Espaços urbanos

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Ponte do Fandango - foto Robispierre Giuliani

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Série Histórias Populares: A Cachoeira

Vamos iniciar uma nova série e contar histórias populares que chegaram aos nossos dias como sói acontecer com histórias deste tipo: ou viram lendas, ou "coisas de que se ouviu falar"... modificadas aqui e ali, acrescidas cá e lá pela passagem do tempo, pela interpretação dos que as recontaram, pelo imaginário popular. Estas histórias são forjadas pela nossa cultura, pelo nosso meio, pela natureza humana. Tem coisa mais nossa?

Para começar a série, recorremos ao jornal O Commercio (1900 - 1966) e na edição do dia 6 de março de 1907 encontramos: A Cachoeira.

"Em risonha aldeia de pescadores, à margem de caudaloso rio, que mais além ia formar uma cachoeira, vivia Elias, guapo e esbelto mancebo, de tez bronzeada e cabelos negros. Amava de todo coração o moço pescador a Clarinha, a mais encantadora donzela do lugarejo, filha do velho David, o qual, sem motivo algum, antipatizava solenemente com Elias, a quem hostilizava, assim como à filha, procurando destruir os laços de afeição que ligavam os dois jovens. A oposição que fazia o pai de Clarinha, longe de arrefecer-lhes o amor, tornou-o ainda mais violento.

David, apesar de ver malogrados seus esforços obstinava-se em não ceder aos rogos da filha. Não encontrava defeito nenhum no rapaz, que era bom, honrado e trabalhador, mas não queria... porque não queria... Era mera questão de capricho.

Atingindo finalmente Clarinha a maioridade, impôs ao pai a sua vontade e, como se não quisesse ele submeter, partiu a moça para a casa de seus padrinhos que moravam na outra banda do rio. Todas as tardes, lutando na frágil canoa de cedro com as marulhosas da torrente, lá ia o mancebo cantando alegremente ver a querida noiva.

Uma tarde a aldeia estava em festa. Naquele dia casavam-se Elias e Clarinha. O sol, ao deitar-se preguiçoso no horizonte, dourava com seus últimos raios as águas encrespadas do rio que iam lá adiante formar a cachoeira. Na canoa ornada de flores, que balouçava na praia, saltou Elias. O vento era favorável, não tinha necessidade de remos, deitou-os no fundo da embarcação e, desfraldando a vela, fez-se ao largo. Ia buscar a noiva. O casamento deveria realizar-se, à noite, na capelinha do lugar.

Cachoeiras no Jacuí - fototeca Museu Municipal

Quando o jovem pescador afastou-se com a vela solta ao vento, o velho David, em pé sobre a barranca, rugiu entre dentes: - Maldição!... Vais à vela, miserável!... o vento te protege... Quisera que fosses remando, como é teu costume, porque então havias de ir parar, despedaçado, no fundo da cachoeira... e a minha Clarinha, a minha querida filha não seria tua!... O velho não recuara diante do crime para impedir o casamento. Havia feito vários furos nos remos de Elias para que, assim enfraquecidos, se partissem antes dele atingir a margem oposta.

Pano enfunado, a canoa do noivo abicava à praia fronteira. Clarinha, que ali o esperava, embarcou. Amainara o vento. Colhida a vela, a embarcação, acompanhada de outra em que vinham os padrinhos da donzela, cortou as águas em demanda da aldeia. Chegando o barco ao meio da corrente, para vencê-la o moço pescador começou a remar com todo o vigor de seus braços fortes. Mas, de repente, empalideceu – acabavam de quebrar-se, um após outro, os dois remos – e a canoa descia o rio, a princípio lenta, depois em vertiginosa corrida. Elias tomou nos braços a noiva que desfalecera e, atirando-se à água, tentou nadar para terra. Baldados esforços. A correnteza o arrastava. Várias embarcações, entre as quais a em que vinham os padrinhos de Clarinha, lançaram-se em socorro. Foi tudo em vão...

O velho David, de pé sobre a ribanceira, imóvel como se fora de pedra, as mãos na cabeça, o olhar desvairado, viu-os abraçados lá ao longe despenharem-se na cachoeira. E murmurava: - Matei-o... mas matei também minha filha...

Na capelinha da aldeia, lugubremente, começou o sino a dobrar a finados...

De pé ainda sobre a barranca, louco, o velho, com os olhos desmesuradamente abertos, fitava a neblina que além subia da cachoeira e repetia baixinho, muito baixinho: - Matei-a... matei-a..."

Marques Júnior

Bem, este rio certamente é o Jacuí... E o Elias e a Clarinha um daqueles tantos casais que encontraram resistência ao seu amor. Coisas do passado. Coisas do presente. Coisas de sempre!

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Do mercado de gêneros a céu aberto às feiras livres

Os mercadores de rua são personagens da história desde muitas eras. A apregoação de seus produtos serve-se de todas as línguas e acontece em todos os cantos do mundo.

