Espaços urbanos

Espaços urbanos
Ponte do Fandango - foto Robispierre Giuliani

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Triste desaparecimento de um ícone urbano

As edificações de uma cidade são testemunhas do tempo e carregam com elas, dentre outras coisas, a estética de sua época. Algumas podem desaparecer sem causar sustos ou lamentos. Outras, ao se desfazerem, levam embora não somente um marco urbano, mas principalmente a força identitária do ambiente em que estavam inseridas. Quando isto acontece, a cidade deixa de ser reconhecida em si mesma e as pessoas que nela vivem ou viveram perdem seu vínculo de pertencimento. 

Não fossem as instâncias de proteção criadas pela sociedade para garantir o futuro do passado, de um ano para outro a cidade mudaria tanto que os moradores não conseguiriam vincular-se mais com ela ou se reconhecerem como pertencentes àquele lugar. Mas nem tudo pode ser protegido e não há consciência plena da importância de manter a memória. Diante disto, infelizmente as surpresas desagradáveis nos atingem quando vemos tombar literalmente um ícone urbano.

Na esquina das ruas Saldanha Marinho e Presidente Vargas, está indo ao chão o antigo posto de combustíveis mandado construir por Theobaldo Carlos Burmeister em 1940. Em estilo art-déco, o posto guardava em sua arquitetura características que o distinguiam, marcado por estruturas curvilíneas e letreiros identificativos dos serviços que oferecia. Para completar o conjunto, o prédio que o ladeava guardava o mesmo estilo, conferindo à esquina uma elegância rara.


Trecho da Rua Saldanha Marinho, vendo-se o posto à esquerda
- Coleção Ignez Kowacs


Edifício e parte do posto de Theobaldo Burmeister em 1941
- Fotograma do filme da Festa do Arroz

Posto T. C. Burmeister em 1949 - Coleção Elinca Fontanari

Posto de combustíveis - acervo Renato F. Thomsen

A inauguração do posto ocorreu no dia 12 de outubro de 1940, com a presença de autoridades e representantes do comércio, indústria e imprensa. Com capacidade para abastecer de combustíveis e lubrificantes até quatro carros, tinha amplas entradas para as duas vias da esquina e uma oficina para pequenos consertos. O funcionamento, à época, também se estendia a qualquer hora da noite. Para marcar a inauguração, Theobaldo Burmeister ofereceu um suculento churrasco aos convidados.

O posto de combustíveis manteve sua função por 79 anos. Trocou de proprietário, mas conservou o charme que sua arquitetura e localização lhe conferiam. Agora, erguem-se sobre ele estruturas de outro prédio que apagará, lenta e dolorosamente, a memória de uma esquina que em outros lugares do mundo jamais seria destruída.






Fotografias da demolição - Renato F. Thomsen

domingo, 19 de abril de 2020

Cubos fétidos

Em 1919, às vésperas de comemorar o seu centenário como município, Cachoeira deixava muito a desejar  quando o assunto era higiene. Água tratada e esgoto para a população ainda eram sonhos não atingidos, apesar de algumas iniciativas tímidas no sentido de tentar melhorar um quadro incompatível com os avanços do século XX.

As residências não possuíam banheiros e as pessoas serviam-se de urinóis, recipientes de louça que eram usados dentro das casas para as necessidades fisiológicas. Havia também as latrinas, ou "casinhas", que se assentavam sobre um buraco ou que continham um cubo ou cabungo para depósito dos excrementos. O conteúdo dos urinóis era jogado sem cerimônia pelos pátios ou atirado nos córregos e sangas. 

Esse triste panorama começou a mudar só em setembro de 1909, quando a Intendência implantou o serviço de remoção de materiais fecais, utilizando-se do sistema de cubos removíveis. Para tanto, foi construído um chalé na Rua Conde de Porto Alegre, composto de dois compartimentos: um destinado para acomodação do transporte dos cubos e outro que servia de estrebaria para os animais empregados no serviço.


Chalé e carroça do Asseio Público - Museu Municipal

Dispostos na frente das casas quando cheios, os cubos eram recolhidos pela carroça do Asseio Público e tinham como destino o rio Jacuí, onde eram despejados e lavados!

Em 16 de abril de 1919, o jornal O Commercio publicou uma interessante nota que mostra o quanto o sistema dos cubos produzia incômodos à população:

"Perdoem-nos as nossas gentis leitoras a irreverência de abordarmos nesta seção um assunto tão mal cheiroso, pois que se o fazemos é no intuito de tornarmos pública uma reclamação tendente a melhorar esse serviço e, portanto, diminuir os excessos de tal perfume. 
Um dos moradores da Rua Saldanha Marinho esteve em nosso escritório queixando-se que, na quadra compreendida entre as ruas General Câmara e Conde de Porto Alegre, durante muitos dias, não foram removidos os cubos, que transbordavam, empestando o ar com o seu cheiro nauseabundo.
Imagine-se em que entaladelas viam-se os inquilinos daqueles prédios que tinham que abrir fossas especialmente (o que é proibido pela municipalidade) onde depositavam os materiais fecais. 
Para essa irregularidade chamamos a atenção do capitão Francisco Gama, intendente municipal" (...).

Ora, situações como a descrita pelo jornal deviam ser muito mais comuns do que se pensa, pois a Intendência dispunha de um único veículo para efetuar o serviço de recolhimento dos cubos. Há de ser considerada também a questão do tempo e das estações do ano. No verão, o drama do mau cheiro devia se agravar tremendamente. No inverno, por sua vez, o infeliz empregado do Asseio Público não devia vencer o serviço de recolhimento, a considerar a duração menor dos dias e a instabilidade costumeira do tempo nesta estação. Recolher os cubos, levá-los até o rio, desfazer-se de seu conteúdo e ainda lavá-los consumia um bom pedaço da jornada diária do encarregado. E os conteúdos se renovavam sem cessar!

