Espaços urbanos

Espaços urbanos
Ponte do Fandango - foto Robispierre Giuliani

domingo, 1 de dezembro de 2024

Sumiu o piano!

Cachoeira, 1906. Um piano existente no Teatro Municipal sumiu. A partir disso, uma enrascada surgiu. Afinal, que fim levou o piano?

Mentirosos relapsos. Um resumido grupo de cafajestes, sem a mínima cotação social, adulterando o fato da transferência de um piano que permanecia no Teatro para os salões do Clube Comercial, aliás legítimo coproprietário do aludido piano, por cessão de direitos que lhe fizeram diversos cidadãos caracterizados, anda a espalhar miseráveis mentiras nesta cidade e até fora dela, por meio de falsíssimos telegramas dirigidos aos jornais.

Um dos tais cafajestes teve a lembrança de telegrafar à Gazeta do Comércio, de Porto Alegre, mentindo desbriadamente e envolvendo entre os torpes embustes o nome de uma autoridade local, inteiramente alheia ao fato narrado no recado expedido. A desbragada calúnia provocou justa revolta, e um dos nossos companheiros resolveu interpelar o conhecidíssimo chefe da patrulha e indigitado autor do telegrama aleivoso.

Como era de esperar, este membro proeminente da patrulhinha dos linguarudos e boateiros negou abertamente a autoria que se lhe havia imputado, chegando a empenhar nesse sentido sua palavra. E ficam assim os homens de bem e as autoridades íntegras expostos às imputações covardes e anônimas de vigaristas documentados e caloteiros sem pudor. Mas, cuidado! A paciência pode vir a esgotar-se e então colocaremos na mesa das autópsias públicas um a um o cadáver de todos esses repulsivos arautos da falsidade e da calúnia. (Jornal Rio Grande, 31/5/1906, p. 1, sem autoria).

Maravalha...

Bondosos leitores e amáveis leitoras!

Para cavaqueá-los simplesmente e mui piano, é que de novo nos achamos diante de vós! Sim, muito pianamente, porque somos um tanto tímidos e receamos meter-nos em altas cavalarias, maximé porque não conhecemos bem o terreno onde pisamos.

Somos novos no ofício e por conseguinte iremos maravilhando conforme Deus nos ajudar, sem ultrapassar os limites da nossa linha de conduta, para imiscuir-nos nas rusgas dos outros ou ocupar-nos da vida alheia.

Nada temos que ver com o que se passa em casa de Pafúncio ou na de Pancrácio. Não nos move o interesse de saber se Fulano abiscoitou o instrumento de Sicrano, porque também se julga com direito de posse do supradito cujo.

Toquem para lá a sua solfa de fá [rasgado no original], porque nós, alegres mancebos, só gostamos de surdina, e isso mesmo tocada alta noite, à janela da eleita de nosso coração, ainda de modo que os carrancas não ouçam.

Essa música que os filhos da Candinha andam por aí tocando, de viela em viela, não nos agrada, apesar de asseverarem os maestros que é tocada piano... piano.

Agrada-nos muito mais ouvir a orquestra que ocupa o coro de nossa matriz, nessas noites de novenas em honra ao Divino Espírito Santo. Composta de profissionais e de alguns novos elementos, como sejam diversas senhoritas e meninas que dedicam-se por amor à sublime arte de Mozart, há nos deliciando os ouvidos com seu concerto de vozes e instrumentos. (Jornal O Commercio, 6/6/1906, p. 2, assinado por Eugenio & Vicente).

As duas repercussões acima foram publicadas nos dois principais jornais que circulavam na Cachoeira de 1906. Como O Commercio e o Rio Grande digladiavam-se com certa frequência, é de se dar um desconto nas afirmações que um e outro fizeram.

No entanto, buscando notícias anteriores ao fato da retirada do piano das dependências do Teatro Municipal, é possível depreender quem foi seu proprietário original.

Existia em Cachoeira, naquele começo de século XX, uma sociedade musical que tomou o nome de Grupo Carlos Gomes, fundada em 20 de outubro de 1903, composta por 21 figuras que tocavam instrumentos de metal e de corda. Ora, desde o Natal de 1900, o lugar em Cachoeira destinado a exibições artísticas era o Teatro Municipal, localizado nas imediações da Igreja Matriz e da Intendência Municipal, hoje Praça Dr. Balthazar de Bem. 

Teatro Municipal - Fototeca Museu Municipal Edyr Lima - MMEL

Em abril de 1904, já contando várias exibições e tendo aumentado para 36 figuras, o Grupo Carlos Gomes adquiriu um piano, estreando-o, como não poderia deixar de ser, em concerto no Teatro Municipal.

Por razões óbvias, o piano ficou estacionado no teatro, tendo para tal o grupo obtido autorização do intendente, o Coronel David Soares de Barcellos. Lá serviu para muitas apresentações. Entretanto, em 26 de maio de 1906, indignados com a retirada do piano das dependências do teatro e depósito do instrumento no Clube Comercial, o diretor do Grupo Carlos Gomes, Abelino Vieira da Silva, e outros integrantes se dirigiram ao intendente, Dr. Cândido Alves Machado de Freitas, para saberem se havia partido dele a ordem de retirada. Cândido consultou o subintendente e este respondeu que o piano depositado no teatro não estava sob a responsabilidade da Intendência, não cabendo à administração municipal o compromisso de guardá-lo. Sendo assim, autorizou a sua retirada pela requisição que fez o Clube Comercial.

O intendente que autorizou a guarda do piano no Teatro Municipal
O Commercio, 21/9/1904, p. 1

Na ocasião em que o piano foi retirado do Teatro Municipal por representantes do Clube Comercial, o Grupo Carlos Gomes estava em processo de liquidação, sendo representado pelo liquidante Abelino Vieira e Arthur Macedo, ambos grandes credores da sociedade musical. Teria sido esta a razão de representantes daquele clube acharem-se no direito de levar o piano? Por sua vez, os liquidantes e grandes credores viram no piano um recurso para diminuir seu prejuízo?

O certo é que pouco tempo depois, tanto o Clube Comercial primitivo (outro clube com a mesma denominação surgiria em 1924) quanto o Teatro Municipal deixariam de existir. E o piano aonde foi parar?

