Espaços urbanos

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Ninfas do Château d'Eau - foto Robispierre Giuliani

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Coliseu Cachoeirense X Cine-Teatro Coliseu

Muitas vezes as pessoas fazem confusão entre dois cinemas que existiram em Cachoeira, muito provavelmente porque ambos tinham Coliseu no nome. A localização também colabora para reforçar o imbróglio, pois  ambos estavam situados na Rua 7 de Setembro. Ainda que um tivesse que morrer para o outro poder nascer, por um tempo houve convivência marcada pela desigualdade. Enquanto um era erguido com tudo que havia de mais moderno para uma casa de cinema, o outro estava instalado em um barracão que foi sendo paulatinamente abandonado à própria sorte. 

Mas havia outro traço em comum entre os dois cinemas: o último proprietário do mais velho, associado a outro empreendedor, lançou-se à construção do mais novo, cujo prédio ainda existe e é tombado como patrimônio histórico-cultural. 

Henrique Comassetto - Coleção Família Carvalho Bernardes

O primeiro, chamado Coliseu Cachoeirense, com origem no antigo Cinema Familiar, fundado em 1910 pelos irmãos Pohlmann, ocupava um barracão postado na esquina da Praça José Bonifácio com a Rua Andrade Neves. Sua entrada se dava pela Avenida das Paineiras, que era o trecho da Rua 7 de Setembro fronteiro à Praça José Bonifácio, então circundada por fileira destas árvores, daí a denominação popular.

Avenida das Paineiras - Coleção Claiton Nazar

O segundo, chamado Cine-Teatro Coliseu, foi inaugurado em 17 de fevereiro de 1938 e pertencia aos sócios Henrique Comassetto, que havia sido o último proprietário do Coliseu Cachoeirense, e Algemiro Carvalho.  Mas o nome Coliseu não parece ter sido a primeira opção para o novo empreendimento, pois a imprensa cachoeirense, em 1937, publicou enquete para os leitores sugerirem nomes para a casa de espetáculo em construção, estando dentre as sugestões a de Cinema Central.

Avenida das Paineiras movimentada pelo Coliseu Cachoeirense - Coleção Claiton Nazar

Interior do Cinema Coliseu Cachoeirense (1922) - foto Benjamin Camozato


Uma das últimas fotos do Coliseu Cachoeirense - Coleção Claiton Nazar


O prefeito Reinaldo Roesch descerrando a fita do novo Cine-Teatro Coliseu - 17/2/1938 - MMEL

Cine-Teatro Coliseu - Coleção Aldo Penna

Escadaria de entrada do Cine-Teatro Coliseu no dia do seu primeiro aniversário - 17/2/1939 - MMEL

Interior do Cine-Teatro Coliseu - 1960 - Coleção Família Carvalho Bernardes

Letreiro do tombado Cine-Teatro Coliseu - foto Renato Thomsen
                    

O fato é que o zum-zum-zum da inauguração de um novo e luxuoso cinema fez com que o velho Coliseu Cachoeirense, já bastante depauperado, ficasse quase às moscas, sem maiores atrações, sem nenhuma manutenção.

Para demonstrar, de forma poética, o drama do velho barracão, outrora tão cheio de vida e ponto de atração da cidade, foi publicado no jornal O Coringa*, de Cachoeira, no dia 1.º de janeiro de 1937, o seguinte lamento:         

Lamento do Coliseu Cachoeirense

Gente ingrata

Noite de lua cheia.

Por volta das 10 horas, a massa humana que enchia o Coliseu jorrou pelas bocas, imprimindo fugaz animação às ruas do centro.

Do banco onde me achava, vi passarem apressados alguns pares, a rápida quietude em que tudo de novo caiu mais realçou a sensação de tristeza que havia em torno.

O luar e o calor eram meus companheiros.

Aproximei-me do grotesco casarão, cujo telhado irradiava com luxos de abundância os reflexos do satélite noturno.

Parecia-me estar só na praça; subitamente ouvi estranho soluçar e percebi que alguém, próximo, mal retinha sentido pranto; às vezes dizia baixinho algumas palavras, cujo sentido não conseguia apreender.

Rebusquei em torno: ninguém.

- Quem está chorando? – Perguntei a esmo, e – pasmem-se – do interior do velho prédio uma voz cavernosa, soturna, me atendeu:

- Eu, moço; não posso mais suportar em silêncio a ingratidão que me fazem...