Escrava mercadora com filhos
- fototeca Museu Municipal
Cachoeira não constitui exceção e desde há muito vê desfilar em suas ruas ambulantes oferecendo todo tipo de gêneros. Na atualidade, os vendedores de rua tendem a organizar-se, ocupando espaços coletivos, com infra-estrutura mínima para disporem e oferecerem seus produtos.

As posturas municipais, conjunto de leis de regramento da vida dos cidadãos nas vilas e cidades, já disciplinavam este tipo de mercado local no ano de 1853, e em seu artigo 8.º determinavam que:

Os vendedores de farinha de mandioca, frutas e qualquer espécie de grão não poderão vender por atacado a um ou mais atravessadores sem que primeiro tenham estado com suas carretas ou cargueiros na Praça da Igreja, por três horas, vendendo, a miúdo, ao povo.

Como se vê, já havia a intenção de organizar os mercadores, fixando um local em que reunissem seus produtos para ofertá-los a varejo ao povo. Marcar a Praça da Igreja como local para a venda fundou uma tradição que iria se repetir no futuro em outras praças da cidade.

A inauguração do Mercado Público, no ano de 1882, concentrou as vendas dos mais diversos gêneros e também serviços na então Praça Ponche Verde, hoje José Bonifácio. O Mercado era como um Shopping Center dos dias atuais, mas sucumbiu no final da década de 1950, condenado por um comércio mais bem organizado e aparelhado e pelo sucateamento próprio da falta de manutenção que caracterizava – e ainda caracteriza – os prédios públicos.

Mercado Público (1882-1957) - fototeca Museu Municipal
Em 1947 foi criada a Feira Livre Municipal, instalada primeiramente na Praça Balthazar de Bem, assim como fora em 1853. Igualmente funcionou por um tempo na Praça Borges de Medeiros. Em junho de 1951, a feira foi transferida para a Praça José Bonifácio, convivendo com o Mercado Público por um período de cerca de seis anos. Com a demolição do Mercado, os feirantes passaram a ocupar os fundos da Praça, junto à Rua Moron. Ali eles dispunham as carroças, transformando-as em balcões dos seus produtos.

Feira Livre nos fundos da Praça José Bonifácio
- fototeca Museu Municipal
Em 13 de dezembro de 1986, quando ocorreu a inauguração das instalações da Feira Livre Municipal, espaço coberto situado na Rua 15 de Novembro, esquina com a Dr. Milan Kras, os feirantes finalmente obtiveram um local mais apropriado para a exposição e venda de seus produtos, pondo fim ao tradicional mercado de gêneros a céu aberto da Praça José Bonifácio.

Dia de feira - Praça José Bonifácio - fototeca Museu Municipal


Referência: Cachoeira do Sul em busca de sua história, de Angela S. Schuh e Ione M. Sanmartin Carlos. 1992. Martins Livreiro-Editor.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Dr. Balthazar de Bem: homenagens do 30.º dia de seu desaparecimento

A comunidade do Barro Vermelho, no interior de Cachoeira do Sul, guarda um monumento que foi erguido com a finalidade de lembrar para sempre um incidente traumático da nossa história e homenagear um dos homens públicos mais importantes do primeiro quartel do século XX: Dr. Balthazar de Bem, morto em 10 de novembro de 1924 no levante do 3.º Batalhão de Engenharia.

A morte de Balthazar, além de outras tantas homenagens, ensejou a denominação da então Praça Almirante Tamandaré que passou a ser a Praça Balthazar de Bem em março de 1925.

O jornal O Commercio, em sua edição de 17 de dezembro de 1924, quando já havia transcorrido o primeiro mês do fatídico acontecimento, onde também pereceu o jornalista Fábio Alves Leitão, noticiou as homenagens de 30.º dia do desaparecimento do médico, político e empreendedor Balthazar Patrício de Bem:

Passou, quarta-feira última, o 30.º dia do desaparecimento objetivo do estimado e querido cachoeirense Dr. Balthazar de Bem, que tombou heroicamente no combate do Barro Vermelho, onde, voluntariamente, levado pelos seus nobres impulsos do amor à ordem e à lei, quando combatia na primeira linha, de carabina em punho, acertou-o uma bala explosiva enviada pelos perturbadores da paz e da ordem constitucional.

Ainda perdura no espírito público a intensa mágoa que causou o desaparecimento desse estimado e popular cidadão, digno, por tantos títulos, da veneração dos seus contemporâneos.

Por iniciativa da comissão executiva do Partido Republicano local, composta dos senhores Capitão Francisco Gama, Drs. Annibal Loureiro e João Neves da Fontoura realizaram-se, às 9 horas da manhã de 10, solenes exéquias na Igreja Matriz, que ficou cheia de excelentíssimas famílias e cavalheiros. Uma banda musical executou funerais no recinto do templo.

Igreja Matriz na década de 1920 - fototeca Museu Municipal

Finda a missa, efetuou-se uma romaria ao túmulo que encerra os preciosos despojos mortais do preclaro extinto, no Cemitério Municipal. Ali falou emocionante e comovedoramente o Dr. Annibal Loureiro, vendo-se muitos dos presentes verterem copiosas lágrimas de dor e saudade.


