Quando as sangas da Inês e da Micaela se encontrarem, diz a lenda, a cidade desaparecerá!
Nunca antes esta antiga lenda foi tão lembrada... e temido seu vaticínio! Cachoeira do Sul tem sido assolada por eventos naturais de grandeza poucas vezes experimentada e em tão repetidos eventos! Será que as crendices do passado e o folclore surgido em torno delas têm lugar em pleno século XXI?
Pelo sim, pelo não, eis a lenda extraída da edição de número 976 do jornal O Commercio, datado de 14 de agosto de 1918:
Não
é nenhuma novidade dizer-se que cada cidade, cada lugarejo, cada sítio tem suas
lendas: umas verdadeiramente interessantes e poéticas outras despidas destes
requisitos, revelando crendices mais ou menos bárbaras dos primitivos
povoadores desses lugares.
Esta que vamos contar, ou melhor, dizer
como no-la contaram, está muito longe de pertencer à classe da lenda de Psiquê e de tantas outras que fazem “o
encanto de quem as lê”, ou dos que as ouvem da voz da tradição. Esta, dizemos,
é uma lenda essencialmente rústica, que nada mais pode despertar senão o sabor
de ouvir o relato das coisas passadas.
O nosso interlocutor – não importa
saber-lhe o nome – é naturalmente uma pessoa antiga, amante de coisas antigas.
E vem daí o reter ele (ou ela) na memória o que dizem, desde os tempos idos,
dessas duas sangas que, lançando-se no Jacuí, limitam, pelos lados Leste e
Oeste, a colina em que atualmente se estende a cidade da Cachoeira.
Ouçamos a narração:
“Ali entre a Bica e o rancho onde residiu e morreu o velhinho João Rabequista que, quando não pôde
mais pescar saía a tocar uma velha rabeca para ganhar a vida, era o ranchinho
da Inês, viúva, segundo dizem, de um português em cuja companhia viveu por
dilatado tempo numa constante e bem compreendida harmonia, descontados apenas
alguns bate-bocas terminados em pontapés. Mas como tudo neste mundo tem um fim,
mais hoje, mais amanhã, o seu velho,
homem mais robusto e ativo agenciador da vida, apareceu um belo dia atacado de
uma doença esquisita, a modos que enfeitiçado; e não houve remédios caseiros
nem benzeduras que impedissem o seu Manoel entrar a definhar a olhos vistos,
até que uma noite quatro velinhas bruxuleantes iluminaram-lhe o caminho da
posteridade.
Ninguém pôde explicar, senão pelo
feitiço, a natureza da moléstia que o matara, ainda os mais entendidos na arte
de curar daquele tempo.
De sua junção com a preta Inês não
ficou prole; e isto acrescentou sobremodo a desolação da pobre que, só e
abandonada, deixou-se tomar de grande acabrunhamento; e então, às horas
sombrias carpia suas mágoas, divagando pelas margens da sanga que, a esse
tempo, eram revestidas de árvores, não contando algumas clareiras resultantes
dos caminhos abertos pelos moradores do sítio e das devastações dos lenhadores.
Um dia, já ao escurecer, Inês
sentara-se ao portal de seu velho rancho, e, pensando no passado, recordava-se
que antes do seu homem enfermar e bater asas para o outro mundo notara,
diversas vezes que, no silêncio da noite, uma coruja muito grande, muito
grande, pousava sobre tocos carcomidos em derredor do rancho e soltava pios
agourentos e lúgubres.
E assim absorta e passando em revista
na mente doentia todos os fatos que pudessem explicar a causa do desandar de
sua sorte, ouviu uma voz saída das sombras, que assim dizia:
- Não se apoquente, siá Inês; nesta vida não valem
tristezas; o que vale é a gente saber d’onde veio o mal e tratar de dar-lhe
remédio. Olhe, o seu homem não era nenhum santo, e foi por isso mesmo que a sirigaita
da Micaela deu-lhe as coisas ruins
para beber de que veio a enfermar e morrer.
E uma sombra passou-lhe diante dos
olhos, sumindo-se na treva.
A pobre criatura tomou-se de tal pavor
que nada mais fez que recolher-se para o interior do casebre, passando, porém,
a noite em claro, atormentada pela revelação misteriosa da qual resultava uma
amarga desilusão e uma funda irritação contra Micaela.
- Mas, quem era essa Micaela?