- Mas pobre Coliseu, que se passa contigo? Por que chora? – Ah! o senhor não é daqui, e por isso não poderia me compreender; sente-se aí nesse banco que lhe contarei minha história. Quero desabafar tanta mágoa que me vai n’alma e só lhe peço julgar se tenho ou não razão! Estava intrigadíssimo: fiz-lhe a vontade e ele prosseguiu, num tom cavo, repassado de dor.

... – Há vinte e poucos anos aqui me puseram os homens desta terra e a minha aparição foi saudada com entusiasmo por todos, crianças, velhos e principalmente moços, pois eu representava a alegria mesma, a diversão indispensável, o melhor lugar onde passar algumas horas satisfeito.

Vivi muitos anos de felicidade; traziam-me sempre enfeitado, limpinho e me via prestigiado pelos bons cachoeirenses; ansiava para que viesse logo a noite a fim de recolher em meu bojo o povo ao qual dispensava um amor quase paternal, tanto o queria...

Mas vieram os anos; começaram, aos poucos, a se descuidarem de minhas paredes, do assoalho, poltronas mal substituídas; nenhuma pintura nova, limpezas mal feitas, até que, - supremo ultraje – as pulgas invadiram-me o corpo todo, transformando meu viver num constante desespero.

E,  não é só: as chuvas conseguiram franquear passagem pela minha cúpula; roeram-me os meus alicerces e denegriram minhas paredes. Eu, sozinho, lutei desesperadamente contra essa invasão de elementos destruidores; resisti quanto pude à sanha demolidora, na esperança de um socorro oportuno de meus patrões, até que, - ironia cruel – numa terrível noite, por uma conversa que ouvi, fiquei sabendo que eles haviam decidido maldosamente o meu desaparecimento!

Abafou um soluço que mais parecia um trovejar longínquo e retornou, magoado:

- Vou morrer, seu moço, e por quê?... Porque estou velho e não sirvo mais, não?... Mas quanta gente há por aí que tanto mais estimada se torna quanto mais envelhece? O tio Luiz, por exemplo... ou será por que ocupo muito espaço?...  mas... e o Ernesto Krieger?...

O senhor não acha que será crueldade? Depois se ao menos eu pudesse dizer como o general romano – “ingrata gente, não possuirás meus ossos” – seria um consolozinho, mas tenho quase certeza que o Nicolau já contou minhas tábuas, para ver por quantos meses ainda servirei de combustível...

Por cúmulo, venho suportando as zombarias do que me vai substituir; o miserável não fora de pedra e cal, tem-se mostrado de um cinismo desumano para comigo e, à medida que se alçam suas paredes, lança-me indiretas e ri-se com desdém de minha decrepitude, orgulhoso de sua estrutura.

O vil nem se apercebe de que um dia, quiçá daqui a quantos anos, ele também... mas... não falemos dele.

Recolheu-se por um momento e, como em delíquio, pôs-se a engrolar, em surdina, palavras ininteligíveis; ora eu percebia um sentido lamento, ora uma injúria acovardada aos seus algozes.

Quis tirá-lo desse devaneio, para que prosseguisse, quando surgiu à esquina do Província o Eliseu e outros patativos.

Estava desfeita a confidência; em vão aguardei que se fosse dali; em vão tentei reanimar aquele arcabouço que me falara; mergulhara no indiferentismo das coisas inanimadas.

Vai esperar a morte...

E a morte veio, o barracão foi abaixo e hoje só restam dele meia dúzia de fotografias e algum bom número de reclames das velhas fitas, muitas delas ainda do tempo do cinema mudo, quando o pianista Curt Dreyer dava o tom à história que rodava na telona. 

E o mais interessante é que o Coliseu que ganhou voz e chorou suas mágoas ao solitário homem sentado no banco da praça vaticinou que o novo que se erguia um dia poderia passar pelo que ele estava passando. Foi a mais pura verdade! Por anos a fio o Cine-Teatro Coliseu ficou em flagrante perigo de desmoronar ou ser demolido, o que felizmente não aconteceu, permitindo que hoje contemos a história dos dois cinemas de nome Coliseu, cada um com seu valor e importância. Cada um marcando para sempre a memória do cinema em Cachoeira do Sul.

* Em próxima postagem, informações sobre o jornal O Coringa. Aguarde