Ao meio-dia, um numeroso grupo de amigos e admiradores seguiu, em automóveis, para o Barro Vermelho, 3.º distrito deste município, chegando às 3 horas da tarde ao lugar onde tombou, mortalmente ferido, o saudoso clínico, nas imediações da casa comercial do Sr. Theofilo Lobato.

Nesse lugar, para sempre memorável, foi colocada uma lápide com a seguinte inscrição:
Aqui tombou em 10 de Novembro de 1924 o Dr. Balthazar de Bem, luctando heroicamente pelos seus ideaes. Estimado pelos inimigos, amado e chorado pelos amigos.


Monumento no Barro Vermelho - fototeca Museu Municipal

Esta significativa homenagem foi-lhe prestada pelo seu ilustre colega e amigo Sr. Dr. Milan Kras, prestando continência no ato um pelotão do 3.º Batalhão de Engenharia, aqui aquartelado.

Passados 90 anos do acontecido, o monumento, embora descuidado, segue testemunhando página triste da história local e refletindo o sentimento de respeito e veneração dos nossos antepassados pela figura marcante do Dr. Balthazar de Bem.

sábado, 29 de novembro de 2014

A Cachoeira dos Consulados

A história de Cachoeira do Sul é muito rica. Esta afirmação não causa mais espanto em ninguém, especialmente naquelas pessoas que têm interesse em conhecer o lugar onde vivem ou nasceram, buscando nele as referências que foram forjadas no passado, perpassaram os tempos e estão ainda presentes nos dias de hoje.

Em um ambiente rico de história, o que não faltam são peculiaridades, fatos únicos e do conhecimento de poucos. Vamos a um deles.

Ernesto Müller e família
Cachoeira do Sul, apesar de não ser uma capital, foi sede de dois consulados: o primeiro, mais antigo, portava bandeira da Áustria e era representado pelo Vice-Cônsul Ernesto Müller, um dos grandes nomes dentre os cidadãos da Cachoeira do final do século XIX, início do século XX. A sede do Vice-Consulado ficava na Rua Júlio de Castilhos, em casa até hoje existente, e era facilmente identificada por duas águias que guarneciam o portão de acesso, servindo de referência para os colonos e outras pessoas de ascendência germânica que vinham em busca de orientações do Sr. Ernesto Müller. 

Residência de Ernesto Müller - fototeca Museu Municipal

Mais recentemente em nossa história, na década de 1950, outra representação diplomática foi instalada na cidade, desta vez da República do Uruguai, e tendo à frente, como cônsul, uma mulher: Sara Claveaux de Jardim.


Patente de Cônsul de Distrito em nome de Sara Claveaux de Jardim
- 1965 - acervo Arquivo Histórico
D. Sara, do alto de seus 93 anos, lembra bem dos tempos em que foi nomeada Cônsul Honorária em Cachoeira do Sul, cidade para a qual transferiu residência depois que se casou com o cachoeirense Geanone Jardim.


Sara Claveaux Jardim - arquivo particular

Quando da instalação do Consulado do Uruguai, alguns uruguaios moravam em Cachoeira. O ano era 1950 e a representação diplomática, a exemplo do que também havia feito Ernesto Müller, foi disposta na casa em que D. Sara residia. Assim, o Consulado do Uruguai teve duas sedes, sempre na mesma Rua Presidente Vargas, primeiro na esquina com a Rua Marechal Floriano, em um casarão antigo identificado por um belo vitral na fachada, ainda existente, e depois na casa onde ela reside até hoje, construída ao lado da primeira sede.


1.ª sede do Consulado do Uruguai - Rua Mal. Floriano com Presidente Vargas
- acervo COMPAHC
Enquanto na casa de Ernesto Müller as águias serviam como sinalizadoras do endereço diplomático, na casa de D. Sara havia uma placa com o escudo do Uruguai que indicava ser ela Cônsul*. E assim foi até 1976, quando renunciou ao cargo.

Importante ressaltar que o serviço diplomático uruguaio em Cachoeira nunca foi exercido no sobrado de David Soares de Barcelos, na Volta da Charqueada, local que por um tempo pertenceu à família do marido de Sara Jardim e onde ela nunca residiu.

Em 1982, a uruguaia Sara tornou-se cidadã brasileira e em 2015 completará 70 anos de Brasil. Para Cachoeira, onde viveu a maior parte de sua vida, trouxe um pouco do Uruguai, temperando com seu sotaque uma página singular da nossa história.


*Cônsul ou consulesa? Atualmente é preferencial o uso da palavra cônsul para identificar o representante diplomático, seja ele feminino ou masculino. Assim: o cônsul, a cônsul.


domingo, 23 de novembro de 2014

22 de novembro - Dia do Músico

Em homenagem ao dia 22 de novembro, dedicado a Santa Cecília e aos músicos, uma breve e incompleta retrospectiva dos inúmeros grupos, conjuntos e bandas que Cachoeira teve no começo do século XX:

- Banda Musical União dos Artistas: fundada em 1870, por Venâncio Érico da Trindade, sendo formada por 15 elementos.

