Quem se aproximar
da margem esquerda do rio Jacuí, chegando perto da plataforma do pretenso
segundo porto de Cachoeira do Sul, irá divisar um pavilhão portentoso. Quase
alheio a algumas ruínas que a ele se ligam e ignorando o ar de decadência, o
pavilhão domina o paredão do rio. Paineiras centenárias lhe servem de moldura,
marcando as estações de um tempo de convivência que eles, pavilhão e paineiras,
não sabem mais contar em anos...
Charqueada e plataforma do porto - Fototeca Museu Municipal |
Paineira na Charqueada - Foto Defender |
O cenário é o da extinta Charqueada e
Estabelecimento Paredão, a primeira grande indústria da cidade, fundada em
1878.
O portentoso pavilhão aparece em
registro fotográfico de 1910, cercado de outras construções que dão a ideia do
quanto grandioso era o complexo industrial da Charqueada.
Charqueada do Paredão - 1910 - Fototeca Museu Municipal |
Por esses tempos a Charqueada se
apresentava com a razão social de Brazilian Extract of Meat & Hide Factory Ltd.,
companhia inglesa que introduziu uma série de melhoramentos materiais no
complexo. Anos mais tarde, em 1909, ainda sob administração inglesa, o pavilhão
que domina até hoje o alto do paredão passou por uma expressiva obra, sendo
melhorado em sua estrutura e nas condições higiênicas. O projeto, de
engenheiros ingleses, mostrou-se sólido o
suficiente para estar ainda hoje, mesmo que abandonado, ostentando sua condição
de portentoso.
Placa indicativa da indústria - Fototeca Museu Municipal |
As obras são referidas com detalhes
pelo jornal Rio Grande, edição do dia
23 de dezembro de 1909, à página 2:
Fábrica Modelo
Estabelecimento
do Paredão
A convite de seu operoso gerente, nosso amigo Sr.
Henrique Pearson, tivemos o prazer de domingo último, assistir, às últimas
demãos da nova fábrica de conservas alimentícias ali reconstruída.
A impressão que dela nos ficou é que não existe
em todo o Rio Grande um estabelecimento que a este se avantaje, podendo nós sem
temor de erro classificá-lo de fábrica modelar. É com desvanecimento, pois, que
iniciamos a notícia desse novo edifício, acrescido aos que já existem naquele
estabelecimento, que vem trazer à nossa terra pela sua terminação farta messe
de benefícios, que atestam exuberantemente o engrandecimento material da
conhecida fábrica.
Não há quem vindo a Cachoeira, embora
passageiramente, e visitando o Paredão, não afirme ser este um modelo entre
seus congêneres, máxime agora, com os melhoramentos que ali foram introduzidos
e a reedificação da fábrica de conservas.
Esta que mede 58 metros de comprimento por 16
metros de largura, é um edifício de uma solidez inigualável, tendo a planta
sido traçada por engenheiros ingleses que há pouco tempo visitaram a
Charqueada. Dada a planta, feito o orçamento respectivo, começaram as obras sob
a imediata fiscalização do digno gerente daquele próspero estabelecimento,
nosso amigo Sr. Henrique Pearson.
Aproveitando o local onde se erguia a antiga
fábrica, que apresentava base não muito sólida, houve necessidade de nele se
fazer obras d’arte de valor, sendo as construções de uma solidez a toda prova.
Encarregou-se da parte relativa à construção de
alvenaria o conhecido mestre Antonelli Oreste que mais uma vez mostrou a sua
competência de profissional, sendo diretor da parte concernente à carpintaria
Carlos Böer.
Uma das coisas que mais nos impressionou nessa
construção foram as condições higiênicas que ela apresenta. Como de fato, em
uma fábrica onde promiscuamente trabalham centenares de empregados em misteres
pesados é condição primordial a capacidade cúbica de ar que cada um ali
absorve, bem como a luz proveniente das aberturas existentes.
Na nova fábrica que o Estabelecimento do Paredão
acaba de concluir, além de dezenas de janelas, a cada qual corresponde outras
pequenas, tem o cimo da cumeeira aberturas laterais, de ponta a ponta, trazendo
ao vasto salão muito ar facilmente renovado.
Todo o vigamento do edifício é de aço de primeira
qualidade, vindo diretamente da Inglaterra, sendo as madeiras empregadas
cabriúva, louro e pinho de riga. O piso da fábrica será de lajes, achando-se já
ali 1.700. O custo total não excederá de 54 contos de réis, sendo que a
inauguração será feita em janeiro.
Assistimos, porém, à terminação da cumeeira. Ao
ser pelo chefe dos carpinteiros pregado o último prego, foram hasteadas sobre
ela, desfraldando-se ao vento, as bandeiras brasileira e inglesa, ao espocar de
dezenas de foguetes, sob a chuva de aplausos dos operários em festa.
Descobertos, ante o imponente ato, elevamos
também os nossos vivas entusiásticos à digna companhia inglesa, cujo capital
vem trazer à nossa terra e aos nossos operários a honrada contribuição de seu
labor, na pessoa do cavalheiro Henrique Pearson, que sabe perfeitamente cumprir
o seu dever na gerência que lhe foi em boa hora confiada. A fábrica que vimos
de falar é uma das grandes iniciativas que a companhia e a nossa terra lhe
devem; é um atestado de que o progresso em que marchamos é uma realidade. Não conhecemos,
desde a fronteira, onde tivemos a ventura de visitar estabelecimentos saladeris
de primeiro plano, outro que leve vantagens ao do Paredão com os melhoramentos
por que passou. São dignos de nota, ficando em destaque, e ainda uma vez seja
acentuado ser um estabelecimento modelo.
Terminada a cerimônia da conclusão da cumeeira
foi aos operários, no grande salão que se acabava de inaugurar, servido um
churrasco, sendo os convidados e representantes da imprensa levados para a sala
de refeições do estabelecimento, onde lhes foi oferecido lauto almoço.
(...)
Mais uma vez seja-nos dado prantear, com efusão,
os nossos agradecimentos ao Sr. Henrique Pearson pelo modo gentil e
cavalheiresco com que fomos acolhidos, saudando pela consecução do seu desideratum
em dotar a nossa terra com um estabelecimento superior aos seus similares no
Estado.
Esta postagem é dedicada aos calouros (2018) da Faculdade de Arquitetura – UFSM/Cachoeira do Sul e aos professores Samuel Silva de Brito e Minéia Johann Scherer.