Espaços urbanos

Espaços urbanos
Temporal no Centro Histórico - foto Francisco Nöller

domingo, 16 de dezembro de 2018

A planta de Buff

Quando o Museu Municipal de Cachoeira do Sul chega aos 40 anos de criação e deixa na esteira desta história um já inegável e inestimável serviço à preservação da memória da cidade, traz com a comemoração um presente: a reincorporação ao seu acervo da primeira planta da cidade, confeccionada por Johann Martin Buff em 1850.

Degradada em sua estrutura pelo desgaste natural do tempo e pela sua própria história de sobrevivência em meio ao conjunto documental produzido pelas sucessivas administrações municipais – até do fogo foi salva – a planta de Buff, que é o primeiro registro cartográfico do recinto urbano de Cachoeira, ficou por longos 10 anos em processo de restauro. Neste número de anos, várias foram as tentativas de custear o trabalho da especialista que nele se debruçou. De frustração em frustração, a área cultural do município alimentava a esperança de um dia ver a planta de volta à sua casa. E eis que o dia chegou, por louvável iniciativa da administração, através do Núcleo Municipal da Cultura.

A planta de Buff antes do restauro - Acervo do Museu Municipal

A planta restaurada sob o olhar do prefeito Sergio Ghignatti
- Foto Patrícia Miranda

Mas que planta é esta?

A primeira referência histórica sobre o ordenamento urbano de Cachoeira está no ano de 1800. As guerras de demarcação de fronteiras trouxeram para a então Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira novos moradores e com eles a necessidade de construção de casas residenciais e comerciais. José de Saldanha, geógrafo e cartógrafo português que servia como engenheiro na demarcação dos limites do Rio Grande do Sul, elaborou o nosso traçado urbano usando como referência a Praça da Igreja, hoje Praça Balthazar de Bem. Pelo traçado, as ruas largas e amplas se distribuíam entre quadras quadradas, conforme o modelo das cidades portuguesas.
           
Desde 1830 a ordem, tranquilidade, segurança, saúde, comodidade e organização da Vila e arredores eram reguladas pelas Posturas Municipais, conjunto de leis elaboradas pela Câmara que também determinavam os limites geográficos, as regras para a elegância e regularidade externa dos edifícios e ruas e o asseio público. Até 1853 esses limites eram os terrenos entre o córrego Lava-pés e o rio Jacuí, na direção Norte Sul,  e, na direção Leste Oeste, os terrenos entre o arroio Amorim e o córrego denominado Sanga da Aldeia.  

Segundo as posturas, os proprietários de terrenos só podiam edificar dentro dos limites da Vila mediante licença da Câmara. Havia regras para o alinhamento e largura das ruas e calçadas, para o nivelamento das soleiras das portas, para a altura das casas e restrições à construção de degraus e escadas que desembocassem diretamente nas ruas. Também era vedado aos proprietários o depósito de materiais de construção em praças e vias públicas sem o consentimento da Câmara.

Apesar da delimitação do recinto da Vila, da existência de um traçado que deveria ser seguido e da demarcação de pontos referenciais como as Praças da Igreja e do Pelourinho, não havia uma planta que retratasse as ruas e terrenos existentes, o que dificultava os trabalhos do arruador e do fiscal da Câmara.
Em 17 de setembro de 1829, por sugestão do vereador Manoel Álvares dos Santos Pessoa, foi remetido ofício ao Presidente da Província solicitando a confecção de uma planta por engenheiro competente.

As atas das sessões ordinárias da Câmara de 12 de janeiro, 10 e 13 de abril de 1850 registram que os vereadores ainda estavam aguardando a planta encomendada ao engenheiro da Comarca, João Martinho Buff, para dar solução a inúmeros requerimentos de pessoas solicitando licença para construir em seus terrenos.

A ata de 4 de maio de 1850 registra, finalmente, o recebimento da primeira planta e o correspondente livro de cadastro dos proprietários de terrenos da Vila Nova de São João da Cachoeira, elaborados pelo engenheiro João Martinho Buff. A planta e o cadastro registram 422 terrenos, sendo 173 edificados e 249 desocupados:


“Foi presente a esta Câmara a Planta e Cadastro desta Vila, remetida pelo Engenheiro da Comarca João Martinho Buff, e exige a quantia de 4$500 réis, importância da despesa feita com os utensílios para a mesma Planta. A Câmara ficou inteirada e resolveu que dita Planta fosse arquivada assim como o
Cadastro dela e que se ordenasse ao procurador da Câmara que pague ditas despesas e que se leve ao conhecimento de S. Excia. o Presidente da Província o recebimento da dita Planta e Cadastro...”