- Banda Musical Estrela Cachoeirense: fundada em 14 de dezembro de 1870, sendo regente Roberto Francisco da Silva. Era formada por 14 elementos. Seu regente mais famoso foi o maestro Miguel Iponema.

Extraído do Grande Álbum de Cachoeira (1922), de Benjamin Camozato

- Sociedade Musical União dos Artistas: essa antiga sociedade de música foi dissolvida em 8 de abril de 1893, mas fez nova convocação de seus associados a fim de tratar de sua reorganização em 1900.

- Banda Musical do Clube Caixeiral: regida em 1901 por David Barcellos Filho.

- Grupo Carlos Gomes: fundado em 20 de outubro de 1903, era composto por 21 elementos que tocavam instrumentos de corda e metal. Diretor: Abelino Vieira da Silva. Em 1904 adquiriu o seu próprio piano, dando concerto de estreia no Teatro Municipal.

- Grupo Fröhsinn: fundado em 1904, era liderado por João Moser e tinha em sua formação Miguel Iponema.

Grupo Fröhsinn - liderado por João Moser - fototeca Museu Municipal

- Filarmônica Euterpe: orquestra de instrumentos de corda regida pelo professor de música Venâncio Trindade e dirigida por Oscar Pötter. Destinava-se para “tocatas” em diversões públicas e para dar retretas aos domingos. Apareceu em 1910.

- Banda Popular: fundada em 8 de outubro de 1911, no salão do Major Felippe Moser, sendo maestro João Manoel da Motta Curto.

- Banda Musical Santa Cecília: criada por Cícero Teixeira e regida pelo maestro Venâncio Trindade. Estava em pleno funcionamento no ano de 1915.

- Outras bandas:
Banda de Música Adolpho Lauer (17/1/1901), Banda Musical Lira Cachoeirense (Roberto Silva, 2/3/1904), Orquestra dos Irmãos Corvada (10/10/1906), Nova Orquestra Filarmônica (19/10/1906, 1910), Orquestra Amadeu Masson (1912), Jazz-Band (1927 – 1929), Banda Musical Paz e Amor (20/2/1929), Banda Musical Amor e Concórdia (1929).
  

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Dr. Balthazar de Bem: ritual de exéquias, repercussão da morte

A edição do jornal O Commercio de 19 de novembro de 1924 repercutiu a morte e descreveu as exéquias do Dr. Balthazar de Bem:

Cachoeira toda acompanhou, com profundo pesar, o sepultamento dos preciosos despojos do ilustre Dr. Balthazar de Bem, deputado estadual, vice-intendente deste Município e membro da Comissão Executiva do Partido Republicano local, falecido em consequência dos ferimentos recebidos no combate do "Barro Vermelho", quando lutava em defesa da legalidade.

Ao baixar o corpo à sepultura, falou, em nome da Assembleia dos Representantes do Estado e no do Governo do Estado, o nosso ilustre amigo Dr. João Neves da Fontoura, deputado estadual que, profundamente emocionado, exortou as qualidades do ilustre morto, fotografando com nitidez o pesar causado por tão lutuoso fato. Em seguida, em nome do Partido Republicano local, usou da palavra o Dr. Glycerio Alves, presidente do Conselho Municipal, exalçando as virtudes que ornavam o caráter do ilustre extinto, tombado gloriosamente no campo da luta, defendendo a ordem e a legalidade. Por último, falou também sobre o lutuoso acontecimento o Dr. Frazão de Lima.

Dr. Glycerio Alves - fototeca Museu Municipal
Os oradores citados pelo jornal no sepultamento de Balthazar de Bem, João Neves da Fontoura e Glycerio Alves, tinham motivos de sobra para lamentar a morte de Balthazar de Bem. 
Drs. Balthazar de Bem e João Neves da Fontoura
- O Rio Grande do Sul, de Alfredo R. da Costa (1922) - acervo Museu Municipal

Para João Neves, além das implicações políticas do desaparecimento do deputado, vice-intendente e líder do Partido Republicano local, contava o fato de ter sido Balthazar um grande amigo e seu médico pessoal, condição que adquiriu depois de alertá-lo sobre a fragilidade de seus pulmões. No início de 1918, na companhia de Balthazar e do Dr. Alberto Gradim, João Neves seguiu para o Rio de Janeiro, no intuito de buscar tratamento para a tuberculose que o amigo já havia pré-diagnosticado e que foi confirmada em exames na então Capital Federal. Afora as relações de médico-paciente, havia a convivência na política local, campo em que Balthazar de Bem transitava com desenvoltura.

Glycerio Alves, que esteve com Balthazar no Barro Vermelho e também se expôs à luta que lá se travara, teve mais sorte e voltou ileso. Com a morte de Balthazar, foi constituído advogado da viúva e filhos.

Segue O Commercio, na edição de 19 de novembro, descrevendo os funerais de Balthazar de Bem:

Segunda-feira (...), às 9 horas, na Igreja Matriz, realizaram-se as exéquias do ilustre e querido extinto. O vasto templo católico achava-se literalmente cheio de excelentíssimas famílias e cavalheiros, vendo-se o capitão Francisco Gama, Intendente Municipal, com todos os seus funcionários, altas autoridades estaduais e federais, representantes da imprensa e de todas as classes sociais. Durante esta cerimônia, uma banda de música executou marchas fúnebres, tendo sido armada custosa essa*.

