Há na fototeca do Museu Municipal, o melhor banco de imagens de
Cachoeira do Sul, algumas fotografias de desastres ferroviários, acontecimentos
não tão incomuns no tempo em que os trens eram o principal meio de transporte.
A questão é que há dúvidas a respeito da época destas fotos, de forma
que toda vez que uma notícia do gênero aparece, surge esperança de finalmente
associar o fato à imagem.
Na coleção d’O Commercio, edição de quarta-feira, 24 de janeiro de 1912,
uma notícia chama a atenção, podendo muito bem ser o elo entre as imagens que
seguem e o relato publicado naquele jornal. Aliás, do relato se pode dizer que foi de fato uma cobertura jornalística, nos moldes das que se veem hoje, e que não eram muito comuns naqueles tempos, ao menos na imprensa local.
Desastre ferroviário - fototeca Museu Municipal |
Domingo último,
pelas 10h30 da manhã, circulou nesta cidade a notícia de ter ocorrido um grande
desastre sobre a ponte de ferro do arroio Botucaraí, no 1º distrito municipal.
Alguns
mais incrédulos ainda gracejavam do fato, lembrando a circunstância de que não
corriam trens aos domingos e querendo levá-lo à conta de alguma invenção de mau
gosto.
Imediatamente
procuramos o nosso amigo Franklin Martins Ferreira, que constava haver sido um
dos passageiros do trem, e o qual, ainda visivelmente apavorado e com tremores
na voz, confirmou-nos a verdade da triste nova.
A
fim de bem informarmos os nossos leitores sobre o triste acontecimento,
dirigimo-nos, às primeiras horas da tarde, ao local do desastre, onde colhemos
as seguintes notas:
Sábado
último saiu de Montenegro, com destino a Santa Maria, o trem de carga nº 206,
que pernoitou na estação do Couto, donde partiu na manhã de domingo, 21 do
corrente, levando mais de 170 toneladas de carga, distribuídas em 10 vagões.
Às
7h10 partia o referido trem da estação do Bexiga, onde embarcaram, no carro
auxiliar, os Srs. Franklin Martins Ferreira e Aristides Brum, representantes
comerciais, vindo no mesmo carro o Sr. Antonio da Silva Cidade, chefe do trem,
e o Sr. Mathias Ruschel Sobrinho, negociante na Estrela.
Devido
à extraordinária quantidade de carga, o trem corria com velocidade inferior à
costumeira.
Pelas
8 horas, depois de ter entrado na ponte de ferro do Botucaraí, sita a 13
quilômetros desta cidade, entre os quilômetros 127 e 128, o maquinista João
Machado viu subitamente afundar-se no primeiro vão o carro de carga da frente
que, com o seu peso, ia arrastando o “tender”*.
O
maquinista, num movimento impulsivo, abriu o regulador da máquina, dando-lhe
assim toda a força e conseguindo que esta não deixasse cair na profundidade o tender, cujas rodas traseiras foram,
entretanto, arrebatadas, sendo o ferro de ligação com o carro rompido pelas
duas forças que se contrariavam e ficando por cima do segundo vão da ponte,
cuja altura calculamos ser de 8 a 10 metros.
Vinham
também no trem o foguista Pedro Antão de Faria e os guarda-freios Lino Alves e
Guilherme.
Mais
um momento e os passageiros do carro auxiliar sentiram repetidos solavancos,
sendo as suas pernas jogadas violentamente umas contra as outras. Assustando-se
com o ruído que vinha da frente, atiraram-se pela porta do carro auxiliar os
três passageiros, sendo em primeiro lugar o Sr. Aristides, depois os senhores
Franklin e Ruschel e, por último, o chefe do trem, que nada sofreram, graças à
marcha vagarosa do mesmo, e tiveram então ocasião de presenciar um espetáculo
horrível: todo o material do primeiro vão da ponte tinha desabado, e com ele
haviam caído os 10 carros de carga, que atulharam parte do leito da margem
esquerda do Botucaraí, onde atualmente não corre água. O auxiliar em que vinham
teve as rodas fronteiras desencarriladas para a direita, pendendo parte da
frente para a profundidade que havia tragado os outros carros.
O
guarda-freios Lino Alves, preto, de 38 anos e que tem mulher e filhos em Santa
Maria, ficou soterrado entre os escombros e, ao que parece, teve morte rápida,
ficando uma perna fraturada e graves contusões na cabeça, principalmente no
rosto. Foi encontrado de cabeça para baixo, dentro de uma pequena poça d'água
estagnada que ainda ali havia.