Para a distribuição correta dos terrenos, Buff traçou os limites da Vila, destacando os terrenos da Praça do Pelourinho (atual José Bonifácio), delimitado desde 1830, o da Praça da Igreja (atual Balthazar de Bem) e o da Praça de São João, onde mais de meio século depois seria erguido o Hospital de Caridade. O engenheiro registrou cada propriedade a partir da apresentação dos títulos pelos proprietários, lançando-os simultaneamente em um livro cadastro. No livro, além do nome do proprietário, foi registrada a data da concessão ou aquisição do terreno, a autoridade que concedeu os títulos, a sua localização, medidas e a observação de edificado ou não.

As Posturas Municipais do ano de 1862 determinavam que o alinhamento, largura e nivelamento das ruas seguissem o arruamento marcado na planta de Buff. Sua confecção permitiu ainda determinar os terrenos devolutos destinados para a construção de edifícios públicos, impedindo sua concessão a particulares.
           
Mas quem foi João Martinho Buff?

Johann Martin Buff - Defender

João Martinho Buff, nome aportuguesado de Johann Martin Buff, nasceu em Rödelbhein, próximo a Frankfurt, na Alemanha, em 8 de maio de 1800. Era filho de Josef Ludwig Buff. Contratado pelo Império do Brasil para integrar o 28.º Batalhão de Caçadores Alemães, denominados por D. Pedro II como os “Diabos Brancos”, participou do combate à Confederação do Equador, em Recife. Quando deu baixa no batalhão, Buff fixou-se em Rio Pardo, onde casou com Josefina de Melo Albuquerque, em 12 de julho de 1830, dedicando-se à engenharia e agrimensura. O casal teve três filhas.
           
Em 1851, foi nomeado diretor da Colônia de Santa Cruz, ocupando-se da medição de terras e da instalação de vários colonos.

De seu conjunto de obras constam: plantas de Rio Pardo e Cachoeira, projetos de construção da ponte do Couto, do Jacuí e do Botucaraí (Ponte de Pedra) e da antiga Escola Militar de Rio Pardo, hoje Centro Cultural Regional de Rio Pardo.

João Martinho Buff faleceu, aos 80 anos, em Rio Pardo.

Esta postagem é uma homenagem ao quadro de servidores do Museu Municipal de Cachoeira do Sul - Patrono Edyr Lima - de ontem e de hoje. O valioso trabalho iniciado por Lya Wilhelm frutificou! 

domingo, 25 de novembro de 2018

Uma casa de cidade grande



A Cachoeira de 1850 era um lugar bem acanhado. A maior edificação existente era a Igreja Matriz, ainda um templo inconcluso. Havia nele sempre um retoque a ser feito, um remendo em alguma rachadura, uma torre erguida apenas e a outra em permanente vontade de subir... Até o padre Antônio Homem de Oliveira andava desassossegado – queria muito adquirir uma cruz para encimar o frontão da igreja.

Em 1856, o devoto Ferminiano* iniciou a construção do Império do Divino Espírito Santo, salão destinado às festas religiosas da tradição lusitana e que ficava no meio da quadra seguinte à da igreja. Ficou quase tão imponente quanto o Teatro Cachoeirense, construção de 1830 que dominava a quadra fronteira ao que deveria ser - e ainda não era - a Praça da Igreja.


Prédio do Império à direita - década de 1910 - Fototeca Museu Municipal
Teatro Cachoeirense - Fototeca Museu Municipal

Nessa mesma Cachoeira de 1850, em ano ainda incerto, um português – que portugueses havia ainda muitos naqueles tempos – de nome José Custódio Coelho Leal, de comprovadas posses e importância no cenário da Vila da Cachoeira, erguia na Rua do Loreto (Sete de Setembro), proximidades da igreja, uma vistosa casa para os padrões da época. Será que tinha em mente reunir a família que lhe restara? Viúvo, José Custódio só tinha um neto, José Custódio, o Júnior, filho de seu único filho, também José Custódio, falecido aos 33 anos em 1831. Será que a nora, Inocência Joaquina, vivia na companhia do sogro? Conjeturas do passado presas à imaginação e por enquanto habitantes da ficção. 

Casa de José Custódio Coelho Leal ao tempo do Clube Renascença -
Fototeca Museu Municipal

O neto já era então casado com Heduviges Falcão, com três filhos nascidos na década de 1850: João (1855), Josephina (1857) e Olympio (1859). Nos anos 1860 nasceriam mais dois: Rhea Silvia (1866) e Nelson (1868).