De todos os recantos do Estado chegam, diariamente, notícias telegráficas demonstrando o grande pesar causado pela morte do Dr. Balthazar de Bem.

Cachoeira poucas vezes experimentou impacto tão grande pela morte de um de seus cidadãos e passou a viver, com aqueles acontecimentos, uma pesada sensação de insegurança que caracterizaria os tempos que se seguiram depois.

*essa: estrado elevado onde é colocado o caixão do defunto durante as cerimônias de exéquias. 

sábado, 15 de novembro de 2014

As festas de 15 de Novembro - uma tradição perdida

O que era tradição no passado, hoje se tornou incomum. As datas cívicas costumavam ser comemoradas com festas e sessões solenes que envolviam diversos segmentos da sociedade. Tais festas eram planejadas com antecedência e se constituíam em ocasiões importantes para reuniões populares, com elaboração de programas e decoração dos espaços públicos.

Comemoração do dia 15 de novembro de 1904 defronte à Intendência
- fototeca Museu Municipal
Um bom exemplo disto vem do distante ano de 1913, quando já no início de outubro a Intendência Municipal promoveu uma reunião entre o Intendente Balthazar de Bem e o Cel. Horácio Borges para definir a programação comemorativa da data consagrada à proclamação da República.

O programa acordado foi o seguinte:
- alvorada festiva, às 5 horas da manhã, sábado, dia 15 de novembro;
- às 15 horas, passeata cívica dos colégios públicos, sendo que 21 senhoritas, cada uma representando um dos estados brasileiros, carregariam andores com os retratos dos vultos que se salientaram na fundação da República;
- jogo de confetes, serpentinas e lança-perfumes na Praça José Bonifácio;
- espetáculo de gala no Coliseu Cachoeirense, às 21 horas;
- domingo, dia 16 de novembro, às 8 horas, raid de infantaria com prêmios aos vencedores;
- às 10 horas, raid de ciclistas, também com prêmios;
- à tarde, batalha de flores na Avenida das Paineiras, com prêmio para os carros que se destacassem pela ornamentação;
- às 21 horas, baile na residência do Cel. Horácio Borges oferecido às 21 senhoritas que desfilariam com os retratos.

A citada reunião consta da edição do jornal Rio Grande de 12 de outubro de 1913. O programa não foi executado na íntegra, mas o vigor da comemoração e o respeito à Pátria não foram diminuídos, antes pelo contrário. Naqueles tempos o culto aos acontecimentos históricos serviam para solidificar a conquista e o sentimento de pertencimento a uma república que, afinal, em 1913 ainda era muito, muito jovem. 

Hoje, descontada a distância temporal que nos separa do 15 de novembro de 1889 e o culto absoluto ao presente que caracteriza nossa época, não há mais lugar para o que um dia foi tradição, alegria e motivo para confraternização.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Necrologia de Fábio Leitão

A edição de 19 de novembro de 1924 do jornal O Commercio, em sua página dois, traz a necrologia de Fábio Alves Leitão, reproduzida abaixo:

Página 2 do Jornal O Commercio, 19/11/1924
- acervo Arquivo Histórico
Quinta-feira última foi trazido para esta cidade e sepultado à tarde do mesmo dia, no Cemitério Municipal, o corpo do finado Fábio Alves Leitão, que foi, durante a existência dessa folha, diretor-gerente d'A Palavra, jornal que desde alguns meses suspendeu a sua publicação.

O extinto contava 36 anos de idade e era casado com a exma. senhora D. Maria Estellita Oliveira Leitão, deixando desse matrimônio quatro filhos: Nelly, com cinco anos, Paulo, com quatro, Virgínia, com um ano e meio, e João, com cinco meses.

Como dissemos na edição anterior, o extinto pereceu no combate travado no Barro Vermelho, fato que deu-se às 11 horas da manhã de 10 do corrente, quando o Sr. Fábio combatia, fardado de sargento, ao lado das praças e inferiores do 3.º Batalhão de Engenharia desta cidade, que fizeram um levante militar.

Um fuzil-metralhadora produziu-lhe uma série de ferimentos muito juntos, no abdômen, causando-lhe a morte.

Sepultado no campo, junto ao cemitério do Barro Vermelho, dali foi desenterrado e conduzido para esta cidade, onde esteve muito concorrido o sepultamento de seus despojos mortais, notando-se muitas coroas sobre o esquife.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Fábio Alves Leitão - vítima do levante do Barro Vermelho

O levante do 3.º Batalhão de Engenharia teve seu desenlace trágico no Barro Vermelho. Além do Dr. Balthazar de Bem, faleceu também naquele episódio o jornalista Fábio Alves Leitão, diretor do jornal A Palavra, e ideologicamente opositor do médico, pois postou-se ao lado dos militares revoltosos. 