Para saber mais sobre esta história e conhecer os documentos que a ela se referem, consulte: http://arquivohistoricodecachoeiradosul.blogspot.com/2017/07/um-piano-em-questao.html


quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Os hotéis Müller

Muitos foram os estabelecimentos em Cachoeira que ofereceram hospedagem para os viajantes. Nos primórdios, os pousos se davam sob o abrigo de uma árvore, num galpão de estância ou na casa de algum conhecido. Com o passar do tempo, hospedeiros passaram a se organizar para a recepção e acomodação em locais específicos e com o mínimo de conforto àqueles que estavam fora de suas cidades de origem. 

Graças ao acervo de imprensa existente no Arquivo Histórico foi possível levantar propaganda de dois antigos estabelecimentos do gênero: os hotéis Brazil, de Francisco Negroni, e Democrata, de Germano Wergkerle, ambos em funcionamento no ano de 1890.

Anúncio do Hotel Democrata - Jornal 15 de Novembro (1890)
- Acervo de Imprensa do AHMCS

Outro dos mais antigos e longevos é o Hotel Müller, que se localizava, desde o final do século XIX, na Rua Saldanha Marinho n.º 112, esquina com a Rua Tiradentes

Na publicação Cachoeira Histórica e Informativa, de Vitorino e Manoel Carvalho Portela, em sua segunda edição (1942), o Hotel Müller é referido dentre as firmas ativas da cidade e atendendo no mesmo endereço com o telefone número 76. Era seu proprietário Walther José Müller que comunicara na imprensa, dois anos antes, ter aberto ao lado do novo Hospital de Caridade um hotel com esta denominação e que o estabelecimento se achava confortavelmente aparelhado, atendia às exigências da higiene e oferecia banhos quentes e frios. Muito provavelmente o Hotel Müller noticiado era sucessor do antigo, o que se depreende pela manutenção do nome e endereço originais. 

Hotel Müller - seria o da esquina da Rua Saldanha Marinho com Tiradentes? 
- Acervo Guido Milan Böck

Mas havia outro Hotel Müller. Depois de ter adquirido o antigo Hotel Schreiner, Alberto Müller abriu o Hotel Müller em 1924, na Rua Júlio de Castilhos, conforme noticiou O Commercio em 22 de outubro daquele ano. 

Além dos dois hotéis de nome Müller, um próximo ao Hospital e outro na Rua Júlio, havia  também uma Pensão Müller, do casal Otto e Adela Müller. O casal anteriormente fora proprietário de um outro Hotel Müller, na mesma Rua Júlio de Castilhos, e que depois foi vendido para Alfredo Schott. Com o negócio, Otto e Adela instalaram a pensão ao lado do hotel vendido, junto ao potreiro que a família mantinha para que os hóspedes do hotel e da pensão pudessem deixar os seus animais de montaria ou transporte de carga. A porteira do potreiro ficava voltada para a Rua Juvêncio Soares, quase na junção com a Rua D. Pedro II.

O comprador do Hotel Müller, Alfredo Schott, o repassou para o genro Elemar Schiefelbein, que trocou o nome da casa de pouso para Hotel Avenida, denominando-o depois Everson Palace Hotel, estabelecimento até hoje existente.

Everson Palace Hotel - Trivago

A história dos hotéis Müller ainda está em aberto. Contribuições para expandi-la ou aperfeiçoá-la serão muito bem-vindas!

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Série Lojas do Passado: José Dini & Cia.

José Dini - Monte Domecq (1916)

Da Toscana, Itália, para o Brasil. Este foi o caminho tomado pelo italiano Giuseppe Dini, natural de Castiglione di Garfagnana, em 1886. Contava 24 anos quando, depois de percorrer diversas cidades como mascate, estabeleceu-se em Cachoeira com comércio em 1890. No ano de 1914, admitiu como sócio o seu gerente, o uruguaio de ascendência italiana Julio Castagnino, com quem trabalhava desde 1910. 

A casa comercial de José Dini & Cia., como várias de sua época em Cachoeira, comercializava de tudo um pouco. Desde secos e molhados, louças, ferragens, produtos coloniais até gêneros e equipamentos importados. Com o fim da Primeira Grande Guerra, além dos produtos convencionais, passou a trabalhar com importação. Tornou-se, em 1919, agente de automóveis da fábrica italiana Fiat para Cachoeira, Caçapava e São Sepé. Incluiu no catálogo de gêneros as afamadas farinhas de trigo argentinas das marcas Sublime e Imperial. Mantinha também um depósito de fumo em corda.

Cartaz de propaganda da loja José Dini & Cia. - AHMCS

O endereço da José Dini & Cia. era a Rua 7 de Setembro, esquina com a Rua Major Ourique, rivalizando com outras que se localizavam na artéria principal da cidade, nas adjacências da Estação Ferroviária ou do Mercado Público.

Casa comercial de José Dini & Cia., à direita (década de 1920) - Coleção Claiton Nazar

Em 1912, quando a Intendência Municipal passou a comercializar terrenos para a abertura do Bairro Rio Branco, o italiano José Dini adquiriu um na recém-aberta Rua Comendador Fontoura, assim como Augusto Wilhelm, José Fernandes, Victor Menezes, Jeronymo Brandes, a viúva de José Müller, uma das suas concorrentes no ramo comercial, Odon Cavalcanti e João Neves da Fontoura.

Com a retirada espontânea de Julio Castagnino da sociedade em 1921, José Dini ainda seguiu com seu negócio até 1927, quando encerrou atividades.  

Além dos filhos Eugênio e Mansueto, que o auxiliavam na loja, José Dini era pai de João, Martin e Antônio. Seu falecimento, em Cachoeira, foi no dia 30 de dezembro de 1930.

domingo, 25 de agosto de 2024

A revolução de 1923 e três personalidades ligadas a Cachoeira

Cachoeira é daqueles lugares que nasceram para figurar no mapa como terra ligada aos principais acontecimentos históricos. E ainda que a sua economia e outros aspectos da vida comunitária tenham mudado muito no último século, mesmo assim a sua relevância se sustenta no protagonismo de seus filhos ou dos homens e mulheres que aqui viveram e fizeram história.