O interessante é que a casa que José Custódio, o avô, construiu extrapolava os padrões da acanhada Cachoeira. A rivalizar com ela somente a do Dr. José Afonso Pereira, na Rua dos Cachorros (Saldanha Marinho), que havia hospedado D. Pedro II em 1846, por ser a maior e mais confortável existente.

Casa que hospedou D. Pedro II - Fototeca Museu Municipal

Em 5 de setembro de 1858, José Custódio faleceu. O neto José Custódio herdou “uma morada de casas sitas à Rua Sete de Setembro desta cidade, com frente a Oeste e fundos a Leste, com cinco janelas, porta de entrada e portão ao lado, contendo toda a frente dezessete metros e setenta e sete centímetros, dividindo ao Sul com casas do inventariante, ao Norte com terreno de Luiz da Silva, a Leste com terrenos e casas de Gaspar Xavier da Silva e de D. Mathilde Nunes da Silva Castro, a qual acharam valer seis contos de réis...” Pela data do inventário é possível verificar que a casa já estava construída no final da década de 1850. Na descrição sucinta do bem, não constam as estátuas do frontão. Teriam sido elas adereços originais da casa ou colocadas ali posteriormente?

Estátuas do frontão - Imagem Antônio Sarasá

No meio tempo entre a morte de José Custódio e a do neto, ocorrida em 1910, há uma lacuna de informações sobre a casa exceto que no ano de 1907 estava alugada para o Dr. Balthazar de Bem, ocasião em que foi sondada para servir de colégio aos irmãos maristas. Em 1911, quando Heduviges, viúva de José Custódio, o neto, faleceu, no inventário do casal apareceu “uma casa, sob número 41, nesta cidade, à Rua Sete de Setembro, que avaliamos em dezesseis contos de réis; uma casa sob n.º 39,  mesma rua, que avaliamos em nove contos de réis; uma outra casa, sob n.º 37, à citada Rua Sete de Setembro, que avaliamos em seis contos de réis...”, demonstrando que as posses da família não se restringiam apenas à casa das estátuas.

Família de José Custódio Coelho Leal Jr. e Heduviges Falcão Leal
- Acervo Ucha Mór

Seis anos depois, o herdeiro da casa em questão, Olympio Coelho Leal, vendeu o imóvel para o Clube Renascença, iniciando-se um período em que várias entidades fizeram dele sua sede, como a União de Moços Católicos, nova proprietária a partir de 1925, entidade de cunho religioso e social que acabou por incorporar à edificação a denominação pela qual a casa do português José Custódio Coelho Leal chegou aos nossos dias.

Da casa original restou a fachada, ora em processo de restauro, e que confere imponência ao residencial que atrás dela se descortina. Os elementos e técnicas construtivas empregadas na edificação revelam segredos do passado e poderão alcançar respostas à estatuária que domina o frontão, cujas figuras despertam curiosidade pela significação que encerram. Que segredos guardam? Que propósitos deveriam refletir? As respostas podem surgir na delicada tarefa de reconstituí-las, assim como um documento do passado poderá surgir dentre os escaninhos do tempo e dizer mais sobre os propósitos do português que construiu a casa de cidade grande numa ainda acanhada e inculta vila.

Esta postagem é dedicada à colega Maria Lúcia Mór Castagnino, a Ucha, detentora das informações preciosas aqui traçadas.

*Ferminiano: provavelmente Ferminiano Pereira Soares, o construtor da Casa de Câmara, Júri e Cadeia, atual Museu Municipal.

sábado, 20 de outubro de 2018

Belezas da política


A política, seja em que tempo for, atribui aos indivíduos que se confrontam em ideias e atos, todo tipo de “qualidades”, sendo este termo genérico empregado tanto para “qualidades de fato” como para defeitos. Nas disputas por cargos eletivos, os políticos costumam explorar os “calcanhares de Aquiles” de seus adversários. Esta prática, ainda que velha, segue aplicada plenamente.

No ano de 1913, duas grandes e eminentes personalidades da política local, ainda que oriundas das mesmas fileiras partidárias, por desavenças pessoais e disputas de poder, passaram a se atacar mutuamente, utilizando-se dos dois principais jornais que circulavam na época.

O mais antigo deles e de ampla circulação, o jornal O Commercio (1900-1966), traz em sucessivas edições uma seção livre intitulada Bellezas do Isidorismo, assinada por Arlindo Leal. De uma forma satírica e ácida, o autor faz uma análise das ações e obras do Coronel Isidoro Neves da Fontoura, então chefe político do Partido Republicano Rio-Grandense em Cachoeira e intendente municipal até o ano anterior.