Fábio Leitão (1917) - acervo familiar
No fatídico dia 10, Fábio Leitão, que atirava de pé em cima do muro do cemitério, foi alvejado mortalmente no abdômen por vários tiros de metralhadora. Morreu 15 dias antes de completar 37 anos de idade. Seu corpo foi enterrado no campo, ao lado do cemitério, no próprio dia 10, até que um grupo de correligionários, liderados por Ismael José Pereira, atendendo a um desejo da família, decidiu buscá-lo para dar-lhe um enterro digno. Dias depois o próprio Ismael Pereira, autorizado legalmente, foi até o local do combate para fazer o traslado de Fábio Leitão, conduzindo o corpo em seu próprio automóvel. 

Fábio Alves Leitão, nascido em Cachoeira no dia 25 de novembro de 1887, era uma liderança de oposição e que havia sido membro da diretoria da Associação Comercial de Cachoeira. Seu jornal, A Palavra, fundado em 1920, foi diversas vezes alvo de atentados. Antes havia sido redator de outros dois jornais: O Federalista e Parlamentarista

A esposa de Fábio, Maria Estelita, e os filhos do casal, Nelly, Paulo, Virgínia e João, ficaram desassistidos, contando nos primeiros tempos que se sucederam à morte do jornalista com a ajuda de amigos, correligionários e lideranças locais, dentre elas os irmãos Ciro e Orlando Carlos, João Minssen, Theobaldo Burmeister e José Félix Garcia.

Maria Estelita Leitão - acervo familiar

No dia 10 de novembro de 1924, Cachoeira viveu um pesadelo. Seu povo, na dor das perdas, esqueceu, ainda que por breves momentos, as diferenças que marcavam duramente aqueles anos...

domingo, 9 de novembro de 2014

Dr. Balthazar de Bem - 90.º aniversário de falecimento

A morte do Dr. Balthazar Patrício de Bem, ocorrida em 10 de novembro de 1924, causou enorme comoção em Cachoeira, decretando para aquele ano um dos momentos mais pungentes da história local. Em parte pela importância do médico, político, empresário e cidadão reverenciado, em parte pela situação que desencadeou o acontecimento, o fato é que a década de 1920 mais uma vez experimentava um de seus tantos movimentos político-revolucionários, desenhando-se tragicamente em nosso meio.

Dr. Balthazar de Bem - morto aos 47 anos

O jornal O Commercio, em sua edição de 12 de novembro de 1924, traduz bem a comoção que tomou conta da cidade, razão pela qual transcrevemos alguns trechos significativos constantes da primeira página, tomada quase que na íntegra pela trágica notícia:

O Commercio, edição de 12/11/1924, p. 1 - acervo Arquivo Histórico

Uma dolorosa tragédia encheu de luto e dor a sociedade cachoeirense: o inesperado desaparecimento do cenário da vida do estimado e querido clínico Dr. Balthazar Patrício de Bem, membro da comissão executiva do Partido Republicano local e deputado estadual.

Anteontem, pouco antes de uma hora da tarde, uma grande aglomeração de povo pelas esquinas e em várias vias públicas passava de boca em boca a triste nova: - Morreu o Dr. Balthazar! Mataram o Dr. Balthazar!

Saindo pela madrugada, em companhia de amigos e ardorosos defensores da causa da legalidade, ameaçada pela sublevação do 3.º Batalhão de Engenharia, aqui aquartelado, ocorrida nas primeiras horas da madrugada de domingo, pelas 6 horas transpunha o Dr. Balthazar o Passo de São Lourenço, com a força que pretendia impedir o alastramento da sublevação do 3.º.

Uma légua além da Sanga Funda, no 3.º distrito, alcançaram a força revoltosa que ia bem aparelhada e municiada, travando-se combate, que foi renhido e encarniçado, com ferimentos e perdas de vida de ambos os lados.

Corajoso e apaixonado defensor das suas ideias políticas, o Dr. Balthazar entrou na linha de fogo, em que quase todos os atiradores estavam em posição deitada, a qual, seguidamente, ele abandonava para pôr-se de pé, apesar dos insistentes pedidos do seu afilhado João Noronha de Bem, que o acompanhava e muito lhe pedia que não expusesse o seu corpo, tanto mais que, devido ao calor, tirara o casaco, de modo que a camisa branca mais se destacava ao longe, servindo facilmente de alvo.

Pouco depois das 10h30, quando ia acesa a luta, o Dr. Balthazar queixou-se que estava ferido. Imediatamente foi colocado em um auto, conduzido pelo seu afilhado João Noronha de Bem e acompanhado pelo Dr. Glycerio Alves, que também na linha de fogo, no entusiasmo da defesa da causa, estava combatendo o inimigo de frente a frente.

O ferimento fora, infelizmente, mortal. Um balaço no vazio do ventre, lado direito, seguido de grande hemorragia, ia roubando-lhe a vida, rapidamente, em caminho para esta cidade.

Vendo fugir-lhe a vida, uma infinita angústia apoderou-se de sua alma boa e generosa: lembrou-se, com imenso pesar, de não ver, na hora extrema, a sua esposa querida e os filhos idolatrados. Os seus últimos pensamentos e as suas últimas palavras ainda foram para a sua Marina querida, sendo este nome uma das últimas palavras que lhe saiu da boca, quando sentiu que se aproximava a morte.

