Em 1919, às vésperas de comemorar o seu centenário como município, Cachoeira deixava muito a desejar quando o assunto era higiene. Água tratada e esgoto para a população ainda eram sonhos não atingidos, apesar de algumas iniciativas tímidas no sentido de tentar melhorar um quadro incompatível com os avanços do século XX.
As residências não possuíam banheiros e as pessoas serviam-se de urinóis, recipientes de louça que eram usados dentro das casas para as necessidades fisiológicas. Havia também as latrinas, ou "casinhas", que se assentavam sobre um buraco ou que continham um cubo ou cabungo para depósito dos excrementos. O conteúdo dos urinóis era jogado sem cerimônia pelos pátios ou atirado nos córregos e sangas.
Esse triste panorama começou a mudar só em setembro de 1909, quando a Intendência implantou o serviço de remoção de materiais fecais, utilizando-se do sistema de cubos removíveis. Para tanto, foi construído um chalé na Rua Conde de Porto Alegre, composto de dois compartimentos: um destinado para acomodação do transporte dos cubos e outro que servia de estrebaria para os animais empregados no serviço.
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Chalé e carroça do Asseio Público - Museu Municipal |
Dispostos na frente das casas quando cheios, os cubos eram recolhidos pela carroça do Asseio Público e tinham como destino o rio Jacuí, onde eram despejados e lavados!
Em 16 de abril de 1919, o jornal O Commercio publicou uma interessante nota que mostra o quanto o sistema dos cubos produzia incômodos à população:
"Perdoem-nos as nossas gentis leitoras a irreverência de abordarmos nesta seção um assunto tão mal cheiroso, pois que se o fazemos é no intuito de tornarmos pública uma reclamação tendente a melhorar esse serviço e, portanto, diminuir os excessos de tal perfume.
Um dos moradores da Rua Saldanha Marinho esteve em nosso escritório queixando-se que, na quadra compreendida entre as ruas General Câmara e Conde de Porto Alegre, durante muitos dias, não foram removidos os cubos, que transbordavam, empestando o ar com o seu cheiro nauseabundo.
Imagine-se em que entaladelas viam-se os inquilinos daqueles prédios que tinham que abrir fossas especialmente (o que é proibido pela municipalidade) onde depositavam os materiais fecais.
Para essa irregularidade chamamos a atenção do capitão Francisco Gama, intendente municipal" (...).
Ora, situações como a descrita pelo jornal deviam ser muito mais comuns do que se pensa, pois a Intendência dispunha de um único veículo para efetuar o serviço de recolhimento dos cubos. Há de ser considerada também a questão do tempo e das estações do ano. No verão, o drama do mau cheiro devia se agravar tremendamente. No inverno, por sua vez, o infeliz empregado do Asseio Público não devia vencer o serviço de recolhimento, a considerar a duração menor dos dias e a instabilidade costumeira do tempo nesta estação. Recolher os cubos, levá-los até o rio, desfazer-se de seu conteúdo e ainda lavá-los consumia um bom pedaço da jornada diária do encarregado. E os conteúdos se renovavam sem cessar!
Os anais da nossa história contam que este triste panorama passou a ter chances de mudar a partir de 20 de setembro de 1921, quando a primeira hidráulica foi dada a funcionar, próxima do Hospital de Caridade, levando água a um bom número de residências nas ruas principais da parte baixa da cidade. Em 1923, os condutos de esgoto começaram a ser assentados, culminando a prestação deste importante serviço com a inauguração da segunda hidráulica em 1925. De lá para cá muita coisa mudou, embora ainda haja muito a ser feito, especialmente para as comunidades que vivem na periferia.
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Flagrante do início das obras de lançamento dos condutos de esgoto, vendo-se o intendente Francisco Gama dando a primeira "picaretada" - agosto de 1923 - Museu Municipal |
Rever estas situações pitorescas do passado - num tempo logo ali - nos põe a pensar sobre o conforto que os serviços de saneamento e as tecnologias da atualidade nos conferem. E mais do que conforto, estas medidas impactam diretamente as importantíssimas questões de saúde pública, todas elas influenciando muito mais do que se pensa a vida dos cidadãos e a economia das cidades.