Cel Isidoro Neves da Fontoura 
- Fototeca Museu Municipal

Jornal O Commercio, Cachoeira, 12/2/1913, p. 1
- Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico

Uma das grandes e polêmicas iniciativas do intendente Isidoro foi a aquisição da área em que seria implantado o Bairro Rio Branco, referido no texto de Arlindo Leal como “A Cidade Nova”:

Despertou um dia El-Supremo com ideias de fundar uma cidade nova. Imediatamente foi adquirida uma grande chácara* nas proximidades da via férrea. O engenheiro da Intendência traçou sobre o terreno os alinhamentos da nova cidade e grandes escavações já foram feitas. Uma casa já foi construída e talvez outras o sejam. Porém, o filho de El-Supremo, o príncipe do automóvel negro, o aiglon**, devia ser o principal proprietário do bairro novo.
A banca de advogado do Príncipe, florescendo em dezenas de causas gordas, era rendosa. Estava o aiglon em condições de edificar palácios e casas de aluguel. Foram-lhe, pois, adjudicados os terrenos melhor situados e que menos escavações exigiam.
O secretário do aiglon, o Sr. Odon*** também foi contemplado com dois bons terrenos apesar... de ter sido cadete. Tudo se arranja numa administração modelar.
Apenas nos acessos de enxaqueca d’El-Supremo, a moral republicana, sonhada por Ferreira Leal****, por Policarpo*****, por ele e tantos outros, nos conciliábulos do primeiro clube republicano, prescrevia a livre concorrência pública!
O velho republicano entrouxava as ideias do passado para ver seu filho feliz, endinheirado, de automóvel. E o filho lhe prescrevia Pyramidon****** para a enxaqueca. Essa persiste, porém, porque essa droga não cura de abatimento moral; persiste e persistirá ainda enquanto houver a luta entre a pureza do passado remoto e a ganância do presente. O mal emana do moral e não do físico; a consciência vibra sempre.
Nenhuma conta apresentarei à S. Excia. por este receituário.

(O Comércio, 12/2/1913, p. 1)

Pyramidon - gettyimages

*Chácara pertencente a Maria Egypcia da Fontoura, filha do Comendador Antônio Vicente da Fontoura.
**aiglon: filhote de águia em francês.
***Odon Cavalcanti Carneiro Monteiro, advogado e colega de banca de João Neves da Fontoura; ocupou vários cargos públicos, inclusive o de secretário da Intendência entre 1910 e 1914.
****João José Ferreira Leal, fundador e primeiro presidente do Clube Republicano de Cachoeira (1882).
*****Polycarpo Alvares da Cruz, fundador do Clube Republicano.
******Pyramidon: remédio para enxaqueca

Por sua vez, o jornal do Partido Republicano, o Rio Grande, em sua edição de 23 de fevereiro de 1913, rebate as acusações de Arlindo Leal com o seguinte título: “Desmentido formal”.


Jornal Rio Grande, Cachoeira, 23/2/1913, p. 1
- Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico

Ao deputado Dr. Arlindo Leal nos aleives que em estilo mazorro* e arreeiro** tem assacado contra a respeitável personalidade do coronel Isidoro Neves da Fontoura e contra a sua administração – houve por bem envolver o meu obscuro nome, dizendo que fora eu contemplado com dois bons terrenos na larga faixa de terra adquirida por aquele ex-intendente para o patrimônio do município.
Para que fique evidenciado até onde vai o cinismo estanhado do ofensor, dirigi ao Dr. Balthazar de Bem, atual intendente, o seguinte requerimento:

Sr. Dr. Balthazar de Bem

Peço-lhe a fineza de dizer ao pé deste: 
a) se não é verdade ter o infraescrito comprado terrenos à Intendência Municipal, situados no bairro Rio Branco, ao preço de 10$000 o plano;
  b) se em idênticas donições foram comprados terrenos no mesmo bairro pelos Srs. José Fernandes, Dr. João Neves, Cacílio Menezes, Antonio Lara, Germano Hoffmann e outros;
  c) se na sua própria administração não foi por mim comprado um outro terreno pelo mesmo preço, sendo que este mesmo terreno esteve até então à venda, sem aparecer comprador;
  d) se, finalmente, convizinhando aos terrenos por mim comprados, outros existem por preço igual aos que têm sido estipulados até hoje por esta Intendência aos adquirentes.
Subscrevo-me amº e ad.
Odon Cavalcanti

Odon Cavalcanti 

O Dr. Balthazar de Bem mandou que o Secretário da Fazenda informasse. A informação foi do seguinte teor:
Cumprindo vosso despacho supra, tenho a informar que revendo o talão dos recebimentos das importâncias provenientes das vendas de terrenos municipais, verifiquei serem verdadeiros os itens formulados pelo requerente.