A revolução de 1923 é uma mostra disto. Três figuras de relevo daquele acontecimento que convulsionou o estado de janeiro a dezembro daquele ano, tiveram laços fortes com Cachoeira.

O primeiro deles, Antônio Augusto Borges de Medeiros, cuja eleição para mais um mandato estadual foi o estopim do movimento revolucionário, congregando os opositores políticos em torno do nome de Joaquim Francisco de Assis Brasil, tinha vínculos familiares com Cachoeira. Sua mãe, Miguelina, era cachoeirense e irmã mais velha do Coronel Horácio Borges. Talvez por isto, o menino tenha sido batizado na Igreja Matriz de Cachoeira, em 21 de fevereiro de 1866, quase três anos depois de seu nascimento, ocorrido em Caçapava no dia 19 de novembro de 1863.

Borges de Medeiros, especialmente com seu apadrinhado João Neves da Fontoura, que o defendeu em sessão da assembleia dos representantes nos primeiros dias de janeiro de 1923, foi impulsionador de grandes obras em Cachoeira, concedendo apoio político e aporte financeiro do estado para sua realização.

Borges de Medeiros - MMEL

O segundo vulto de destaque na revolução de 1923 foi Honório Lemes da Silva, o Leão do Caverá, único dos três nascido em Cachoeira. Honório Lemes era um ano mais jovem que Borges de Medeiros e nascido no Barro Vermelho em 23 de dezembro de 1864. Mudou-se cedo para Rosário do Sul e seu ofício de tropeiro tornou-o hábil nos caminhos da intrincada Serra do Caverá, onde se entranhava com seus seguidores desde a revolução de 1893. Sua astúcia e conhecimento da geografia da região foram fundamentais para os intentos das guerrilhas de que participou.

Honório Lemes da Silva - www.claudemirpereira.com.br

O terceiro personagem ligado a Cachoeira na revolução de 1923 foi o dentista, fotógrafo e cinegrafista Benjamin Celestino Camozato, nascido em Porto Alegre em 19 de maio de 1885, ou seja, mais de vinte anos mais moço que Borges e Honório. Residente em Cachoeira desde a metade da década de 1910, o inquieto e criativo Dr. Benjamin Camozato ganhou fama e conhecimento na cidade em que nasceram os seus três filhos, Walmor, Wanda e Weimar, e muitos de seus empreendimentos foram desenvolvidos. 

Benjamin entrou para a história da revolução de 1923 por ter produzido o único filme existente sobre a contenda, um curta-metragem. Durante quase todo aquele ano ele percorreu o Rio Grande do Sul fazendo registros dos partidários de Borges de Medeiros, ou chimangos, e dos defensores de Assis Brasil, ou maragatos. A imprensa de Cachoeira registrou toda a movimentação de Camozato, inclusive as exibições da "fita" em vários lugares do Brasil e do estado. 

Benjamin Camozato - acervo familiar

Estes três homens teceram laços profundos com Cachoeira, ainda que Honório Lemes tenha sido dentre eles o único cachoeirense e, ao contrário dos demais, o que menos tempo tenha vivido por aqui. Borges de Medeiros mantinha uma rotina de idas e vindas entre Porto Alegre e Cachoeira, onde se internava na Estância do Irapuazinho, de sua propriedade no interior do município, para onde se retirou depois que findou sua trajetória política. Camozato tomou o rumo de Porto Alegre, lá abrindo seu consultório de odontologia, mantendo permanente vínculo com Cachoeira.

Três homens, três trajetórias, a revolução de 1923 como interseção com Cachoeira.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Cemitério a perigo!

Engana-se quem pensa que a situação em que se encontra atualmente o Cemitério das Irmandades seja inédito. O desmoronamento do barranco em que ele foi em parte assentado é um processo que vem ocorrendo há bastante tempo, causando dores de cabeça aos gestores e à comunidade, especialmente à católica. Tal condição limita em muito a capacidade daquele campo santo receber novos sepultamentos, praticamente inviabilizando os serviços que oferece. E é esta situação especificamente que não apresenta ineditismo, pois em outros momentos de seus quase duzentos anos de história o Cemitério das Irmandades esteve cheio e foi alvo de reclamações da população e autoridades.

Desmoronamento no Cemitério das Irmandades - foto Rádio Cachoeira

Em 5 de março de 1887, segundo documento que está preservado no Arquivo Histórico, a Câmara Municipal, então o aparelho administrativo da época, estava empenhada em construir um novo cemitério em Cachoeira, pois o mantido pelas Irmandades estava com sua capacidade de sepultamentos esgotada. A questão era inquietante. Os vereadores necessitavam definir logo a situação e encontrar um lugar conveniente e acessível, que favorecesse a condução dos corpos e que atendesse aos preceitos de higiene, uma vez que o Cemitério das Irmandades, além de ser "propriedade das irmandades religiosas, (...) é situado dentro da cidade e está completamente cheio, tornando-se já difícil nele os enterramentos".

Como era prática administrativa na época, foi formada uma comissão de cidadãos para escolher um "local apropriado nos subúrbios desta cidade" (CM/S/SE/RE-011, fl. 28). Os nomeados foram: Dr. Affonso Pereira da Silva, Dr. Caetano Ignacio da Silva, Dr. Candido Alves Machado de Freitas e os vereadores João Jorge Krieger, Crescencio da Silva Santos e João Thomaz de Meneses Junior. 

A comissão havia sido escolhida com critério, pois integravam-na médicos (Affonso Pereira da Silva, Caetano Ignacio da Silva e Candido Alves Machado de Freitas), o homeopata João Jorge Krieger e o construtor Crescencio da Silva Santos. Eram, pois, homens que tinham condições de promover uma boa escolha, pois estavam capacitados para levar em consideração as questões de higiene pública e também próprias de erguimento da obra. 

