Espaços urbanos

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Ponte do Fandango - foto Robispierre Giuliani

sábado, 20 de outubro de 2018

Belezas da política


A política, seja em que tempo for, atribui aos indivíduos que se confrontam em ideias e atos, todo tipo de “qualidades”, sendo este termo genérico empregado tanto para “qualidades de fato” como para defeitos. Nas disputas por cargos eletivos, os políticos costumam explorar os “calcanhares de Aquiles” de seus adversários. Esta prática, ainda que velha, segue aplicada plenamente.

No ano de 1913, duas grandes e eminentes personalidades da política local, ainda que oriundas das mesmas fileiras partidárias, por desavenças pessoais e disputas de poder, passaram a se atacar mutuamente, utilizando-se dos dois principais jornais que circulavam na época.

O mais antigo deles e de ampla circulação, o jornal O Commercio (1900-1966), traz em sucessivas edições uma seção livre intitulada Bellezas do Isidorismo, assinada por Arlindo Leal. De uma forma satírica e ácida, o autor faz uma análise das ações e obras do Coronel Isidoro Neves da Fontoura, então chefe político do Partido Republicano Rio-Grandense em Cachoeira e intendente municipal até o ano anterior.

Cel Isidoro Neves da Fontoura 
- Fototeca Museu Municipal

Jornal O Commercio, Cachoeira, 12/2/1913, p. 1
- Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico

Uma das grandes e polêmicas iniciativas do intendente Isidoro foi a aquisição da área em que seria implantado o Bairro Rio Branco, referido no texto de Arlindo Leal como “A Cidade Nova”:

Despertou um dia El-Supremo com ideias de fundar uma cidade nova. Imediatamente foi adquirida uma grande chácara* nas proximidades da via férrea. O engenheiro da Intendência traçou sobre o terreno os alinhamentos da nova cidade e grandes escavações já foram feitas. Uma casa já foi construída e talvez outras o sejam. Porém, o filho de El-Supremo, o príncipe do automóvel negro, o aiglon**, devia ser o principal proprietário do bairro novo.
A banca de advogado do Príncipe, florescendo em dezenas de causas gordas, era rendosa. Estava o aiglon em condições de edificar palácios e casas de aluguel. Foram-lhe, pois, adjudicados os terrenos melhor situados e que menos escavações exigiam.
O secretário do aiglon, o Sr. Odon*** também foi contemplado com dois bons terrenos apesar... de ter sido cadete. Tudo se arranja numa administração modelar.
Apenas nos acessos de enxaqueca d’El-Supremo, a moral republicana, sonhada por Ferreira Leal****, por Policarpo*****, por ele e tantos outros, nos conciliábulos do primeiro clube republicano, prescrevia a livre concorrência pública!
O velho republicano entrouxava as ideias do passado para ver seu filho feliz, endinheirado, de automóvel. E o filho lhe prescrevia Pyramidon****** para a enxaqueca. Essa persiste, porém, porque essa droga não cura de abatimento moral; persiste e persistirá ainda enquanto houver a luta entre a pureza do passado remoto e a ganância do presente. O mal emana do moral e não do físico; a consciência vibra sempre.
Nenhuma conta apresentarei à S. Excia. por este receituário.

(O Comércio, 12/2/1913, p. 1)

Pyramidon - gettyimages

*Chácara pertencente a Maria Egypcia da Fontoura, filha do Comendador Antônio Vicente da Fontoura.
**aiglon: filhote de águia em francês.
***Odon Cavalcanti Carneiro Monteiro, advogado e colega de banca de João Neves da Fontoura; ocupou vários cargos públicos, inclusive o de secretário da Intendência entre 1910 e 1914.
****João José Ferreira Leal, fundador e primeiro presidente do Clube Republicano de Cachoeira (1882).
*****Polycarpo Alvares da Cruz, fundador do Clube Republicano.
******Pyramidon: remédio para enxaqueca

Por sua vez, o jornal do Partido Republicano, o Rio Grande, em sua edição de 23 de fevereiro de 1913, rebate as acusações de Arlindo Leal com o seguinte título: “Desmentido formal”.


Jornal Rio Grande, Cachoeira, 23/2/1913, p. 1
- Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico

Ao deputado Dr. Arlindo Leal nos aleives que em estilo mazorro* e arreeiro** tem assacado contra a respeitável personalidade do coronel Isidoro Neves da Fontoura e contra a sua administração – houve por bem envolver o meu obscuro nome, dizendo que fora eu contemplado com dois bons terrenos na larga faixa de terra adquirida por aquele ex-intendente para o patrimônio do município.
Para que fique evidenciado até onde vai o cinismo estanhado do ofensor, dirigi ao Dr. Balthazar de Bem, atual intendente, o seguinte requerimento:

Sr. Dr. Balthazar de Bem

Peço-lhe a fineza de dizer ao pé deste: 
a) se não é verdade ter o infraescrito comprado terrenos à Intendência Municipal, situados no bairro Rio Branco, ao preço de 10$000 o plano;
  b) se em idênticas donições foram comprados terrenos no mesmo bairro pelos Srs. José Fernandes, Dr. João Neves, Cacílio Menezes, Antonio Lara, Germano Hoffmann e outros;
  c) se na sua própria administração não foi por mim comprado um outro terreno pelo mesmo preço, sendo que este mesmo terreno esteve até então à venda, sem aparecer comprador;
  d) se, finalmente, convizinhando aos terrenos por mim comprados, outros existem por preço igual aos que têm sido estipulados até hoje por esta Intendência aos adquirentes.
Subscrevo-me amº e ad.
Odon Cavalcanti

Odon Cavalcanti 

O Dr. Balthazar de Bem mandou que o Secretário da Fazenda informasse. A informação foi do seguinte teor:
Cumprindo vosso despacho supra, tenho a informar que revendo o talão dos recebimentos das importâncias provenientes das vendas de terrenos municipais, verifiquei serem verdadeiros os itens formulados pelo requerente.

Secretaria da Fazenda Municipal, 21 de fevereiro de 1913.

Hermilo Pohlmann

Aí está a que se reduz a acusação de Arlindo Leal atinente à defraudação que fez do patrimônio do município, o benemérito Coronel Isidoro Neves... Certamente todas as demais afinam pelo mesmo timbre.
Aproveito a boa oportunidade para apresentar ao ex-chefe político e ex-intendente os meus extremados protestos de solidariedade, hoje que ele não tem a mínima parcela de mando em política ou administração, e que está sendo vilmente atacado pelo mesmo homem que lhe tecia exaltados elogios em discursos retumbantes, ao tempo em que era chefe político e intendente municipal, como é público e notório nesta cidade.
Já era um vezo*** dos incas atirar pedras ao sol que se ocultava e que lhes dera luz e calor.

Odon Cavalcanti

(Rio Grande, 23/2/1913, p. 1)

*mazorro: grosseiro
**arreeiro: condutor de bestas, tropeiro
***vezo: mau hábito

Como se vê, natural seria que os republicanos se defendessem das acusações de Arlindo de Freitas Leal, outro republicano combativo, cuja experiência política passava pela Assembleia, como deputado estadual, e conselheiro do município entre 1908 e 1912. O engenheiro Arlindo Leal também era um dos mais bem sucedidos produtores de arroz do município, com grande prestígio e fortuna. Nos dias de hoje, a disputa acirrada facilmente seria classificada como “briga de cachorro grande”. Au au!