Secretaria da Fazenda Municipal, 21 de fevereiro de 1913.

Hermilo Pohlmann

Aí está a que se reduz a acusação de Arlindo Leal atinente à defraudação que fez do patrimônio do município, o benemérito Coronel Isidoro Neves... Certamente todas as demais afinam pelo mesmo timbre.
Aproveito a boa oportunidade para apresentar ao ex-chefe político e ex-intendente os meus extremados protestos de solidariedade, hoje que ele não tem a mínima parcela de mando em política ou administração, e que está sendo vilmente atacado pelo mesmo homem que lhe tecia exaltados elogios em discursos retumbantes, ao tempo em que era chefe político e intendente municipal, como é público e notório nesta cidade.
Já era um vezo*** dos incas atirar pedras ao sol que se ocultava e que lhes dera luz e calor.

Odon Cavalcanti

(Rio Grande, 23/2/1913, p. 1)

*mazorro: grosseiro
**arreeiro: condutor de bestas, tropeiro
***vezo: mau hábito

Como se vê, natural seria que os republicanos se defendessem das acusações de Arlindo de Freitas Leal, outro republicano combativo, cuja experiência política passava pela Assembleia, como deputado estadual, e conselheiro do município entre 1908 e 1912. O engenheiro Arlindo Leal também era um dos mais bem sucedidos produtores de arroz do município, com grande prestígio e fortuna. Nos dias de hoje, a disputa acirrada facilmente seria classificada como “briga de cachorro grande”. Au au!

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Prosit!


Os tempos que correm têm apresentado uma tendência: a da fabricação artesanal de cerveja. Apreciadores da bebida testam combinações, fazem harmonizações e provocam a criatividade de muitos cervejeiros.

Em Cachoeira também há os “paneleiros”, termo popularmente usado para os que se aventuram na fabricação artesanal da bebida. Mas os paneleiros provavelmente desconhecem uma tradição cervejeira que a cidade tem desde o século XIX, quando os primeiros fabricantes se atiraram à produção da bebida, trazendo ao mercado local diferentes tipos e marcas.

O primeiro deles, Rudolph Homrich, era dono da Deutsche Bier Breuerei, estabelecida na Rua Sete de Setembro, logo abaixo da Estação Ferroviária.

O jornal 15 de Novembro (Cachoeira), edição de 28 de maio de 1890, à página 3, traz a seguinte notícia:

“A Cervejaria. De Rudolf Homrich. Rua 7 de Setembro, próximo à estação da estrada de ferro. O proprietário desta fábrica, uma das mais acreditadas desta cidade, previne ao público e à rapaziada diletante da refrigerante cerveja Homrich, a mais própria para a estação, que teve a original ideia de fazer um poético bosque, sob o qual é agradabilíssimo tomar-se um espumante copo dessa bebida sem rival. Custa apenas a garrafa de cerveja preta ou branca, simples, 240; dúzia 1$920, garrafa de cerveja dupla, 350; dúzia, 2$880. Ao bosque, pois! Ao bosque do Homrich diletantes do bom gosto!”

Em 1912 a cervejaria foi modernizada, sendo acrescidas novas máquinas e ampliados os compartimentos. A maior novidade foi a instalação de uma fábrica de gelo. sendo o processo fabril da cerveja feito a partir de matérias primas importadas da Europa. As marcas produzidas então eram a Crystal, clara, Homrich, obscura, e Dragão, preta, especial para o inverno. Tais marcas, segundo o fabricante, não receavam confronto!

Instalações da cervejaria na Rua 7 de Setembro - Fototeca Museu Municipal


A cervejaria de Rudolph Homrich, surgida no século XIX, atravessou o primeiro quartel do século XX e, através da imprensa, em 1925, avisava aos consumidores de seus produtos que devido ao alto valor da matéria prima teria que elevar “na razão de 100 réis o preço por garrafa de todas as suas marcas de cerveja.”

O complexo cervejeiro da Rua 7 na década de 1920 - Fototeca Museu Municipal


Rótulo da cerveja Bock da Cervejaria Homrich, já associada
a Pedro Port - Gentileza Mico Vargas


Da próxima vez que mirarmos um copo de cerveja, olhemos para o líquido fazendo a reverência à história dos pioneiros da sua preparação por aqui. Prosit!


domingo, 2 de setembro de 2018

Série Prédios com Passado, Presente e Futuro: Armazém de Arlindo Leal


Um alteroso prédio na quadra em que a Júlio encontra a Saldanha chama a atenção pela arquitetura reveladora de um tempo em que técnica construtiva e arte davam as mãos com maior facilidade.

