua figura à do Professor Pardal dos quadrinhos de Walt Disney! Fama que, aliás, não é desmedida, uma vez que ele foi o fabricante do primeiro carro artesanal do Brasil, o Prass 1956, carinhosamente apelidado pela família de “autinho”, e que ganhou divulgação nacional em 2009, quando o programa Auto Esporte, da Rede Globo, levou ao ar a história do carro construído a partir do motor de uma motocicleta!

Pela residência dos Prass vários inventos de Ruben garantiram a facilitação das atividades domésticas da D. Ieda, como fornecimento de água quente para toda a casa por meio da captação de energia solar, elevador feito com correias de bicicletas para condução ao terraço, onde fica o varal, climatização da casa inteira com um único aparelho de ar-condicionado, que também funciona como secadora de roupas, e até um aparelho de ultrassom para espantar mosquitos!

Nascido em Candelária no dia 5 de junho de 1924, filho de Rodolpho Prass e Elizabetha Jensen Prass, Ruben Otto veio para Cachoeira, onde trabalhou, do final dos anos 1930 até meados dos anos 1940, na Casa Elétrica de Guilherme Matte. Em 1949, com o irmão gêmeo Reimar Hugo, instalou a firma Centro Rádio Elétrico. E como eletrotécnico, prestou muitos e variados serviços: instalações elétricas em prédios e residências, manutenção técnica de emissoras de televisão e rádio, assistência a casas de cinema, como o Cine Ópera Astral, desde a sua abertura em 1953 até o seu fechamento em 2003, e recentemente do Cine Via Sete. A modernidade e a evolução tecnológica, antes de assustá-lo, o estimulava em sua genial capacidade de entender os mistérios da eletroeletrônica.

Trabalhando até o fim - 1/3/2017 - foto Elizabeth Thomsen

A trajetória de vida de Ruben Otto Prass não se esgota em sua extrema capacidade profissional e criativa. Ganha projeção também e muito significativamente no envolvimento comunitário e nas ações voluntárias em prol de entidades e espaços públicos.
Voltando à frase que alguém disse: “os homens vão, mas ficam suas obras”, de Ruben Otto Prass ainda é preciso dizer mais. Que fique registrado o sorriso franco e a imensa simplicidade, a família que constituiu com Eli Ieda Homrich Prass (Elizabeth, Lúcia, Roberto, Elaine e Luciana), as infindáveis horas que passou a consertar e criar, as soluções geniais que encontrou para os desafios diários. Ficou dele o legado de homem simplesmente genial e genialmente simples que tinha o dom sofisticado de inventar e a singeleza de alimentar pássaros pela manhã. 
Nota: este texto é para Elizabeth Thomsen, companheira de lutas em prol da preservação da memória de Cachoeira do Sul e, em seu nome, extensivo a toda a família de Ruben Otto Prass.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Hilda Goltz - uma grande mulher grande

Hilda Goltz, nascida em Cerro Branco, então distrito de Cachoeira, em 29 de junho de 1908, poderia renascer hoje e ainda assim chamar a atenção, apesar do distanciamento temporal e da escalada da mulher na sociedade de lá para cá.


Hilda Goltz em foto de 2008
A personalidade forte de Hilda já dava sinais desde a sua tenra idade e, talvez por ser a quinta filha dos sete que Carlos Goltz e Ida Stecker Goltz tiveram, a menina era satisfeita em seus desejos. Aos seis anos, interessada em reproduzir o universo que a cercava, começou a moldar com o barro vermelho de um riacho figuras dos animais que havia nos campos de seus pais. Na adolescência, descobrindo que amigas que estudavam em São Leopoldo tinham aulas de pintura, pediu aos pais que lhe comprassem tintas. E assim começou a pintar, realizando-se quando encontrou em Cachoeira o pintor, fotógrafo e proprietário de ateliê Frederico Guilherme Lobe, com quem passou a ter aulas. Lobe revelava e fazia cópias de fotografias, arte na qual Hilda também se iniciou. E deve ter sido ótima aluna porque quando Lobe foi embora para Porto Alegre, ela assumiu as suas aulas na cadeira de Desenho da Escola Complementar de Cachoeira.


A jovem Hilda Goltz - fototeca Museu Municipal

Por esta época, abriu seu próprio ateliê de fotografia, no sobrado Barcellos, na Rua Sete de Setembro. Dentre a clientela, famílias importantes de então, como os Ilha e os Wilhelm.


Sobrado Barcellos (pertencia à família de David S. de Barcellos)
- fototeca Museu Municipal


Lya, Rolf e Ila Wilhelm fotografados por Hilda Goltz
- fototeca Museu Municipal


Mas Cachoeira era pequena para as pretensões artísticas de Hilda Goltz. Certamente também pequena para a mulher avançada que era, a ponto de escandalizar alguns ao se dirigir sozinha às lavouras de arroz com telas, pincéis e tintas para registrar os trabalhadores... E não conseguiria passar despercebida por ninguém, haja seus quase dois metros de altura...



Hilda Goltz com tela e pincéis
- fototeca Museu Municipal

De Cachoeira seguiu para Porto Alegre e de lá para o Rio de Janeiro, onde foi introdutora e primeira professora da cadeira de Cerâmica da Escola Nacional de Belas Artes da Universidade do Brasil. Em seu ateliê, no bairro de Ipanema, produzia peças que ganharam exposições por todo o país e fora dele. Mais tarde mudou-se para Miguel Pereira, região serrana do Rio, para Brasília e finalmente para a terra natal, onde faleceu aos 101 anos em 12 de outubro de 2009.


Exposição comemorativa do centenário de Hilda Goltz no Museu Municipal

Hilda Goltz ousou ser diferente e associou à sua grande estatura a trajetória de mulher que não se curvou aos ditames do século em que nascera. Venceu-o, ousando ser protagonista na vida e na arte.

Nota: em 2008 o Arquivo Histórico e Museu Municipal lançaram o caderno de história n.º 4 sobre Hilda Goltz, em comemoração ao seu centenário de nascimento, com a participação da homenageada.