Do
guarda-freio Guilherme pode-se dizer que esteve, no terrível momento, com toda
a presença de espírito e extraordinariamente animado do instinto de
conservação. Vinha no quarto carro e quando percebeu que o primeiro foi-se
fragorosamente sumindo, correu desabridamente em direção aos carros traseiros,
saltando-os um a um e também pulando de cima do carro auxiliar para o trilho,
fora da ponte.
Os
passageiros foram conduzidos em “trolly”**
para esta cidade...
Quando,
pelo trilho, um pouco antes das 2 horas, dirigíamo-nos ao Botucaraí,
encontramos nas proximidades da estação desta cidade o trolly que conduzia o infeliz guarda-freios Lino Alves, que
vinha amortalhado com ramos verdes, a fim de que sobre seu corpo não incidissem
demasiadamente os ardentes raios solares.
Pelas
4 horas da tarde chegamos ao local do sucesso e, transportando-nos em canoa
para a margem esquerda do Botucaraí, tivemos ocasião de apreciar “de visu”*** os extraordinários
prejuízos materiais que causou o comentado desastre.
Dos
sete primeiros carros nada mais restava que lembrasse vagamente as suas formas.
Um amontoado de escombros: sacos de sal e de farinha de trigo, querosene e
piche derramados em promiscuidade com pedaços de trilho e rodas torcidas,
telhas de zinco do teto e tábuas das paredes dos carros, molduras de cimento
para frontispícios, dormentes de madeira e guarnições de ferro da ponte, tudo
isto dava um feio aspecto àquela solidão, em cujas imediações as águas do
Botucaraí rolam preguiçosamente.
Os
três últimos carros ainda ficaram com parte de sua aparência, se bem que muito
danificados e talvez de todos imprestáveis, pois derramaram e estragaram a mor
parte das mercadorias. Estes penderam para a esquerda (referimo-nos à direção
que seguia o trem) sendo que o último ficou colocado obliquamente, com uma
extremidade contra o paredão em que principiava a ponte, impedindo assim a
queda do carro auxiliar.
A
máquina também desencarrilou para a direita, ficando com o tender no meio da ponte, que tem três
vãos e mede 70 metros de comprimento, mais ou menos.
Muitos
curiosos desta cidade e também algumas famílias da vizinhança afluíram ao
teatro do acontecimento imprevisto, que causou prejuízos de grande monta à
viação férrea e igualmente ao comércio.
As
guarnições de ferro dos dois lados do primeiro vão da ponte, que são de chapas
de ferro justapostas, tendo mais de um centímetro de grossura cada uma, foram
arrancadas totalmente com o peso e a violência dos carros em queda.
O
primeiro pilar, que é de pedra bruta e de sólida construção, foi também
danificado pelo choque sofrido, com certeza, pela queda do carro, ficando muito
abalado na base.
Anteontem
começaram os trabalhos de remoção das cargas e do material estragado, sendo a
condução de passageiros feita por dois trens, que paravam de um e outro lado da
ponte.
Para
o transporte dos passageiros pelo rio e a baldeação das suas bagagens foi
improvisada uma barca construída sobre três canoas, enquanto não estiver
reconstruída a ponte, que igualmente ficou um pouco estragada na parte que fica
sobre o segundo vão.
Qual
a causa do desastre? Sobre este ponto não há certeza absoluta, pois ainda no
dia anterior passaram os trens de passageiros, nada parecendo haver de anormal.
Calcula-se,
porém, que a forte chuva de 5 do corrente, em razão da qual tantos cursos
d'água cresceram extraordinariamente, houvesse concorrido para eluir**** o
paredão de pedra da margem esquerda do arroio.
Os
passageiros que anteontem seguiram para o interior chegaram com três horas de
atraso à estação desta cidade.
Nesse
dia houve ainda maior afluência de curiosos à ponte do Botucaraí, que desta
cidade e de outros pontos seguiram a cavalo, em aranhas e carroças, e muitos
pelo trem.
Curiosos observam o lugar do acidente - fototeca Museu Municipal |
*tender: vagão que transporta o combustível.
**trolly: carrinho sobre trilhos utilizado para transportar material da estrada de ferro.
***de visu: à vista, ao vivo.
***de visu: à vista, ao vivo.
****eluir: separar.