Prédio de 1918 - antigo Armazém de Arlindo Leal - COMPAHC

Trata-se do armazém e depósito de arroz mandado construir por Arlindo de Freitas Leal em 1918. O local, próximo da gare da Estação Ferroviária, favorecia tremendamente o negócio.

Armazém de Arlindo Leal - Publicação do Banco da Província - 1925-1927
- Acervo Arquivo Histórico

O projeto de construção do armazém foi entregue ao engenheiro holandês Chrétien Hoogenstraaten, sócio de Arlindo Leal em uma olaria aberta no ano de 1917 para o fabrico de telhas e tijolos. Este empreendimento foi vultoso e para levá-lo adiante os engenheiros e sócios arrendaram de Roberto Danzmann, pelo prazo de 10 anos, uma parte de campo situada na Várzea de Nossa Senhora, proximidades da cidade. Em meados daquele ano, trouxeram de Buenos Aires uma locomóvel Hornsby, da força de 30 cavalos, máquinas para fabricação de ladrilhos e telhas e amassadores com cortadores. Os equipamentos permitiram uma fabricação excepcional de telhas e tijolos por dia.

Arlindo Leal, que também era engenheiro civil, deve ter chegado a Cachoeira nos primeiros anos do século XX. Seu nome aparece na nominata do Conselho Municipal (corresponde hoje à Câmara de Vereadores) no período 1908-1912. Era membro do Partido Republicano Rio-Grandense e protagonizou brigas políticas acirradas com os Neves da Fontoura.  Foi também deputado estadual. Dono de grande fortuna, Arlindo Leal foi um dos maiores produtores de arroz daqueles tempos e grande criador de gado. Sua importância na cidade era tanta que foi um dos articuladores para criação da Praça do Comércio, de que foi o primeiro presidente em 1917.

Em 1908, diante da ameaça de desabamento do Teatro Municipal, ele foi um dos engenheiros a emitir laudo técnico recomendando o seu fechamento. Depois do sinistro, juntamente com abalizados engenheiros da capital, fez uma pormenorizada análise da situação do prédio que se localizava na Praça da Conceição (atual Dr. Balthazar de Bem).

Mas quem era o engenheiro holandês construtor do armazém de Arlindo Leal? Como veio parar em Cachoeira?

Dr. Chrétien Hoogenstraaten tinha um currículo extenso. Na Holanda, trabalhou numa companhia petrolífera que o enviou para as Índias Inglesas. Sua vinda para o sul do Brasil foi com a missão de fazer sondagens sobre a existência de poços de petróleo. Com este propósito a mais, Chrétien deve ter visto possibilidade em Cachoeira pela grande onda de progresso que se fazia sentir na cidade naquelas primeiras décadas dos anos 1900.  Em 1916, com o colega cachoeirense Jorge Hölzel, estabeleceu um escritório técnico de engenharia na Rua 7 de Setembro. Na propaganda de seus serviços diziam: “Aceita-se construção qualquer, adotando sistema e estilo moderno. Projetos, orçamentos e cálculos de arquitetura, agrimensura, cimento armado, exploração de minas, hidráulica.”

Em seu currículo consta que havia sido professor de Belas Artes da Universidade de São Paulo e de desenho no Colégio Júlio de Castilhos, de Porto Alegre. Em Cachoeira, além do armazém de Arlindo Leal, fez as plantas do chafariz da Hidráulica Municipal (1921) e da Igreja Metodista original. Em Porto Alegre, entre 1925 e 1928, construiu o Instituto Parobé e foi professor da Escola de Engenharia, tendo publicado na revista da instituição 24 trabalhos sobre projetos arquitetônicos e construções rurais, sendo considerado um desenhista refinado, segundo Günter Weimer.


20/9/1921 - inauguração da Hidráulica Municipal, vendo-se o chafariz projetado
por Chrétien Hoogenstraaten à direita. 
Abaixo a Igreja Metodista original - Fototeca Museu Municipal 



O alteroso prédio que foi depósito de arroz de Arlindo Leal é uma destas dignas edificações que contam a nossa história, portanto plenas de passado, presente e futuro. 

Observação: apesar da importância destes dois engenheiros, Arlindo Leal e Chrétien Hoogenstraaten, não há imagem disponível de ambos.

sábado, 11 de agosto de 2018

Um tapete de boas-vindas


Quem não está acostumado a observar os detalhes que se espalham pelas ruas da cidade, em esquinas, muros, fachadas, frontões, frestas entre casas, certamente nunca olhou para as pedras das calçadas e das ruas. Sequer se deu conta que os passeios públicos das principais ruas têm um padrão. Não sonha que este padrão, por se repetir por décadas, recebeu do fabricante o nome de padrão Cachoeira, e ainda que lembre as ondas de Copacabana, certamente reproduz as ondas das antigas cachoeiras do Jacuí – ou os movimentos dos fandangos...