Perto do baixio denominado Sarandi, um pouco além do Passo de São Lourenço, no 8.º distrito municipal, cerraram-se para sempre os olhos daquele que foi um grande e humanitário representante da nobre ciência médica, um cidadão que amava com extremos a sua terra natal, um cavalheiro de apreciáveis qualidades morais e um exemplar chefe de família. (...)

A notícia da morte do Dr. Balthazar estende-se por toda a primeira página daquela edição de O Commercio e ainda pelas edições seguintes, com publicação da repercussão no meio social, das exéquias e dos primeiros passos legais de solução de seus negócios que envolviam as propriedades rurais e a Charqueada Paredão, dentre outros.

Dr. Balthazar de Bem, natural de Caçapava, onde nasceu em 16 de março de 1877, deixou a esposa Marina Mattos de Bem e os filhos Etelvina, João Carlos e Nora.

O blog História de Cachoeira do Sul seguirá publicando notas sobre o infausto acontecimento, inclusive da morte do jornalista Fábio Alves Leitão, também vitimado na mesma ocasião, relembrando página ímpar da nossa história.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Fotografia em 1913: arte ou esporte?


Cachoeira vivia, em 1913, a febre da fotografia. Eram tantos os praticantes desta “novidade” que pairava no ar uma dúvida: a fotografia, afinal, era arte ou esporte?

O jornal Rio Grande, em sua edição de 17 de julho de 1913, publicou a seguinte matéria:

"Com o desenvolvimento do esporte na nossa terra, ultimamente também a fotografia vai ganhando terreno. Em todas as festas, dias de domingo e comum, não é estranhável vermos muitos amadores com a sua caixinha preta procurando pôr em foco aqui um trecho da rua, ali um grupo de senhoritas, etc.

Máquina fotográfica 1913 - vivaradio.wordpress.com

E assim já temos um Calegari, um Ferrari, um Barbeitos, um Fontana* e vários outros, em miniatura. A concorrência é tanta que os retratos nada custam. Qualquer pessoa fará um grande favor se se deixar fotografar. Os afixados são gentis ao extremo. Invadem os quartos de dormir para apanhar instantâneos dos que dormem, suplicam transeuntes para as vistas das ruas. E vários apresentam magníficos retratos, alguns bem focados, nítidos, porém, outros precisam escrever os nomes para serem conhecidas as pessoas. 

Rua Saldanha Marinho - sem data e sem autor - fototeca Museu Municipal

Rua 7 de Setembro com transeunte - sem data e sem autor - fototeca Museu Municipal

Porto e engenho de arroz, vendo-se o leito seco do rio
- sem autor e sem data - acervo Ernesto Müller


Diante desta faina fotográfica, em breve abriremos um concurso com prêmios a fim de galardoarmos a estes infatigáveis sportsmen”.

Nas próximas edições do jornal há rápidas referências ao concurso, intenção de arrecadar os prêmios, mas... nenhuma notícia da realização!

Digno de nota é o fato de que por esta época o “nosso” Calegari já estava residindo em Cachoeira e, quem sabe, servindo de inspiração aos “desportistas” da fotografia: Dr. Benjamin Camozato!

*Calegari, Ferrari, Barbeitos, Fontana: fotógrafos famosos da época.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Mais da história de 111 anos do Hospital de Caridade

O jornal Rio Grande, em sua edição do dia 21 de outubro de 1909, na primeira página, publicou os estatutos do HOSPITAL DE CARIDADE CACHOEIRENSE, que tinham sido aprovados em assembleia geral de sócios.

Os estatutos, em  nove artigos, eram os seguintes:
Art. 1.º O Hospital de Caridade Cachoeirense, como instituto beneficente que é, foi constituído de sócios sem distinção alguma e tem por fim proporcionar aos indigentes enfermos tratamento médico e cirúrgico.
Art. 2.º A sede do hospital será nesta cidade, no edifício próprio já construído à Praça Itororó.

Hospital de Caridade em foto de 1922 extraída da obra
O Rio Grande do Sul, de Alfredo R. da Costa
Art. 3.º O hospital será administrado por um Diretor, um Vice-Diretor, um Secretário e um Tesoureiro.
Art. 4.º A Diretoria será eleita por assembleia geral, constituída pelos sócios contribuintes, mediante sufrágio da maioria dos que a ela comparecerem.
Art. 5.º O hospital será representado em juízo, ou fora dele, pelo seu Diretor.
Art. 6.º Os membros da sociedade não responderão subsidiariamente pelas obrigações que os seus representantes contraírem em nome dela.
Art. 7.º O hospital será regido por um regulamento interno, devidamente organizado e aprovado pela assembleia geral.
Art. 8.º Os presentes estatutos poderão ser revistos quando as necessidades assim o determinarem.
Art. 9.º Estes estatutos serão registrados quando o seu Diretor assim o julgar oportuno, de acordo com o Decreto n.º 193 de 10 de setembro de 1893.