As tratativas e o início das obras redundaram na construção do Cemitério Municipal, inaugurado em 1891. Naquele ano, no dia 17 de agosto, os integrantes da junta governativa do município (após a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, já não era mais a Câmara Municipal o aparelho administrativo, e sim uma comissão de cidadãos nomeados para gerenciar as questões municipais) enviaram uma correspondência ao Arcediago Vicente Dias Lopes, vigário da Paróquia de Cachoeira, comunicando achar-se pronto e aprovado o novo cemitério, solicitando que "vos digneis ordenar às respectivas irmandades que desde esta data façam cessar os sepultamentos no antigo cemitério, atendendo-se assim as conveniências da salubridade e interesse público." (CM/S/SE/RE-011, fls. 144v). Também o delegado de polícia, Liberato Vieira da Cunha, recebeu comunicado de abertura e aprovação do Cemitério Municipal (CM/S/SE/RE-011, fl. 145) e a recomendação de que nos seus despachos relacionados a sepultamentos que ordenasse fosse ouvido o secretário do município para que este avisasse o zelador do cemitério (CM/S/SE/RE-011, fls. 146v a 147v).

Pórtico do Cemitério Municipal - COMPAHC

A resposta da Igreja foi de que não se opunham aos sepultamentos no Cemitério Municipal, mas que desejavam que fosse "aberto uma parte dele e que seja colocado o símbolo da religião católica, que ainda não foi desprezada pelo povo, e que não podem em face da lei que garante o culto dos mortos deixar em abandono o cemitério religioso para nele enterrarem os corpos de seus irmãos que fizerem parte de seu governo, e por existirem nele muitos despojos que suas famílias veneram, sobre túmulos e jazigos perpétuos, nos quais desejam ser também ali depositados." A junta, por sua vez, afirmou ter ficado "emocionada por essas tiradas de beatitude dos nossos caríssimos irmãos, tendo o prazer (...) de vos comunicar que nunca cogitou de entorpecer ou embaraçar as demonstrações religiosas, e podemos dizer que foi também este sentimento de veneração a Deus, à memória dos Santos e dos finados em geral que motivou a construção do novo cemitério para ficar a cargo da administração municipal." 

E, depois das saudações à atitude da Igreja, as autoridades municipais desandaram: "Vós sabeis, todos sabem, a forma vergonhosa por que tem sido tratados os restos mortais de nossos irmãos" e solicitam ao arcediago que "fazei saber a essa diretoria a indignação de que devem achar-se possuídos estes entes que veneramos ao contemplar o quadro asqueroso, brutal que oferece o velho cemitério. Eles (os entes) que vivem no céu desfrutando os gozos que o Criador oferece aos justos verem seus despojos numa promiscuidade horrível, na maior desordem, confusão e desleixo. Tende a bondade de fazer saber a esses três irmãos diretores, responsáveis por estes horrores, o castigo que o Criador lhes há de infligir, se não fizerem rigorosa penitência por causa deste grande pecado, e quem sabe talvez de outros." O ofício da junta prossegue dizendo que é mais religiosa que a diretoria das irmandades, "não consentindo mais sepultamentos neste meio horroroso, quiçá pestífero e sem dúvida prejudicialíssimo aos habitantes desta cidade". E finaliza deixando as irmandades livres para reabilitarem-se com o público, promovendo as obras necessárias para que o velho cemitério seja melhorado e conservado (CM/S/SE/RE-011, fls. 146v a 147v).

Tais documentos provam que a situação atual do Cemitério das Irmandades, apesar de não estar relacionada com questões de higiene e cuidado com os serviços que oferece, não é inédita no embate surgido entre as autoridades e seus mantenedores, tampouco no esvaziamento de possibilidades de seguir recebendo os corpos dos falecidos. A questão agora é de risco de colapso daquele campo santo, sendo iminente o seu sepultamento definitivo no leito do Jacuí se providências não forem tomadas. Mais do que isto, o Jacuí engolirá também todas as histórias, os monumentos erguidos em homenagem aos mortos e uma infinidade de exemplares de arte cemiterial de valor inigualável, abalando ainda as importantes e necessárias estruturas que ficam nas suas imediações. 


Destruição de túmulos pela erosão do terreno - fotos Jornal do Povo

domingo, 30 de junho de 2024

João do Adro

Dos poetas espera-se lirismo, encantamento, palavras escolhidas para tocar o coração. Tristeza, alegria, amor, desencanto e todo tipo de sentimento pode servir de inspiração para estes seres que têm o dom de despertar em nós divagação e até estranhamento.

Alguns poetas (e aqui o termo é generalista) deixam um legado de amplo espectro. João do Adro é um deles. Mas quem é João do Adro? Era um jovem poeta que na igreja enamorou-se de uma moça. Um belo dia, encorajado pelo coração, escreveu-lhe um bilhete, assinando-o com o pseudônimo João do Adro. Deduz-se pelo apelido que o moço ficava em frente à igreja esperando por sua amada.

Nilo Fernandes Barbosa, o terceiro sentado à mesa - MMEL

João do Adro era Nilo Fernandes Barbosa e a moça se chamava Marina. 

Mas o interessante do pseudônimo João do Adro é que Fernandes Barbosa o utilizava quando escrevia sobre assuntos graves e sérios, tratando-os com linguagem mais severa e combativa. Os amores, galanteios, assuntos cotidianos e regionalistas eram assinados pelo Fernandes Barbosa.

Sobre ele mesmo e o seu pseudônimo, escreveu em 1968:

O Fernandes girondino

E João do Adro jacobino

Moram juntos, num galpão...

Basta um ser ofendido,

Para que os dois, sem partido,

Ergam a luva do chão!

Nilo Fernandes Barbosa nasceu em Rosário do Sul no dia 5 de fevereiro de 1912. Seus pais eram Antônio Fernandes Barbosa e Ana Rita Jacques Fernandes Barbosa. Veio para Cachoeira na infância, tendo aqui cursado o primário com professores de renome, como Alzira Carlos e Antonieta Gouvêa. Em 1929, foi um dos primeiros alunos a ser matriculado no Colégio dos Maristas, naquele ano instalado. Tinha 17 anos e era o mais velho dos alunos a ingressar no novo estabelecimento de ensino.

Depois do Colégio Marista seguiu para Porto Alegre, onde entrou no Colégio Militar. Sem vocação para a vida nas armas, iniciou-se por lá na literatura, escrevendo para uma revista do colégio. Foi o primeiro passo para rumar ao jornalismo, empregando-se como revisor do jornal Diário de Notícias.

