Muitas vezes as pessoas fazem confusão entre dois cinemas que existiram em Cachoeira, muito provavelmente porque ambos tinham Coliseu no nome. A localização também colabora para reforçar o imbróglio, pois ambos estavam situados na Rua 7 de Setembro. Ainda que um tivesse que morrer para o outro poder nascer, por um tempo houve convivência marcada pela desigualdade. Enquanto um era erguido com tudo que havia de mais moderno para uma casa de cinema, o outro estava instalado em um barracão que foi sendo paulatinamente abandonado à própria sorte.
Mas havia outro traço em comum entre os dois cinemas: o último proprietário do mais velho, associado a outro empreendedor, lançou-se à construção do mais novo, cujo prédio ainda existe e é tombado como patrimônio histórico-cultural.
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Henrique Comassetto - Coleção Família Carvalho Bernardes |
O primeiro, chamado Coliseu Cachoeirense, com origem no antigo Cinema Familiar, fundado em 1910 pelos irmãos Pohlmann, ocupava um barracão postado na esquina da Praça José Bonifácio com a Rua Andrade Neves. Sua entrada se dava pela Avenida das Paineiras, que era o trecho da Rua 7 de Setembro fronteiro à Praça José Bonifácio, então circundada por fileira destas árvores, daí a denominação popular.
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Avenida das Paineiras - Coleção Claiton Nazar |
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Avenida das Paineiras movimentada pelo Coliseu Cachoeirense - Coleção Claiton Nazar |
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Uma das últimas fotos do Coliseu Cachoeirense - Coleção Claiton Nazar |
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O prefeito Reinaldo Roesch descerrando a fita do novo Cine-Teatro Coliseu - 17/2/1938 - MMEL |
Cine-Teatro Coliseu - Coleção Aldo Penna |
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Escadaria de entrada do Cine-Teatro Coliseu no dia do seu primeiro aniversário - 17/2/1939 - MMEL |
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Letreiro do tombado Cine-Teatro Coliseu - foto Renato Thomsen |
Lamento do Coliseu Cachoeirense
Gente ingrata
Noite
de lua cheia.
Por
volta das 10 horas, a massa humana que enchia o Coliseu jorrou pelas bocas,
imprimindo fugaz animação às ruas do centro.
Do
banco onde me achava, vi passarem apressados alguns pares, a rápida quietude em
que tudo de novo caiu mais realçou a sensação de tristeza que havia em torno.
O
luar e o calor eram meus companheiros.
Aproximei-me
do grotesco casarão, cujo telhado irradiava com luxos de abundância os reflexos
do satélite noturno.
Parecia-me
estar só na praça; subitamente ouvi estranho soluçar e percebi que alguém,
próximo, mal retinha sentido pranto; às vezes dizia baixinho algumas palavras,
cujo sentido não conseguia apreender.
Rebusquei
em torno: ninguém.
-
Quem está chorando? – Perguntei a esmo, e – pasmem-se – do interior do velho
prédio uma voz cavernosa, soturna, me atendeu:
-
Eu, moço; não posso mais suportar em silêncio a ingratidão que me fazem...
-
Mas pobre Coliseu, que se passa contigo? Por que chora? – Ah! o senhor não é
daqui, e por isso não poderia me compreender; sente-se aí nesse banco que lhe
contarei minha história. Quero desabafar tanta mágoa que me vai n’alma e só lhe
peço julgar se tenho ou não razão! Estava intrigadíssimo: fiz-lhe a vontade e
ele prosseguiu, num tom cavo, repassado de dor.
...
– Há vinte e poucos anos aqui me puseram os homens desta terra e a minha
aparição foi saudada com entusiasmo por todos, crianças, velhos e
principalmente moços, pois eu representava a alegria mesma, a diversão indispensável,
o melhor lugar onde passar algumas horas satisfeito.
Vivi
muitos anos de felicidade; traziam-me sempre enfeitado, limpinho e me via
prestigiado pelos bons cachoeirenses; ansiava para que viesse logo a noite a
fim de recolher em meu bojo o povo ao qual dispensava um amor quase paternal,
tanto o queria...
Mas
vieram os anos; começaram, aos poucos, a se descuidarem de minhas paredes, do
assoalho, poltronas mal substituídas; nenhuma pintura nova, limpezas mal
feitas, até que, - supremo ultraje – as pulgas invadiram-me o corpo todo,
transformando meu viver num constante desespero.
E, não é só: as chuvas conseguiram franquear
passagem pela minha cúpula; roeram-me os meus alicerces e denegriram minhas
paredes. Eu, sozinho, lutei desesperadamente contra essa invasão de elementos
destruidores; resisti quanto pude à sanha demolidora, na esperança de um
socorro oportuno de meus patrões, até que, - ironia cruel – numa terrível
noite, por uma conversa que ouvi, fiquei sabendo que eles haviam decidido
maldosamente o meu desaparecimento!
Abafou
um soluço que mais parecia um trovejar longínquo e retornou, magoado:
-
Vou morrer, seu moço, e por quê?... Porque estou velho e não sirvo mais,
não?... Mas quanta gente há por aí que tanto mais estimada se torna quanto mais
envelhece? O tio Luiz, por exemplo... ou será por que ocupo muito espaço?... mas... e o Ernesto Krieger?...
O
senhor não acha que será crueldade? Depois se ao menos eu pudesse dizer como o
general romano – “ingrata gente, não possuirás meus ossos” – seria um
consolozinho, mas tenho quase certeza que o Nicolau já contou minhas tábuas,
para ver por quantos meses ainda servirei de combustível...
Por
cúmulo, venho suportando as zombarias do que me vai substituir; o miserável não
fora de pedra e cal, tem-se mostrado de um cinismo desumano para comigo e, à
medida que se alçam suas paredes, lança-me indiretas e ri-se com desdém de
minha decrepitude, orgulhoso de sua estrutura.
O
vil nem se apercebe de que um dia, quiçá daqui a quantos anos, ele também...
mas... não falemos dele.
Recolheu-se
por um momento e, como em delíquio, pôs-se a engrolar, em surdina, palavras
ininteligíveis; ora eu percebia um sentido lamento, ora uma injúria acovardada
aos seus algozes.
Quis
tirá-lo desse devaneio, para que prosseguisse, quando surgiu à esquina do
Província o Eliseu e outros patativos.
Estava
desfeita a confidência; em vão aguardei que se fosse dali; em vão tentei
reanimar aquele arcabouço que me falara; mergulhara no indiferentismo das
coisas inanimadas.
Vai esperar a morte...
E a morte veio, o barracão foi abaixo e hoje só restam dele meia dúzia de fotografias e algum bom número de reclames das velhas fitas, muitas delas ainda do tempo do cinema mudo, quando o pianista Curt Dreyer dava o tom à história que rodava na telona.
E o mais interessante é que o Coliseu que ganhou voz e chorou suas mágoas ao solitário homem sentado no banco da praça vaticinou que o novo que se erguia um dia poderia passar pelo que ele estava passando. Foi a mais pura verdade! Por anos a fio o Cine-Teatro Coliseu ficou em flagrante perigo de desmoronar ou ser demolido, o que felizmente não aconteceu, permitindo que hoje contemos a história dos dois cinemas de nome Coliseu, cada um com seu valor e importância. Cada um marcando para sempre a memória do cinema em Cachoeira do Sul.
* Em próxima postagem, informações sobre o jornal O Coringa. Aguarde.