SANTA JOSEFA
Num belo gesto de piedade, santificando
o martírio, os nossos antepassados nos legaram, junto à sanga da Micaela, um
pequeno túmulo encimado por uma cruz, onde repousam, diz a lenda, os restos da
Santa Josefa.
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Túmulo de Santa Josefa - fototeca Museu Municipal |
Os
restos da Santa Josefa
Era a santa dessa raça votada ao
sofrimento e à miséria, que o grilhão da cor acorrentara ao cáucaso da
ignomínia. Negra e escrava. Eram-lhe condições sobejas de martírio, se lhe não
fora a vida perene dor.
Uma lenda, vagamente sabida, quase
esbrumada nos tempos, destaca-a do fundo escuro do passado, com resplandores
iriados de santidade. Sofreu muito e o povo canonizou-a. Não teve no cemitério
santo um lugar, ou na obscuridade da
vala comum um canto; mas ali, junto da cidade, quase dominando-a do alto,
cercam-na todas as noites dezenas de velas, erguem-se, de redor de seu túmulo, as plangências litúrgicas das
ladainhas na vocação religiosa daquela alma de santa que lá nos céus, piedosa e
meiga, estende para Deus os braços impetrando graças divinas.
Santa Josefa
é um símbolo. Entrou na crendice popular nessa época terrivelmente bárbara em
que o azorrague*
do feitor abria, na noite profunda da epiderme negra, relâmpagos faiscantes de
sangue.
O martírio deu-lhe santidade. E através
de quase um século de adoração, hoje como outrora, todas as noites, os terços
intencionais, sob a pálida chama tremulante das velas, sobem de ao pé dela,
nas litanias** sagradas de um fervor cultual.
Contam-se os milagres. O túmulo que
cerca a nesga de terra em que seu corpo jaz, e o penhor de satisfeita promessa.
Graça nenhuma se lhe pede que a santa piedosamente não venha socorrer. É
perante Deus a intermediária do povo. Não só da massa alheia de crendices e
superstições, mas até dos cultos, a quem não nega o cumprimento de votos
impetrados. Pois há até quem, de longes léguas, mande buscar o sebo das velas
que alumiam a Santa, o qual é infalível para reumatismos...
Quantas vezes na meninice não desfiei
padres-nossos junto às
gradezinhas do túmulo em que a Santa dorme?
Venerava-a, sem conhecê-la. Era uma
negra que ficou santa, diziam. A lenda feita em torno de seu martírio e de sua
morte era e é quase desconhecida.
Adoram-na pela simples razão de que
três gerações já a cultuaram.
Sua história é simples.
Josefa era escrava de um tal Costa que
morava à Rua Moron, onde reside a família do finado Júlio Rosa. Seu senhor,
homem mau, de uma perversidade sem nome, levava dia e noite a maltratá-la.
Não satisfeito já com as contínuas
vergalhadas que marcavam o corpo da infeliz, em uma sexta-feira de Senhor Morto,
Costa mandou que ela fizesse uma tachada de sabão. Pronta, não ficando a
tachada a seu gosto, atirou-a dentro, queimando-se Josefa horrivelmente.
Salvou-se por milagre e quando se pode levantar, em uma das vigas do quarto em
que dormia, enforcou-se. Os suicidas não podiam ser enterrados no campo santo e
Josefa o foi no local onde hoje se acha o seu túmulo.
Passados anos um cão, cavando a terra
em que ela fora sepultada, descobriu-lhe um braço. Estava mumificado. Corre a
notícia célere. O povo acode. É o milagre. A terra não comera as carnes da
infeliz: até a terra lhe negava o supremo consolo de consumir-lhe os ossos!
O povo santificou-a. E ela vem até nós,
há quase um século, trazida pela crença onisciente do povo, o seu santificador.
As gerações têm passado sobre ela, respeitando-a e venerando-a.
É para nós, que não temos a ventura de
crer, uma tradição simbólica da terra. E amamo-la porque ela será, quando a
cidade remodelada e modernizada arrasar os últimos vestígios do passado, o
refúgio da tradição cachoeirense, a ara***
velha do templo em ruínas do passado em que iremos comungar com essa raça
forte, afetiva e infeliz que terá naquele túmulo o pedestal de seu martírio.
O município acaba de comprar o terreno
em que está o túmulo da “Santa Josefa”, a fim de abrir ali avenidas amplas e
modernas. Façamos nós, o povo que zelamos tradições, que cremos na “Santa
Josefa” uma subscrição popular para erigir-lhe uma modesta capela, de que seja
a padroeira a verdadeira Santa Josefa (já que a Igreja não admite a nossa),
conservando porém, no fundo dessa capela, aquele pequeno túmulo, com a sua doce
simplicidade primitiva de santuário.
João da Ega
(Extraído do Jornal Rio
Grande, Cachoeira, Ano VII, Nº 80, 16/11/1911, p. 1)
*açoite
**ladainhas
***altar; pedra sobre a qual o sacerdote põe o cálice e a hóstia