De volta a Cachoeira, passou a trabalhar com Virgílio de Abreu e Mário Godoy Ilha, fundadores do Jornal do Povo, colaborando também com O Commercio, O Cachoeirense e o Correio do Povo, de Porto Alegre.

Para falar sobre a obra de Fernandes Barbosa é preciso, em primeiro lugar, falar sobre a fluência e a extrema habilidade com o uso das palavras. A qualidade de seus trabalhos e a pluralidade de temas redundaram em várias obras publicadas, quase todas às suas expensas, algumas delas premiadas em concursos literários promovidos pela revista Alterosa, de Minas Gerais, e do Globo, de Porto Alegre.

A vida do "Poeta", como ficou conhecido na cidade, ou João do Adro, como assinava vez ou outra, não era só de poesia. Aventurou-se na orizicultura e foi funcionário público municipal, tendo desempenhado o importante cargo de Diretor da Instrução Pública Municipal, correspondente hoje à Secretário de Educação, e dirigiu a Biblioteca Pública Municipal "Dr. João Minssen" por vários anos. 

Quem o conheceu, certamente lembra de vê-lo postado à porta do Jornal do Povo, órgão da imprensa cachoeirense em que certamente mais publicou seus poemas. Dizem que o nível de exigência com a correção de seus escritos era tão grande, que muitas vezes ele se postava na redação, próximo ao linotipista, para conferir se não haveria troca nas letras ou qualquer erro em suas produções, o que não admitia e cobrava veementemente. Para entendimento dos que não viveram o tempo da composição manual das páginas, a figura do linotipista era a do funcionário do jornal que montava uma a uma as palavras até que a página estivesse completa. Uma trabalheira só!

Frutinha proibida foi a sua primeira obra (1938) e reúne poemas produzidos na juventude, especialmente no Colégio Militar. Depois veio Minhas flores de jacarandá (1944), revelando um poeta mais maduro, Os gatos e o remédio (1949), mais tarde Súplica ao Negrinho do Pastoreio (1959) e outras, como Sepé - o morubixaba rebelde, todas dignas de análise apurada pelo valor literário e estilístico.

Fernandes Barbosa casou com a moça que paquerava no adro da Igreja Matriz e com ela teve quatro filhos: Danton, Barnave, Ana Rita e Ana Maria. Faleceu em 10 de outubro de 1988, legando à cidade onde viveu uma obra riquíssima, especialmente a dispersa nos exemplares dos jornais e que merece ser resgatada, permitindo constatar o talento e a versatilidade do "Poeta" que andava sempre de terno, gravata, chapéu e óculos escuros, mantendo a fleuma e o porte daqueles que enxergam o mundo com a ótica da razão sem desprezar o que lhes vai no coração.

Nilo Fernandes Barbosa (1988) - Jornal do Povo

Agradecimentos à Simone Fernandes Barbosa, neta, pela revelação do emprego do pseudônimo João do Adro.

Informações literárias em: O público e o privado na obra de Fernandes Barbosa, de Ellen dos Santos Oliveira. Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras

     

sábado, 25 de maio de 2024

Tempos difíceis!

Todos nós ouvimos, em algum momento de nossas vidas, relatos ou histórias sobre a famosa enchente de 1941. Pessoas ilhadas, famílias refugiadas em sótãos e telhados, lavouras submersas, destruição e miséria, fome, frio e medo. Mas o que boa parcela de nós jamais pensou é que a história se repetiria e que os eventos fossem vir maiores, mais dramáticos e devastadores. 

83 anos depois experimentamos a dor e a impotência diante da fúria dos elementos da natureza, deixando a grande enchente de 1941 na vice-liderança dos maiores cataclismos vividos no Rio Grande do Sul!

Para avaliarmos melhor os dois eventos, o de 1941 e o de 2024, ambos acontecidos exatamente no mesmo período, entre final de abril e princípios de maio, precisamos entender as diferenças que separam o mundo da década de 1940 e o deste primeiro quarto do século XXI. 

Em 1941, não havia toda a tecnologia hoje disponível, tampouco as medidas de verificação do evento em si e de suas consequências se aproximam do que atualmente se tem. E, principalmente, a comunicação instantânea que caracteriza este século dá outra dimensão à tragédia, permitindo que as pessoas a acompanhem em tempo real e sejam impactadas imediatamente pelo que veem. Isto explica as reações de quase todo o país e até do exterior no enfrentamento da catástrofe e no auxílio aos flagelados. 

As verificações dos impactos da tragédia climática são facilitadas hoje pelos avanços tecnológicos, assim como os recursos empregados no resgate, salvamento e apoio às vítimas, sejam pessoas ou animais. Hoje toda vida importa, o que não deixa de ser uma contradição, tendo em vista que a sociedade moderna não dá a mesma atenção aos reclames da natureza.

Na enchente de 1941, por exemplo, quando a cheia se encontrava em seu auge, uma comissão de cidadãos cachoeirenses se lançou num barco pelas águas do Jacuí para verificar os impactos. Os cavalheiros subiram na embarcação com seus trajes costumeiros, sem nenhum tipo de proteção! Mesmo os voluntários de hoje, grande parte oriunda da sociedade civil, porta coletes salva-vidas e trafega pelas cidades inundadas com o mínimo de proteção.

Comissão de verificação da enchente em Cachoeira em 1941, vendo-se, à frente,
Floriano Neves da Fontoura (3) e o  prefeito Cyro da Cunha Carlos (4) - MMEL

Outra diferença grande entre 1941 e 2024 são os alertas meteorológicos, feitos com a necessária antecedência em razão dos modelos utilizados pelas agências de verificação e o grau bem maior de precisão. 

Os impactos de uma época e outra, apesar dos grandes destaques que a imprensa deu ao primeiro evento, com registros fotográficos abundantes, em 2024 são muito abrangentes, pois nenhuma região ficou sem o monitoramento dos efeitos da grande enchente. Drones, aviões, helicópteros, satélites, todo aparato disponível se volta para o estado calamitoso do Rio Grande do Sul. A ajuda humanitária, em razão do grande poder da comunicação e do uso das redes sociais, vem de todos os lados e procura atender ao que é essencial.