- Pouco abaixo do lugar que se conhece
por Santa Josefa – continuou a narração
– existiu antigamente um casinha à margem esquerda da sanga situada ao lado
Leste da cidade, que muita gente conheceu habitada por uma cabocla, - dizem que
de muita figura, a quem davam o nome de Micaela, cuja vida era cercada de certo
mistério e cheia de acidentes. Daí é que vem o nome de Sanga da Micaela, da mesma forma que Inês deu o nome à outra.
Mas como ia dizendo, Inês, extremamente
abalada por aquela noite mal passada, resolveu, logo ao amanhecer, ir à Aldeia,
onde decerto colheria explicações sobre o que lhe acontecera; e sucedeu que ali
chegando não faltou quem não estranhasse a sua cegueira em relação aos fatos
ocorridos entre Micaela e seu finado companheiro, os quais ao princípio muito
amigos, como todo o povo sabia, tornaram-se depois inimigos por causa de umas
coisas que se meteram na cabeça da cabocla que, por sinal, era bem boa bisca.
Desde essa manhã a boca da Inês
incendiou-se contra Micaela, da qual, daí em diante pôs todos os podres na rua,
os que tinha e mais ainda os que não tinha.
Sabedora disso, a cabocla pagou-se na
mesma moeda. Finalmente, sempre que se avistavam era um bate-boca interminável!
Certo dia, pegaram-se à unha com tanto encarniçamento que, se não apartassem,
estrangular-se-iam uma à outra.
Passaram os tempos; mas como ódio velho
não cansa, à medida que o tempo corria mais se azedavam aquelas rivalidades.
Assim passaram os anos até que Inês,
muito velhinha e já quase em estado de fantasma, veio uma noite a falecer perto
da Bica, praguejando até ao seu
último alento contra sua odienta inimiga. Pouco lhe sobreviveu a cabocla,
morrendo também em estado de extrema pobreza e abandono.
Toda esta história vem para dizer, meu
senhor, que após o desaparecimento dessas duas mulheres, entraram a aparecer as
almas delas quase todas as noites nas respectivas sangas, viradas em fantasmas,
empenhadas ambas no trabalho de, com as unhas, solaparem as terras das margens
– cujas terras as enxurradas andam levando para o rio desde aquele tempo até
agora.
Parece que com isto as sangas querem se
encontrar para se devorarem mutuamente, continuando a vontade dos seres
extintos.
Como se vê, a sanga da Inês, que
começava da Bica e era muito
estreita, está num socavão imenso e já está no ponto de tragar a volta da
estrada do Seringa, ao mesmo tempo que vai avançando para o dorso da colina
onde, daí a pouco, as casas da cidade se precipitarão ao abismo que a alma da
Inês está cavando a seus pés.
Pelo outro lado, a da Micaela vai
fazendo a sua tarefa, talvez com maior empenho. Haja vista o que ela tem feito
pela altura do Lava-pés. Não há paredões de pedra que bastem a obstar as
deslocações das terras corroídas pelas unhas da Bruxa.
Se a engenharia se descuidar, a cidade
será igualmente arrastada ao abismo também por esse lado.
Por isso é que o povo diz que quando as sangas se encontrarem, a Cachoeira
se acabará.
“Das Crônicas”
Sobre a Inês não há referências à sua existência. Mas Micaela existiu de fato e era moradora das proximidades da sanga que leva seu nome, mais precisamente na área que hoje se constitui o Parque Municipal da Cultura, onde estão o Museu, o Jardim Botânico e o Zoológico Municipal.
Parque Municipal da Cultura - foto Jorge Ritter |
A documentação primitiva das terras, encontrada no Cadastro de Terrenos da Vila Nova de São João da Cachoeira, complemento da planta de João Martinho Buff, de 1850, diz o seguinte:
- número do terreno: 281
- localização: frente - Rua Santa Helena (hoje Rua Dr. Liberato S. Vieira da Cunha), fundos - junção das duas sangas (hoje denominadas Lava-pés e Micaela)
- dimensões: 320 palmos de frente
- proprietários: sucessores da falecida Michaella
- autoridade concessora do título: José Carvalho Bernardes, Comandante da Vila
- época de demarcação: 1820 aproximadamente.
As lendas, histórias nascidas no seio da população e difundidas geração a geração, mesclam com maestria verdade e ficção...
Adorei esta crônica Míriam Ritzel ! Vamos publicar no blog do IHBM ?
ResponderExcluirPosso publicar, Suzana, com o maior prazer!
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