Engana-se quem pensa que a situação em que se encontra atualmente o Cemitério das Irmandades seja inédito. O desmoronamento do barranco em que ele foi em parte assentado é um processo que vem ocorrendo há bastante tempo, causando dores de cabeça aos gestores e à comunidade, especialmente à católica. Tal condição limita em muito a capacidade daquele campo santo receber novos sepultamentos, praticamente inviabilizando os serviços que oferece. E é esta situação especificamente que não apresenta ineditismo, pois em outros momentos de seus quase duzentos anos de história o Cemitério das Irmandades esteve cheio e foi alvo de reclamações da população e autoridades.
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Desmoronamento no Cemitério das Irmandades - foto Rádio Cachoeira |
Em 5 de março de 1887, segundo documento que está preservado no Arquivo Histórico, a Câmara Municipal, então o aparelho administrativo da época, estava empenhada em construir um novo cemitério em Cachoeira, pois o mantido pelas Irmandades estava com sua capacidade de sepultamentos esgotada. A questão era inquietante. Os vereadores necessitavam definir logo a situação e encontrar um lugar conveniente e acessível, que favorecesse a condução dos corpos e que atendesse aos preceitos de higiene, uma vez que o Cemitério das Irmandades, além de ser "propriedade das irmandades religiosas, (...) é situado dentro da cidade e está completamente cheio, tornando-se já difícil nele os enterramentos".
Como era prática administrativa na época, foi formada uma comissão de cidadãos para escolher um "local apropriado nos subúrbios desta cidade" (CM/S/SE/RE-011, fl. 28). Os nomeados foram: Dr. Affonso Pereira da Silva, Dr. Caetano Ignacio da Silva, Dr. Candido Alves Machado de Freitas e os vereadores João Jorge Krieger, Crescencio da Silva Santos e João Thomaz de Meneses Junior.
A comissão havia sido escolhida com critério, pois integravam-na médicos (Affonso Pereira da Silva, Caetano Ignacio da Silva e Candido Alves Machado de Freitas), o homeopata João Jorge Krieger e o construtor Crescencio da Silva Santos. Eram, pois, homens que tinham condições de promover uma boa escolha, pois estavam capacitados para levar em consideração as questões de higiene pública e também próprias de erguimento da obra. As tratativas e o início das obras redundaram na construção do Cemitério Municipal, inaugurado em 1891. Naquele ano, no dia 17 de agosto, os integrantes da junta governativa do município (após a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, já não era mais a Câmara Municipal o aparelho administrativo, e sim uma comissão de cidadãos nomeados para gerenciar as questões municipais) enviaram uma correspondência ao Arcediago Vicente Dias Lopes, vigário da Paróquia de Cachoeira, comunicando achar-se pronto e aprovado o novo cemitério, solicitando que "vos digneis ordenar às respectivas irmandades que desde esta data façam cessar os sepultamentos no antigo cemitério, atendendo-se assim as conveniências da salubridade e interesse público." (CM/S/SE/RE-011, fls. 144v). Também o delegado de polícia, Liberato Vieira da Cunha, recebeu comunicado de abertura e aprovação do Cemitério Municipal (CM/S/SE/RE-011, fl. 145) e a recomendação de que nos seus despachos relacionados a sepultamentos que ordenasse fosse ouvido o secretário do município para que este avisasse o zelador do cemitério (CM/S/SE/RE-011, fls. 146v a 147v).
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Pórtico do Cemitério Municipal - COMPAHC |
A resposta da Igreja foi de que não se opunham aos sepultamentos no Cemitério Municipal, mas que desejavam que fosse "aberto uma parte dele e que seja colocado o símbolo da religião católica, que ainda não foi desprezada pelo povo, e que não podem em face da lei que garante o culto dos mortos deixar em abandono o cemitério religioso para nele enterrarem os corpos de seus irmãos que fizerem parte de seu governo, e por existirem nele muitos despojos que suas famílias veneram, sobre túmulos e jazigos perpétuos, nos quais desejam ser também ali depositados." A junta, por sua vez, afirmou ter ficado "emocionada por essas tiradas de beatitude dos nossos caríssimos irmãos, tendo o prazer (...) de vos comunicar que nunca cogitou de entorpecer ou embaraçar as demonstrações religiosas, e podemos dizer que foi também este sentimento de veneração a Deus, à memória dos Santos e dos finados em geral que motivou a construção do novo cemitério para ficar a cargo da administração municipal."
E, depois das saudações à atitude da Igreja, as autoridades municipais desandaram: "Vós sabeis, todos sabem, a forma vergonhosa por que tem sido tratados os restos mortais de nossos irmãos" e solicitam ao arcediago que "fazei saber a essa diretoria a indignação de que devem achar-se possuídos estes entes que veneramos ao contemplar o quadro asqueroso, brutal que oferece o velho cemitério. Eles (os entes) que vivem no céu desfrutando os gozos que o Criador oferece aos justos verem seus despojos numa promiscuidade horrível, na maior desordem, confusão e desleixo. Tende a bondade de fazer saber a esses três irmãos diretores, responsáveis por estes horrores, o castigo que o Criador lhes há de infligir, se não fizerem rigorosa penitência por causa deste grande pecado, e quem sabe talvez de outros." O ofício da junta prossegue dizendo que é mais religiosa que a diretoria das irmandades, "não consentindo mais sepultamentos neste meio horroroso, quiçá pestífero e sem dúvida prejudicialíssimo aos habitantes desta cidade". E finaliza deixando as irmandades livres para reabilitarem-se com o público, promovendo as obras necessárias para que o velho cemitério seja melhorado e conservado (CM/S/SE/RE-011, fls. 146v a 147v).
Tais documentos provam que a situação atual do Cemitério das Irmandades, apesar de não estar relacionada com questões de higiene e cuidado com os serviços que oferece, não é inédita no embate surgido entre as autoridades e seus mantenedores, tampouco no esvaziamento de possibilidades de seguir recebendo os corpos dos falecidos. A questão agora é de risco de colapso daquele campo santo, sendo iminente o seu sepultamento definitivo no leito do Jacuí se providências não forem tomadas. Mais do que isto, o Jacuí engolirá também todas as histórias, os monumentos erguidos em homenagem aos mortos e uma infinidade de exemplares de arte cemiterial de valor inigualável, abalando ainda as importantes e necessárias estruturas que ficam nas suas imediações.
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Destruição de túmulos pela erosão do terreno - fotos Jornal do Povo |