Nenhum de nós, testemunhas da grande cheia de 2024, pode dizer que não foi avisado das mudanças climáticas drásticas que passamos a sofrer em razão do desrespeito à natureza, materializada na forma de desmatamentos desmedidos, ocupação de áreas sem prévia verificação de impacto, exploração do solo de forma predatória e outras causas advindas do uso irracional dos recursos naturais.

O saldo advindo da catástrofe de 2024 ainda não pôde ser integralmente medido, mas submeterá todo o estado a uma cota substancial de sacrifícios e, principalmente, de mudança de atitude. 

As semelhanças entre as enchentes de 1941 e 2024 são tantas que o relato abaixo, recolhido na imprensa cachoeirense da época, parece descrever o cenário atual:

"Jamais os corações dos rio-grandenses se sentiram tão cheios de tristeza, de aflição, de tantas apreensões, como por ocasião dessa catástrofe imensamente incalculável nos prejuízos, estragos e fatalidades, derivados das incessantes e cerradas chuvaradas que, caindo impiedosamente sobre o solo dos pampas, fizeram transbordar arroios e rios, irrompendo suas águas por lugares onde nunca tinham chegado, ficando submersos campos, fazendas, lavouras, estradas (...) e muitíssimas partes de localidades e de cidades e ainda cortadas quase todas as comunicações. (Jornal O Comércio, Cachoeira, 14 de maio de 1941 - Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico).

A enchente no Engenho Central - MMEL

O cais da Rua Moron com depósitos submersos - 1941 - MMEL

Flagelados da enchente de 1941 - Coleção Emília X. Gaspary - MMEL
Porto de Cachoeira - 1941 - Coleção Armando Fontanari

Enchente - abril de 1941 - Coleção Emília X. Gaspary - MMEL





Série de fotos da enchente de 1941 - Coleção Achylles Figueiredo - MMEL

As descrições feitas pela imprensa em 1941 coincidem com o triste aspecto que avistamos hoje por todo o Rio Grande do Sul. Em Cachoeira, algumas tomadas da enchente que superou a de 1941, encobrindo o leito da Ponte do Fandango, fato nunca ocorrido desde a sua inauguração em 1961.

Ponte do Fandango em 5/5/2024 - foto Ângelo Netto


Registros da enchente em 5/5/2024 - fotos Ângelo Netto

BR 153 - foto O Correio

A estupefação diante da violência do clima está a exigir de todos nós uma mudança de conduta com relação ao uso/abuso dos recursos naturais. Se não frearmos a ânsia consumista, talvez o ocaso esteja a nos aguardar logo ali.

sexta-feira, 29 de março de 2024

A morte

Dela ninguém foge, ninguém traz notícia e nem de longe alguém a quer! Triste sina esta que temos de conviver com sua sombra...

Quem nos leva a refletir sobre a morte, em texto que será sempre atual, é o jornalista pelotense Antônio Ferreira Vianna (1855-1903), que foi conselheiro, ministro da Justiça do Império e abolicionista. 

Conselheiro A. Ferreira Vianna - Museu Histórico Nacional

A publicação foi feita num antigo e raro jornal da nossa velha Cachoeira, o 15 de Novembro, fundado entre o final de 1889 e 1890, cujo diretor de redação foi nada mais nada menos que Borges de Medeiros, antes de se tornar o mais longevo administrador do Rio Grande. A edição é de 22 de março de 1890, quando o número de circulação chegou ao 24 no seu primeiro ano de existência. Esta preciosidade faz parte do Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico do Município de Cachoeira do Sul "Carlos Salzano Vieira da Cunha", coleção de avulsos raros de jornais cachoeirenses.

Jornal 15 de Novembro, Cachoeira, 22/3/1890 - Acervo de Imprensa do AHMCS

À primeira página do 15 de Novembro, sob o título Excerto de um discurso, assim escreveu A. Ferreira Vianna:

A onda misteriosa da morte arrebatou das praias desta vida mais um dos valentes lidadores, espírito de fé e alma preparada para o combate. Eu o vi imóvel, vinculado e vencido pela morte; vi inanimado aquele que foi uma luz, que foi uma grande energia e um coração cheio de esperança.

A morte é sempre uma lição, lição sublime: é o soldo que pagamos neste mundo do pecado. A morte faz pensar e tremer: é o nosso maior inimigo, não tanto pelo seu poder como principalmente pelo seu mistério.

Não me parece tão grandioso tirar o homem do nada como restituí-lo, depois da morte, ao amor e à luz. 

A morte é como o desprendimento do vínculo entre o passado e o futuro. Profundo enigma entre o que nós fomos e o que esperamos ser!

Senhores, é preciso meditar na morte; e eu vos convido a fazê-lo, reservando o dia de hoje para estes silêncios e solidões em que a alma quase fulminada pelo terror só se levanta pela fé e pela esperança.

Não tenho tanto medo da morte como terror da vida. A morte é uma aposentadoria, a vida é um combate.

Não compreendo que o criador do universo, expressão absoluta e substancial da verdade e da justiça, animasse uma poeira, desse-lhe o sopro da vida por alguns dias e a lançasse como um joguete ao furor das tempestades e aos caprichos do mundo. Aqui, o nada absurdo, ali, a morte eterna.

Não compreendo o criador regozijando-se nessa obra de um momento, nessa vida comprada com o sacrifício enorme e doloroso de lágrimas e de angústias!

E se assim pudesse ser; se a catástrofe fosse real; se aquém e além nada houvesse senão esta vida de combate, ó Deus, onde a tua justiça?!!!

Pensemos na morte. Há pouco vi uma ilustre vítima que caiu na estrada da vida. Eu a vi, vô-lo digo, inanimada; a morte apagara-lhe o sorriso nos lábios, desbotara-lhe o colorido nas faces: era uma verdadeira transformação. Parece que o ser reduziu-se ao não ser; que um ente inteligente, livre e de nobres qualidades ia entrar apenas como combustível na fornalha do grande processo da química do universo.

Mas aquele coração que não palpitava, aquela língua que estava colada, aqueles olhos fechados para sempre, aquele gelo da morte, enfim, parecia reanimar-se e voltar à vida, porque diante dele estava a imagem de Jesus Cristo, fonte da vida, resumo da nossa fé, síntese das nossas esperanças.