Padrão Cachoeira nos passeios públicos - foto COMPAHC

Os mesmos desavisados que nunca perceberam os detalhes do tempo se surpreenderam com uma belíssima foto do Mico Vargas, tomada feita do alto sobre a “subida dos bancos” da Rua Sete de Setembro.  De efeito surpreendente, a foto revelou a simetria e a cuidadosa disposição das pedras no local que, por muitas décadas, foi entrada principal para o centro da cidade, a partir da Estação Ferroviária. Como um tapete de boas-vindas aos visitantes da Princesa do Jacuí.

Sete desenhada - Foto Mico Vargas


Detalhes do calçamento da Rua 7 de Setembro - COMPAHC

Quem realizou tal trabalho?

Quando João Neves da Fontoura assumiu a administração do município por impedimento do intendente Francisco Fontoura Nogueira da Gama, deu continuidade às obras de urbanização da cidade. Distribuição de água e rede de esgoto, construção de reservatórios, embelezamento de praças e calçamento de ruas eram as principais frentes de trabalho da Intendência. São desta época as inaugurações do Château d’Eau e do R2, na Praça Borges de Medeiros, e também os artísticos calçamentos da Rua Sete de Setembro e da Praça Dr. Balthazar de Bem.

Calçamento decorado defronte à Catedral - Foto César Roos

Estrela defronte ao Paço Municipal - Foto Rui Gonzaga Ortiz

Cachoeira se tornou um canteiro a céu aberto, atraindo profissionais para participarem de licitações e concorrências públicas com vistas a atacar tantas obras. E foi para aproveitar uma destas oportunidades que José Torrano, por volta de 1924-1926, veio de Porto Alegre com dois companheiros, um deles Manoel Medeiros Júnior, para calçar ruas da cidade.  Calçaram a Sete, no trecho fotografado por Mico Vargas, a Rua 15 de Novembro, em trecho fronteiro ao Paço Municipal, e a Moron, defronte à Catedral. Deixaram suas marcas empregando pedras de diferentes cores que, em colocação harmônica, formaram losangos na Sete e Moron e estrelas na 15.


Estrela no calçamento da Rua 15 de Novembro, trecho fronteiro ao Paço
- Foto de Mirian Ritzel

A obra de calçamento na Praça Dr. Balthazar de Bem, artística e minuciosa, foi finalizada com festa no local, conforme noticiou O Commercio de 7 de dezembro de 1927:

À tardinha do sábado último foi fechado o calçamento feito a paralelepípedos da Praça Dr. Balthazar de Bem. Por este motivo, o Sr. Manoel Medeiros Júnior, empreiteiro do calçamento, ofereceu aos seus operários e auxiliares churrasco regado a chopp, festa que se realizou depois das 4 horas da tarde, na referida praça, correndo muito animada (...)".

Andar pelas ruas da cidade pode ser um agradável exercício tanto para o corpo quanto para a mente. E gratas surpresas aguardam os olhares cuidadosos que se dispõem a observar os detalhes do tempo.

Esta postagem é dedicada a Mico Vargas, cujas lentes registraram o lindo calçamento da "subida dos bancos", revelando-o a muitos, relembrando-o para poucos que dele já haviam se dado conta.

domingo, 29 de julho de 2018

A importância da Ponte do Fandango

Desde 1961, quando foi oficialmente inaugurada a Barragem-Ponte do Fandango, que a cidade não se via totalmente privada de sua estrutura e do importante e inestimável serviço que ela presta. 

Os cachoeirenses do passado viveram as dificuldades da não existência da ponte e muito sonharam com as facilidades que ela ofereceria. A história mostra que em 1912 houve um movimento de lideranças comunitárias e autoridades em torno da construção de uma ponte que transpusesse o rio Jacuí nas proximidades da cidade, favorecendo o transporte e a ligação com outros municípios via estradas de rodagem. Logicamente este sonho era bem mais antigo, mas os jornais de 1912 chegaram aos nossos dias, revelando a iniciativa. 

