A
Cachoeira de 1850 era um lugar bem acanhado. A maior edificação existente
era a Igreja Matriz, ainda um templo inconcluso. Havia nele sempre um retoque a
ser feito, um remendo em alguma rachadura, uma torre erguida apenas e a outra
em permanente vontade de subir... Até o padre Antônio Homem de Oliveira andava
desassossegado – queria muito adquirir uma cruz para encimar o frontão da
igreja.
Em
1856, o devoto Ferminiano* iniciou a construção do Império do Divino Espírito
Santo, salão destinado às festas religiosas da tradição lusitana e que ficava
no meio da quadra seguinte à da igreja. Ficou quase tão imponente quanto o Teatro Cachoeirense, construção de 1830 que dominava a quadra fronteira ao que deveria ser - e ainda não era - a Praça da Igreja.
Prédio do Império à direita - década de 1910 - Fototeca Museu Municipal |
Teatro Cachoeirense - Fototeca Museu Municipal |
Nessa
mesma Cachoeira de 1850, em ano ainda incerto, um português – que portugueses
havia ainda muitos naqueles tempos – de nome José Custódio Coelho Leal, de
comprovadas posses e importância no cenário da Vila da Cachoeira, erguia na Rua
do Loreto (Sete de Setembro), proximidades da igreja, uma vistosa casa para os padrões da época.
Será que tinha em mente reunir a família que lhe restara? Viúvo, José Custódio só
tinha um neto, José Custódio, o Júnior, filho de seu único filho, também José
Custódio, falecido aos 33 anos em 1831. Será que a nora, Inocência Joaquina,
vivia na companhia do sogro? Conjeturas do passado presas à imaginação e por
enquanto habitantes da ficção.
Casa de José Custódio Coelho Leal ao tempo do Clube Renascença - Fototeca Museu Municipal |
O neto já era então casado com Heduviges Falcão, com três filhos nascidos na década de 1850: João (1855), Josephina (1857) e Olympio (1859). Nos anos 1860 nasceriam mais dois: Rhea Silvia (1866) e Nelson (1868).
O
interessante é que a casa que José Custódio, o avô, construiu extrapolava os
padrões da acanhada Cachoeira. A rivalizar com ela somente a do Dr. José Afonso
Pereira, na Rua dos Cachorros (Saldanha Marinho), que havia hospedado D. Pedro
II em 1846, por ser a maior e mais confortável existente.
Casa que hospedou D. Pedro II - Fototeca Museu Municipal |
Em 5 de setembro de 1858, José Custódio faleceu. O neto José Custódio herdou
“uma morada de casas sitas à Rua Sete de Setembro desta cidade, com frente a
Oeste e fundos a Leste, com cinco janelas, porta de entrada e portão ao lado,
contendo toda a frente dezessete metros e setenta e sete centímetros, dividindo
ao Sul com casas do inventariante, ao Norte com terreno de Luiz da Silva, a
Leste com terrenos e casas de Gaspar Xavier da Silva e de D. Mathilde Nunes da
Silva Castro, a qual acharam valer seis contos de réis...” Pela data do
inventário é possível verificar que a casa já estava construída no final da
década de 1850. Na descrição sucinta do bem, não constam as estátuas do
frontão. Teriam sido elas adereços originais da casa ou colocadas ali
posteriormente?
Estátuas do frontão - Imagem Antônio Sarasá |
No
meio tempo entre a morte de José Custódio e a do neto, ocorrida em 1910, há uma
lacuna de informações sobre a casa exceto que no ano
de 1907 estava alugada para o Dr. Balthazar de Bem, ocasião em que foi
sondada para servir de colégio aos irmãos maristas. Em 1911, quando Heduviges,
viúva de José Custódio, o neto, faleceu, no inventário do casal apareceu “uma
casa, sob número 41, nesta cidade, à Rua Sete de Setembro, que avaliamos em
dezesseis contos de réis; uma casa sob n.º 39, mesma rua, que avaliamos em
nove contos de réis; uma outra casa, sob n.º 37, à citada Rua Sete de Setembro,
que avaliamos em seis contos de réis...”, demonstrando que as posses da família não se restringiam apenas à casa das estátuas.
Família de José Custódio Coelho Leal Jr. e Heduviges Falcão Leal - Acervo Ucha Mór |
Seis
anos depois, o herdeiro da casa em questão, Olympio Coelho Leal, vendeu o imóvel para o
Clube Renascença, iniciando-se um período em que várias entidades fizeram dele
sua sede, como a União de Moços Católicos, nova proprietária a partir de 1925,
entidade de cunho religioso e social que acabou por incorporar à edificação a
denominação pela qual a casa do português José Custódio Coelho Leal chegou aos
nossos dias.
Da casa original restou a fachada, ora em processo de restauro, e que confere imponência ao residencial que atrás dela
se descortina. Os elementos e técnicas
construtivas empregadas na edificação revelam segredos do passado e poderão
alcançar respostas à estatuária que domina o frontão, cujas figuras despertam
curiosidade pela significação que encerram. Que segredos guardam? Que
propósitos deveriam refletir? As respostas podem surgir na delicada tarefa de
reconstituí-las, assim como um documento do passado poderá surgir dentre os
escaninhos do tempo e dizer mais sobre os propósitos do português que construiu a casa de cidade
grande numa ainda acanhada e inculta vila.
Esta postagem é dedicada à colega Maria Lúcia Mór Castagnino, a Ucha, detentora das informações preciosas aqui traçadas.
*Ferminiano: provavelmente Ferminiano Pereira Soares, o construtor da Casa de Câmara, Júri e Cadeia, atual Museu Municipal.
Obrigada, querida Mirian, por me dedicar esta bela postagem. Esta casa está íntimamente ligada às minhas vivências de infância e juventude assim como à história de minha família. O resgate da história e a o restauro desta casa significam muito para quem valoriza a memória afetiva e a nossa paisagem urbana.
ResponderExcluirQuerida Ucha, nossa Cachoeira tem coisas maravilhosas... Mas é preciso "ter olhos de ver", como dizia o saudoso Dr. Witeck.
ExcluirAs imagens que adornavam a casa do Dr. José Afonso Pereira, na Rua Saldanha, embora de menor estatura, se assemelham as encontradas na casa de José Custódio Coelho Leal.
ResponderExcluirSim, Mico! Pode ser que o José Custódio tenha "imitado" a casa bonita do Dr. Pereira.
ResponderExcluirMuito boa reportagem.
ResponderExcluirCachoeira do Sul é uma das cidades mais antigas do RS, sua arquitetura é linda, pena que muitas coisas foram demolidas ou abandonadas ao tempo.
Mas estamos lutando pelo que sobrou, Renato!
ResponderExcluirCada casa dessa Cachoeira tem uma história imensa e constatar que temos junto de nós as pessoas que nelas viveram ou que passaram por elas, nos causam mais impacto ainda. Estes depoimentos são nossa história. Viva a nossa consciência do passado!
ResponderExcluirViva!!!
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