A. Ferreira Vianna

Com este excerto (fragmento) de discurso, cabe-nos interessante reflexão nestes tempos de Páscoa, quando a morte anuncia também a ressurreição...

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Incêndio voraz

Vem do jornal O Commercio que circulou em Cachoeira no dia 27 de fevereiro de 1924, a descrição de um incêndio voraz que consumiu duas imponentes construções da Rua 7 de Setembro, ameaçando outras casas que ficavam próximas.

Casa Fialho (esquina) e palacete de Ignácia Oliveira - Rua 7 de Setembro 
- Fototeca Museu Municipal

Foi na madrugada de sábado, 23 de fevereiro,  pelas duas horas da manhã, que a Casa Fialho, pertencente a João Fialho e localizada na Rua 7 de Setembro n.º 173, defronte à Avenida das Paineiras, foi tomada pelo fogo. Os vizinhos deram o sinal com alguns tiros de revólver, atraindo a atenção de várias pessoas das redondezas que acorreram ao local, algumas delas portando baldes de água no afã de apagar as chamas.  O fogo, no entanto, alastrou-se rapidamente, tomando conta do prédio da esquina e do palacete da Viúva Oliveira. A tentativa vã de extinguir o incêndio, com gestos de audácia e coragem de alguns socorristas, foi de grande valia para evitar que o sobrado de propriedade de Jacques Bidone também fosse atingido.

Quadra da Rua 7 de Setembro, vendo-se o palacete da Viúva Oliveira e, na esquina, a Casa Fialho
- Fototeca Museu Municipal

Com muita rapidez o fogo consumiu os dois vastos prédios. Felizmente a família da D. Ignácia Amélia de Oliveira estava fora, em sua chácara na Vila Oliveira. 

A perda na Casa Fialho foi total. Fartamente sortida de fazendas, miudezas, armarinho, roupas feitas, perfumarias e chapéus, fazia pouco menos de dois anos que estava aberta ao público, sendo bastante frequentada não só pelo enorme sortimento que mantinha, como pelos preços atrativos que oferecia.

Bilhete postal (frente e verso) da Casa Fialho - Fototeca Museu Municipal

O incêndio decretou o fechamento temporário da Casa Fialho, que foi reaberta em 2 de setembro de 1924, em outro endereço na mesma Rua 7 de Setembro. Em 1927, João Fialho vendeu a loja para Rosa & Cia., permanecendo na gerência do negócio até 1928, quando transferiu residência com sua família para Porto Alegre.

Quanto ao palacete de Ignácia Amélia, a Viúva Oliveira, que depois ficou conhecida como a "Casa dos Arcos", foi reconstruída em obra contratada com o construtor Santiago Borba, ao custo de 60 contos de réis. Por muito tempo, depois da grande reforma, a Casa dos Arcos foi palco para muitos discursos políticos, pois oferecia uma sacada em três arcos, arquitetura propícia para tais acontecimentos.

Uma das últimas fotos da Casa dos Arcos (1989) - Acervo COMPAHC

Infelizmente a Casa dos Arcos não sobreviveu aos nossos dias, apagando da memória da Rua 7 de Setembro a sua elegante estrutura e abafando o eco dos discursos e das manifestações que empolgaram a Cachoeira de outros tempos.

domingo, 21 de janeiro de 2024

Registros de imprensa: Cachoeira, janeiro de 1924

Pelas páginas do jornal O Commercio, órgão comercial, noticioso e literário fundado em 1.º de janeiro de 1900 por Henrique Möller Filho, é possível reconstituir o cotidiano de Cachoeira, traçando uma interessante cronologia do longo período em que o semanário circulou (janeiro de 1900 a fevereiro de 1966). 

Oficinas tipográficas do O Commercio (1922) - MMEL*

O Commercio não foi o único jornal desse período. Outros tantos surgiram, em sua maioria com pouco tempo de existência, mas é na coleção do Comercinho, como o povo o apelidou, e que conseguiu chegar aos nossos dias preservada em sua quase totalidade, que é possível rememorar com regularidade o tempo. Sua coleção faz parte do Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico do Município de Cachoeira do Sul "Carlos Salzano Vieira da Cunha" - AHMCS.

Na primeira edição de janeiro de 1924, que circulou no dia 1.º, a grande notícia foi o regresso do 1.º Corpo da 5.ª Brigada do Centro, comandada pelo tenente-coronel Annibal Lopes Loureiro, intendente do município que havia se licenciado do cargo para lutar na revolução de 1923 ao lado dos seus correligionários do Partido Republicano Rio-Grandense, liderados por Borges de Medeiros. A volta tinha se dado em 23 de dezembro, mas como o jornal circulava apenas nas quartas-feiras, a notícia foi dada na semana seguinte.

Grandes foram os festejos para recepcionar os "bravos" da dita legalidade e o jornal descreveu com detalhes a chegada na Estação Ferroviária, a recepção por autoridades e povo, o acompanhamento do corpo pela Rua 7 de Setembro, os longos e inflamados discursos e o baile organizado por senhoritas e elementos da sociedade no salão do Fórum (antigo Teatro Municipal).

Edifício do Fórum e do Colégio Elementar - extraído do livro O Rio Grande do Sul,
de Alfredo R. da Costa (1922)

Na edição seguinte, que circulou em 9 de janeiro de 1924, o destaque de primeira página foi a Festa da Paz que a cidade promoveu no dia 1.º, com missa campal, batalha de flores, distribuição de gêneros aos necessitados, cinema público e gratuito ao ar livre e um grande baile de gala no Clube Renascença. Naquela mesma edição, nota de destaque para a passagem da administração municipal ao Dr. Annibal Lopes Loureiro pelo seu substituto Francisco Gama. Para assumir o comando da 1.º Corpo Provisório da Brigada do Centro, Annibal Loureiro licenciou-se da intendência, passando a administração municipal ao seu vice, Francisco Fontoura Nogueira da Gama.

No dia 16, a nota de destaque da edição foi a fundação do Centro Republicano de Cachoeira, presidido por Annibal Loureiro e contando em suas fileiras com os grandes nomes dos republicanos locais. No número que circulou uma semana depois, em 23 de janeiro, descrição em detalhes do banquete que foi oferecido por amigos e correligionários, no Bar Cachoeirense, ao coronel Francisco Gama "pelos relevantes serviços prestados a este município".