A construção da Ponte do Fandango, iniciada em meados da década de 1950, começou de fato a ser planejada em 1949, quando o então prefeito, Dr. Liberato Salzano Vieira da Cunha, viajou ao Rio de Janeiro para tratar de tão importante obra. Como resultado das tratativas levadas a efeito na Capital Federal, em 25 de abril daquele ano a cidade recepcionou o Ministro da Viação, Clóvis Pestana, que garantiu em um dos discursos proferidos: "A ponte será construída em época não muito remota, para isto já estão sendo feitos os estudos e serão iniciados os trabalhos preliminares de sondagem e construção de barragem." A cidade tomava conhecimento então que a estrutura a ser construída constaria de uma ponte com barragem e eclusa!

Jornal do Povo - 1/5/1949, p. 1 - Acervo de Imprensa do Arquivo Histórico

A Barragem-Ponte do Fandango foi a primeira do gênero a ser construída no Brasil e favoreceu a ligação de Cachoeira do Sul com a rodovia Porto Alegre - Uruguaiana, suspendendo a travessia do rio Jacuí pelas balsas.

2018. Desgastada pelo tempo, pelo tráfego pesado e volumoso e pela ineficiente manutenção, as obras há muito reclamadas finalmente estão acontecendo. O transtorno do fechamento da ponte dá uma ideia para os cachoeirenses de hoje do quanto a sua existência é importante e o quanto os cachoeirenses de ontem enfrentaram de obstáculos nas suas movimentações. 

Obras na Ponte do Fandango - Imagens de Renato F. Thomsen

A experiência re/vivida com a travessia do rio por balsas, embora carente de um planejamento mais eficiente, está a mostrar o quanto o Jacuí é soberano nas nossas vidas. Ainda que pouco olhemos para a sua importância e fundamental significação.

Balsa fazendo a travessia do rio Jacuí - Foto Robispierre Giuliani

Vide: https://youtu.be/YfG7bGJ9is0 - Renato F. Thomsen.

domingo, 22 de julho de 2018

E por falar em barcas e atracadouros...


Com a necessária reforma da Ponte do Fandango, a cidade passou a reviver tempos em que a travessia de veículos de uma margem a outra do rio Jacuí só podia ser realizada com a ajuda de barcas.

Reforma na Ponte do Fandango - Imagem Jornal do Povo

Questões de toda ordem parecem dominar operação que deveria ser despida de complicadores, afinal a relação de Cachoeira do Sul com o rio é intrínseca, as experiências com este convívio são incontáveis e, na maioria das vezes, recorrentes...

Barca no porto da Moron - Jornal O Correio

Antes da construção da Ponte do Fandango a navegação era ampla no Jacuí. O velho porto de embarque e desembarque, no baixo da Moron, atendia ao tráfego já com limitações quase um século depois da sua construção. Foi decidido então buscar um novo atracadouro, em local que oferecesse menos obstáculos ao vai-e-vem de embarcações.

O jornal O Comércio, edição do dia 9 de fevereiro de 1949, guardados fatores como tempo e motivação, bem mostra que a História guarda lições que volta e meia deveriam ser cantadas aos quatro ventos:

“Com as obras finais que o DAER vem executando no trecho da estrada de acesso, pela margem esquerda do rio, ao novo “Passo” situado logo após a “ponta da ilha”, é de se prever para muito breve a inauguração deste importante melhoramento no sistema de transporte entre a cidade e a zona Sul do município. Como na margem esquerda, que já está praticamente pronta há algum tempo, na margem direita, o acesso ao passo será feito sobre longo aterro com pontilhões, dada a existência de alagadiços no local.

Apesar desta mudança do nosso tradicional “Passo da Praia” vir afastá-lo da cidade, pois o trajeto a ser feito não será mais pela Rua Moron – Descida da Praia – e sim Rua Conde de Porto Alegre – Descida do Amorim -, entrando pela “Limpeza Pública” até o rio, a sua inauguração há muito vem sendo aguardada por todos aqueles que necessitam periodicamente usá-lo. Como é do conhecimento geral, a mudança em apreço fora resolvida em atenção às exigências técnicas, pois o local onde vem funcionando há dezenas de anos, dada a pouca profundidade das águas, não se presta satisfatoriamente para tais finalidades, muito principalmente quando o rio se acha com determinado volume de água. O novo local escolhido conta com água, quer com o rio cheio ou como em tempo de seca, perenemente profunda, o que possibilita franca manobra de barca automotora e de maior calado. Esta vantagem predispõe o emprego de barcas com capacidade para transportar elevado número de veículos em uma só viagem, o que virá solucionar as bichas que então por vezes se formam em ambas as margens do rio, principalmente por ocasião da safra do arroz." (O Comércio, 9/2/1949, p. 3).

Quase setenta anos depois, a similaridade de situação poderia ser pautada pela semelhança de atitude.