Espaços urbanos

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Ponte do Fandango - foto Robispierre Giuliani

domingo, 15 de novembro de 2015

Enfureceu o rei dos arrozais

Em abril de 1941, ainda sob o impacto da grande enchente que castigou Cachoeira, destruindo lavouras de arroz inteiras e submetendo a população e a economia da época a situações que teriam desdobramentos futuros, um texto publicado no jornal O Commercio, e assinado por Adão Pabím da Motta, dá um interessante cognome ao Jacuí – o rei dos arrozais, atribuindo-lhe poderes de vida e morte. O texto retrata um pouco do sentimento que tomou conta das pessoas que viveram esse momento da nossa história e que acabou por alimentar o imaginário de castigo e penitência que a grande enchente de 1941 deixou também como legado.

Porto de Cachoeira sob a enchente - coleção Achylles Figueiredo
- Fototeca Museu Municipal -

Lavoura sob a água - coleção Achylles Figueiredo
- Fototeca Museu Municipal - 

Cachoeira, a mais bela cidade pampeana, a rainha soberana do Jacuí, a pioneira rizícola da Brasília terra, atormentada pela inclemência do temporal implacável, sente a iminência de ser envolta no véu negro da desgraça, no manto atormentador da miséria.

Sem fantasiar tragédias nem improvisar odisseia, impressiona não só o panorama imenso e grandioso que enaltece a vista, como também o drama miserável que revolta os ânimos e exalta a imaginação.

É que, enfurecido o caudaloso Jacuí, ostentando o cetro de rei dos arrozais, indômito e inquebrantável da torrente, espraiado por sobre as messes louras do vargedo, endeusado como os super-homens que se arrogam o direito de dominar, estende suas garras aguçadas, trazendo para seu seio, ávido de glória e ufano de grandeza, o pão que nutre o inocente, o estímulo que assoberba o gênio, a felicidade que perfuma a vida.

Embarcações nas águas cheias - coleção Achylles Figueiredo
- Fototeca Museu Municipal

Pára, ok! rei poderoso; a soberania jamais te será roubada, tua clemência sempre há de ser reconhecida. Teu capricho chacina e conspurca. E agora que havias prometido a grande dádiva, repartes a miséria quando devias repartir o pão?!

Oh tu, Lavoura, que ontem, em apoteose, ouvias cantar o hino da glória ao som melodioso das trombetas que anunciavam antecipadamente tua sorte, bradando – Vitória! Vitória! Hoje, submissa, embora desvanecida, não sucumbas ainda. Chama, implora e a força de tua deusa te salvará. Oxalá, Ceres alada, resplandecente, no auge de seu poderio, vanguardeie as hostes sagradas e te retorne à glória merecida.

Rizicultor vassalo. Não, não te entregues ainda, nem tudo terminou! Eu vejo refletir de ti o clarão da fogueira que te incinera a alma. Enrijece teus músculos e encouraça tua nobreza! Luta, ainda um segundo ao menos, reivindica teu direito. Chama a justiça, que por mais ultrajada que seja, nunca sucumbirá.

Lembra que lá, onde talvez dos céus inda não caia a chuva, chefes endeusados repartem o terror. Hoje, enquanto tuas messes são cobertas pelo manto alvo da paz, os campos da Europa são tingidos pelo sangue*, porque Deus vale mais que os reis.

(Jornal O Commercio, 30/4/1941, p. 1).

*Referência à II Guerra Mundial que corria na Europa entre 1939 e 1945.

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