Como o registro acima confirma, o Hospital de Caridade nasceu preocupado com a sua própria gestão. Conceito moderno, aplicação antiga.

sábado, 11 de outubro de 2014

Santa Josefa - nascimento da lenda

SANTA JOSEFA
Num belo gesto de piedade, santificando o martírio, os nossos antepassados nos legaram, junto à sanga da Micaela, um pequeno túmulo encimado por uma cruz, onde repousam, diz a lenda, os restos da Santa Josefa.

Túmulo de Santa Josefa - fototeca Museu Municipal
Os restos da Santa Josefa
Era a santa dessa raça votada ao sofrimento e à miséria, que o grilhão da cor acorrentara ao cáucaso da ignomínia. Negra e escrava. Eram-lhe condições sobejas de martírio, se lhe não fora a vida perene dor.
Uma lenda, vagamente sabida, quase esbrumada nos tempos, destaca-a do fundo escuro do passado, com resplandores iriados de santidade. Sofreu muito e o povo canonizou-a. Não teve no cemitério santo um lugar, ou na obscuridade da vala comum um canto; mas ali, junto da cidade, quase dominando-a do alto, cercam-na todas as noites dezenas de velas, erguem-se, de redor de seu túmulo, as plangências litúrgicas das ladainhas na vocação religiosa daquela alma de santa que lá nos céus, piedosa e meiga, estende para Deus os braços impetrando graças divinas.
Santa Josefa é um símbolo. Entrou na crendice popular nessa época terrivelmente bárbara em que o azorrague* do feitor abria, na noite profunda da epiderme negra, relâmpagos faiscantes de sangue.
O martírio deu-lhe santidade. E através de quase um século de adoração, hoje como outrora, todas as noites, os terços intencionais, sob a pálida chama tremulante das velas, sobem de ao pé dela, nas litanias** sagradas de um fervor cultual.
Contam-se os milagres. O túmulo que cerca a nesga de terra em que seu corpo jaz, e o penhor de satisfeita promessa. Graça nenhuma se lhe pede que a santa piedosamente não venha socorrer. É perante Deus a intermediária do povo. Não só da massa alheia de crendices e superstições, mas até dos cultos, a quem não nega o cumprimento de votos impetrados. Pois há até quem, de longes léguas, mande buscar o sebo das velas que alumiam a Santa, o qual é infalível para reumatismos...
Quantas vezes na meninice não desfiei padres-nossos junto às gradezinhas do túmulo em que a Santa dorme?
Venerava-a, sem conhecê-la. Era uma negra que ficou santa, diziam. A lenda feita em torno de seu martírio e de sua morte era e é quase desconhecida.
Adoram-na pela simples razão de que três gerações já a cultuaram.
Sua história é simples.
Josefa era escrava de um tal Costa que morava à Rua Moron, onde reside a família do finado Júlio Rosa. Seu senhor, homem mau, de uma perversidade sem nome, levava dia e noite a maltratá-la.
Não satisfeito já com as contínuas vergalhadas que marcavam o corpo da infeliz, em uma sexta-feira de Senhor Morto, Costa mandou que ela fizesse uma tachada de sabão. Pronta, não ficando a tachada a seu gosto, atirou-a dentro, queimando-se Josefa horrivelmente. Salvou-se por milagre e quando se pode levantar, em uma das vigas do quarto em que dormia, enforcou-se. Os suicidas não podiam ser enterrados no campo santo e Josefa o foi no local onde hoje se acha o seu túmulo.
Passados anos um cão, cavando a terra em que ela fora sepultada, descobriu-lhe um braço. Estava mumificado. Corre a notícia célere. O povo acode. É o milagre. A terra não comera as carnes da infeliz: até a terra lhe negava o supremo consolo de consumir-lhe os ossos!
O povo santificou-a. E ela vem até nós, há quase um século, trazida pela crença onisciente do povo, o seu santificador. As gerações têm passado sobre ela, respeitando-a e venerando-a.
É para nós, que não temos a ventura de crer, uma tradição simbólica da terra. E amamo-la porque ela será, quando a cidade remodelada e modernizada arrasar os últimos vestígios do passado, o refúgio da tradição cachoeirense, a ara*** velha do templo em ruínas do passado em que iremos comungar com essa raça forte, afetiva e infeliz que terá naquele túmulo o pedestal de seu martírio.
O município acaba de comprar o terreno em que está o túmulo da “Santa Josefa”, a fim de abrir ali avenidas amplas e modernas. Façamos nós, o povo que zelamos tradições, que cremos na “Santa Josefa” uma subscrição popular para erigir-lhe uma modesta capela, de que seja a padroeira a verdadeira Santa Josefa (já que a Igreja não admite a nossa), conservando porém, no fundo dessa capela, aquele pequeno túmulo, com a sua doce simplicidade primitiva de santuário.

João da Ega
(Extraído do Jornal Rio Grande, Cachoeira, Ano VII, Nº 80, 16/11/1911, p. 1)

*açoite
**ladainhas
***altar; pedra sobre a qual o sacerdote põe o cálice e a hóstia