Bar Cachoeirense - Praça José Bonifácio - extraído do Grande Álbum de Cachoeira (1922),
de Benjamin Camozato

Também em 23 de janeiro, o barítono Andino Abreu foi alvo de notícia sobre sarau que realizou em São Paulo, promovido pela Sociedade de Cultura Artística no Teatro Municipal. Reproduzindo o texto publicado no jornal Estado de São Paulo, O Commercio divulgou os altos elogios feitos ao artista cachoeirense.

A última edição de janeiro de 1924, datada do dia 30, trouxe notícias genéricas e dentre elas a comunicação de eleição da nova diretoria do Gremio Foot-Ball Porto-Alegrense, time bicampeão do Rio Grande do Sul. 

Nos anúncios comerciais, destaques para a Casa Augusto Wilhelm, que propagandeava camas de ferro e fogões; para a Oficina de Joias de Ernesto Strohschoen, que vendia óculos, bombas para mate, relógios de algibeira e joias de prata, dentre outros itens. 

Casa Augusto Wilhelm - extraído do Grande Álbum de Cachoeira (1922),
de Benjamin Camozato

A Casa Avenida oferecia seda crua e a Casa Funerária Oliveira & Cia. dizia-se a mais barateira. O Atelier de Modas de Helena Lauer avisava estar de mudança para a Rua Moron, 112. 

Ateliê de Helena Lauer - extraído do Grande Álbum de Cachoeira (1922),
de Benjamin Camozato

A Casa Viúva José Müller anunciava guerra às formigas e grande sortimento de arados e discos alemães e a Casa Fialho, além de ternos de casimira, tinha recebido estoque dos lança-perfumes Rodo, Rigoletto e Vlan. Calçados de São Paulo eram na Casa Bidone e a famosa Agência Bromberg & Cia. oferecia correias de pelo de camelo, seu depósito permanente de óleos lubrificantes e os afamados automóveis Ford e tratores Fordson.

Escritório da Casa Viúva José Müller - Acervo Ernesto Müller

O Armazém de Hugo Stringuini avisava ter recebido nozes, amêndoas, avelãs, passas de uva, de figo e de ameixa, além de azeitonas e licores e Haguel Botomé, proprietário da Casa da Bandeira Branca, oferecia à clientela uma surpresa agradável, como se referiu à liquidação geral de seu estoque de fazendas, miudezas e roupas feitas. J. Lima & Cia. pedia à distinta freguesia que visitasse a sua seção de tecidos, armarinhos e miudezas, assim como adquirisse carrapaticida e vermífugo "Sol".

Haguel Botomé e família - extraído do Grande Álbum de Cachoeira (1922),
 de Benjamin Camozato

O Engenho Stracke & Cia., no Bairro Rio Branco, dispunha-se a comprar qualquer quantidade de arroz. 

João Minssen era agente de seguros e Percilio Bandeira incumbia-se de levantamento de balanços e organização de contabilidade. Medições e divisões de terras era com Angelico da Motta Curto, fotografias com o Atelier Fotográfico de A. Saindenberg - perfeição garantida!

Nota de A. Saidenberg emitida para a Intendência Municipal (1926) - AHMCS

Leonel Friedrich & Cia. e Benjamin Camozato vendiam locomóveis usadas, Emilio Schlabitz uma trilhadeira e Albino Pohlmann um cofre Wallig. Roberto Petersen tinha oficina de funilaria e Wilhelm & Klafke, sucessores de Carlos Böer, aceitavam e executavam qualquer encomenda de marcenaria e carpintaria.

Os médicos Dr. Scopel, Dr. Marajó de Barros, Dr. José Felix Garcia, Dr. Teclo Lopes Machado  e Dr. Manoel Pérez Hervella ofereciam seus préstimos, assim como as parteiras Anna Thürstein, Alma Becher e Leopoldina Ulrich.

Dr. Sylvio Scopel em procedimento cirúrgico - MMEL

Clínica cirúrgica e laboratório dentário era com Oscar Wild, que curava abscessos, sinusite, fístulas e corrigia anomalias dentárias, prontificando qualquer aparelho protético, além de obturações a ouro, platina, esmalte, cimento e amálgama. O dentista Victor L. Preuss, aprovado em Berlim e com 12 anos de prática, garantia durabilidade e beleza em todos os seus trabalhos. 

Dr. Hollanda Cavalcanti, Mario Godoy Ilha, Dr. Glycerio Alves anunciavam-se como advogados.

Dr. Glycerio Alves no interior paulista - MMEL

As escolas estavam em franca propaganda para atrair alunos para o ano letivo de 1924: Ginásio Rio Branco - internato e externato; Escola Alemã-Brasileira, no Bairro Rio Branco, também oferecia internato e externato, destacando o diretor Pastor H. Dohms que as línguas do ensino eram português e alemão. O Colégio Imaculada Conceição prevenia que as aulas teriam início em 15 de fevereiro, na Rua Saldanha Marinho, 75. O professor reverendo D. A. Chaves avisava que em 30 de janeiro abriria curso regular de ciências e letras, curso especial de línguas e preparatórios em geral. 

Irmã Maria Edigna Lehmann
- primeira diretora do Colégio Imaculada Conceição
(1921 - 1927) - MMEL

A vida social tinha lugar nos salões do Clube Renascença, da Sociedade Atiradores Concórdia, da Sociedade Italiana Príncipe Umberto e do Clube 7 de Setembro. 

Sociedade Atiradores Concórdia - MMEL

Investimentos, depósitos populares e serviços bancários eram oferecidos n' O Commercio pelo Banco do Brasil, Banco Pelotense e Banco Nacional do Comércio.

No Mercado Público, banca número 7, a novidade eram as uvas geladas, colhidas diariamente.

E janeiro de 1924 foi encerrado pela edição do dia 30, na qual já começavam a aparecer notícias sobre o carnaval de rua que, naquele ano, aconteceria nos primeiros dias do mês de março.

*MMEL - Museu Municipal Edyr Lima