Em abril de 1941, ainda sob o impacto da grande
enchente que castigou Cachoeira, destruindo lavouras de arroz inteiras e
submetendo a população e a economia da época a situações que teriam
desdobramentos futuros, um texto publicado no jornal O Commercio, e assinado por Adão Pabím da Motta, dá um interessante
cognome ao Jacuí – o rei dos arrozais, atribuindo-lhe poderes de vida e morte.
O texto retrata um pouco do sentimento que tomou conta das pessoas que viveram
esse momento da nossa história e que acabou por alimentar o imaginário de
castigo e penitência que a grande enchente de 1941 deixou também como legado.
Porto de Cachoeira sob a enchente - coleção Achylles Figueiredo - Fototeca Museu Municipal - |
Lavoura sob a água - coleção Achylles Figueiredo - Fototeca Museu Municipal - |
Cachoeira, a mais
bela cidade pampeana, a rainha soberana do Jacuí, a pioneira rizícola da Brasília
terra, atormentada pela inclemência do temporal implacável, sente a iminência
de ser envolta no véu negro da desgraça, no manto atormentador da miséria.
Sem fantasiar tragédias
nem improvisar odisseia, impressiona não só o panorama imenso e grandioso que
enaltece a vista, como também o drama miserável que revolta os ânimos e exalta
a imaginação.
É que, enfurecido o
caudaloso Jacuí, ostentando o cetro de rei dos arrozais, indômito e
inquebrantável da torrente, espraiado por sobre as messes louras do vargedo,
endeusado como os super-homens que se arrogam o direito de dominar, estende
suas garras aguçadas, trazendo para seu seio, ávido de glória e ufano de
grandeza, o pão que nutre o inocente, o estímulo que assoberba o gênio, a
felicidade que perfuma a vida.
Embarcações nas águas cheias - coleção Achylles Figueiredo - Fototeca Museu Municipal |
Pára, ok! rei poderoso;
a soberania jamais te será roubada, tua clemência sempre há de ser reconhecida.
Teu capricho chacina e conspurca. E agora que havias prometido a grande dádiva,
repartes a miséria quando devias repartir o pão?!
Oh tu, Lavoura, que
ontem, em apoteose, ouvias cantar o hino da glória ao som melodioso das
trombetas que anunciavam antecipadamente tua sorte, bradando – Vitória!
Vitória! Hoje, submissa, embora desvanecida, não sucumbas ainda. Chama, implora
e a força de tua deusa te salvará. Oxalá, Ceres alada,
resplandecente, no auge de seu poderio, vanguardeie as hostes sagradas e te
retorne à glória merecida.
Rizicultor vassalo.
Não, não te entregues ainda, nem tudo terminou! Eu vejo refletir de ti o clarão
da fogueira que te incinera a alma. Enrijece teus músculos e encouraça tua
nobreza! Luta, ainda um segundo ao menos, reivindica teu direito. Chama a
justiça, que por mais ultrajada que seja, nunca sucumbirá.
Lembra que lá, onde
talvez dos céus inda não caia a chuva, chefes endeusados repartem o terror. Hoje, enquanto tuas
messes são cobertas pelo manto alvo da paz, os campos da Europa são tingidos
pelo sangue*, porque Deus vale mais que os reis.
(Jornal O
Commercio, 30/4/1941, p. 1).
*Referência à II Guerra Mundial que corria na Europa entre 1939 e 1945.
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