Os anais da nossa história contam que este triste panorama passou a ter chances de mudar a partir de 20 de setembro de 1921, quando a primeira hidráulica foi dada a funcionar, próxima do Hospital de Caridade, levando água a um bom número de residências nas ruas principais da parte baixa da cidade. Em 1923, os condutos de esgoto começaram a ser assentados, culminando a prestação deste importante serviço com a inauguração da segunda hidráulica em 1925. De lá para cá muita coisa mudou, embora ainda haja muito a ser feito, especialmente para as comunidades que vivem na periferia.

Flagrante do início das obras de lançamento dos condutos de esgoto, vendo-se
o intendente Francisco Gama dando a primeira "picaretada" - agosto de 1923
- Museu Municipal

Rever estas situações pitorescas do passado - num tempo logo ali - nos põe a pensar sobre o conforto que os serviços de saneamento e as tecnologias da atualidade nos conferem. E mais do que conforto, estas medidas impactam diretamente as importantíssimas questões de saúde pública, todas elas influenciando muito mais do que se pensa a vida dos cidadãos e a economia das cidades.

domingo, 5 de abril de 2020

A maldita espanhola

Interessante pensar que às portas de seu bicentenário como município, Cachoeira está enfrentando novamente uma pandemia a exemplo da que viveu em 1920, ano de seu primeiro centenário. Era a pandemia da gripe espanhola. De janeiro de 1918, quando surgiram os primeiros casos, até dezembro de 1920, a gripe atingiu um quarto da população mundial, trazendo horror ao Brasil e também a Cachoeira.


Há 102 anos, gripe espanhola paralisou o Brasil - Migalhas Quentes
Enfermaria com infectados pela gripe espanhola no Rio de Janeiro - www.migalhas.com.br
Como hoje, as medidas daquela época reduziram a circulação das pessoas e fizeram sérias restrições ao comércio, aos encontros sociais e aos cultos religiosos. As pessoas circulavam com máscaras, recurso recomendado para não propagação do vírus.

Mulheres usando máscaras - www.osdivergentes.com.br

Em Cachoeira, logo que os primeiros casos começaram a ser conhecidos, o intendente Francisco Gama tomou medidas de ordem sanitária, com recomendações de que a população mantivesse limpas as casas e os quintais. 

Por determinação do estado, os colégios foram fechados e os doentes pobres deviam receber medicamentos gratuitamente. O Hospital de Caridade colocou todos os seus leitos a serviço dos doentes da gripe, o que não foi suficiente para a demanda. Os médicos se revezavam nos atendimentos domiciliares, havendo registros de grande acúmulo de pacientes para Milan Kras, Sílvio Scopel, Marajó de Barros, Augusto Priebe e Balthazar de Bem. A correria era tanta para estes profissionais que eles praticamente aboliram o uso de casacos e chapéus, pois vesti-los era perda de tempo diante do número de infectados a serem atendidos. O padre Luiz Scortegagna, vigário da Igreja Matriz, chegou a oferecer o salão do Império do Divino Espírito Santo para servir de hospital, o que não chegou a ser feito.

Médicos Augusto Priebe (em cima), Sílvio Scopel, Balthazar de Bem e Milan Kras

Dentre os que contraíram a espanhola, estavam Cyro da Cunha Carlos e sua esposa Zoé, o dentista e fotógrafo Benjamin Camozato e João Antônio Möller, da redação do jornal O Commercio. Destes, foi vítima fatal a esposa de Cyro, de 25 anos. O casal havia celebrado o casamento poucos meses antes da morte dela. 

Cyro da Cunha Carlos, um dos infectados e sobreviventes da gripe espanhola
(foi prefeito de Cachoeira entre 1939 e 1946)

Com o passar do tempo, a escassez de medicamentos foi se tornando um drama para o corpo médico local que, no final de 1918, havia atendido cerca de 700 doentes, contando 29 óbitos e 3.000 pessoas contagiadas. Na zona colonial, restava o uso de chás de sabugueiro, aipo e laranjeira, uma vez que os médicos mal conseguiam dar conta dos atendimentos na cidade.


Em relatório enviado ao Dr. Borges de Medeiros, presidente do estado, o Dr. Balthazar de Bem referiu que havia muitas pessoas circulando pelas ruas de Cachoeira com a fisionomia emagrecida, denotando um estado de fraqueza que predispunha o organismo à instalação de outras moléstias, como a tuberculose, constituindo-se em causa de séria preocupação às autoridades. 

Foi durante a pandemia da gripe espanhola que as irmãs enfermeiras, da Congregação de Santa Catarina, foram trazidas para o hospital de Cachoeira, tendo sido importantíssimas como reforço profissional ao tratamento dos infectados.



O ano de 1919 trouxe o recrudescimento da gripe espanhola em Cachoeira, como de resto em todo o país. Em 1920, os casos tinham praticamente desaparecido. Mas por um longo tempo, quando o assunto era epidemia, o horror da espanhola era relembrado, com suas vítimas e consequências funestas na economia e na vida das pessoas. 


Assim como a gripe espanhola foi uma variação do vírus influenza, agora em 2020 o velho e conhecido coronavírus se apresenta com a Covid-19 (do inglês Coronavirus Disease 2019), nome atribuído à nova moléstia por ele causada. Decreto de pandemia pela Organização Mundial de Saúde, baixas significativas em vários países e medidas restritivas de toda ordem têm posto o mundo inteiro em situação de emergência e de isolamento social. Quais serão as consequências disto tudo? O tempo dirá.

A História é uma senhora de respeito, mas mantém o velho hábito de se repetir.