Espaços urbanos

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Temporal no Centro Histórico - foto Francisco Nöller

domingo, 29 de abril de 2018

Um prédio enigmático


Quem se aproximar da margem esquerda do rio Jacuí, chegando perto da plataforma do pretenso segundo porto de Cachoeira do Sul, irá divisar um pavilhão portentoso. Quase alheio a algumas ruínas que a ele se ligam e ignorando o ar de decadência, o pavilhão domina o paredão do rio. Paineiras centenárias lhe servem de moldura, marcando as estações de um tempo de convivência que eles, pavilhão e paineiras, não sabem mais contar em anos... 

Charqueada e plataforma do porto - Fototeca Museu Municipal

Paineira na Charqueada - Foto Defender

O cenário é o da extinta Charqueada e Estabelecimento Paredão, a primeira grande indústria da cidade, fundada em 1878. 
   
O portentoso pavilhão aparece em registro fotográfico de 1910, cercado de outras construções que dão a ideia do quanto grandioso era o complexo industrial da Charqueada.

Charqueada do Paredão - 1910 - Fototeca Museu Municipal


Por esses tempos a Charqueada se apresentava com a razão social de Brazilian Extract of Meat & Hide Factory Ltd., companhia inglesa que introduziu uma série de melhoramentos materiais no complexo. Anos mais tarde, em 1909, ainda sob administração inglesa, o pavilhão que domina até hoje o alto do paredão passou por uma expressiva obra, sendo melhorado em sua estrutura e nas condições higiênicas. O projeto, de engenheiros ingleses, mostrou-se sólido o suficiente para estar ainda hoje, mesmo que abandonado, ostentando sua condição de portentoso.


Placa indicativa da indústria - Fototeca Museu Municipal

As obras são referidas com detalhes pelo jornal Rio Grande, edição do dia 23 de dezembro de 1909, à página 2:

Fábrica Modelo
Estabelecimento do Paredão
A convite de seu operoso gerente, nosso amigo Sr. Henrique Pearson, tivemos o prazer de domingo último, assistir, às últimas demãos da nova fábrica de conservas alimentícias ali reconstruída.
A impressão que dela nos ficou é que não existe em todo o Rio Grande um estabelecimento que a este se avantaje, podendo nós sem temor de erro classificá-lo de fábrica modelar. É com desvanecimento, pois, que iniciamos a notícia desse novo edifício, acrescido aos que já existem naquele estabelecimento, que vem trazer à nossa terra pela sua terminação farta messe de benefícios, que atestam exuberantemente o engrandecimento material da conhecida fábrica.
Não há quem vindo a Cachoeira, embora passageiramente, e visitando o Paredão, não afirme ser este um modelo entre seus congêneres, máxime agora, com os melhoramentos que ali foram introduzidos e a reedificação da fábrica de conservas.
Esta que mede 58 metros de comprimento por 16 metros de largura, é um edifício de uma solidez inigualável, tendo a planta sido traçada por engenheiros ingleses que há pouco tempo visitaram a Charqueada. Dada a planta, feito o orçamento respectivo, começaram as obras sob a imediata fiscalização do digno gerente daquele próspero estabelecimento, nosso amigo Sr. Henrique Pearson.
Aproveitando o local onde se erguia a antiga fábrica, que apresentava base não muito sólida, houve necessidade de nele se fazer obras d’arte de valor, sendo as construções de uma solidez a toda prova.
Encarregou-se da parte relativa à construção de alvenaria o conhecido mestre Antonelli Oreste que mais uma vez mostrou a sua competência de profissional, sendo diretor da parte concernente à carpintaria Carlos Böer.
Uma das coisas que mais nos impressionou nessa construção foram as condições higiênicas que ela apresenta. Como de fato, em uma fábrica onde promiscuamente trabalham centenares de empregados em misteres pesados é condição primordial a capacidade cúbica de ar que cada um ali absorve, bem como a luz proveniente das aberturas existentes.
Na nova fábrica que o Estabelecimento do Paredão acaba de concluir, além de dezenas de janelas, a cada qual corresponde outras pequenas, tem o cimo da cumeeira aberturas laterais, de ponta a ponta, trazendo ao vasto salão muito ar facilmente renovado.
Todo o vigamento do edifício é de aço de primeira qualidade, vindo diretamente da Inglaterra, sendo as madeiras empregadas cabriúva, louro e pinho de riga. O piso da fábrica será de lajes, achando-se já ali 1.700. O custo total não excederá de 54 contos de réis, sendo que a inauguração será feita em janeiro.
Assistimos, porém, à terminação da cumeeira. Ao ser pelo chefe dos carpinteiros pregado o último prego, foram hasteadas sobre ela, desfraldando-se ao vento, as bandeiras brasileira e inglesa, ao espocar de dezenas de foguetes, sob a chuva de aplausos dos operários em festa.
Descobertos, ante o imponente ato, elevamos também os nossos vivas entusiásticos à digna companhia inglesa, cujo capital vem trazer à nossa terra e aos nossos operários a honrada contribuição de seu labor, na pessoa do cavalheiro Henrique Pearson, que sabe perfeitamente cumprir o seu dever na gerência que lhe foi em boa hora confiada. A fábrica que vimos de falar é uma das grandes iniciativas que a companhia e a nossa terra lhe devem; é um atestado de que o progresso em que marchamos é uma realidade. Não conhecemos, desde a fronteira, onde tivemos a ventura de visitar estabelecimentos saladeris de primeiro plano, outro que leve vantagens ao do Paredão com os melhoramentos por que passou. São dignos de nota, ficando em destaque, e ainda uma vez seja acentuado ser um estabelecimento modelo.
Terminada a cerimônia da conclusão da cumeeira foi aos operários, no grande salão que se acabava de inaugurar, servido um churrasco, sendo os convidados e representantes da imprensa levados para a sala de refeições do estabelecimento, onde lhes foi oferecido lauto almoço.
(...)
Mais uma vez seja-nos dado prantear, com efusão, os nossos agradecimentos ao Sr. Henrique Pearson pelo modo gentil e cavalheiresco com que fomos acolhidos, saudando pela consecução do seu desideratum em dotar a nossa terra com um estabelecimento superior aos seus similares no Estado.

Esta postagem é dedicada aos calouros (2018) da Faculdade de Arquitetura – UFSM/Cachoeira do Sul e aos professores Samuel Silva de Brito e Minéia Johann Scherer.

11 comentários:

  1. Essas coisas tinham que ser mais publicadas. Cachoeira é uma das cidades mais antigas do RS e tem muitas histórias.
    Parabéns, dona Mirian Ritzel.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Muito interessante a postagem, Mirian. Obrigado mais uma vez pela interação com a faculdade e pela ótima palestra da outra semana

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    2. Obrigada, Matheus! Estarei sempre à disposição.

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  3. É assim que sabemos que cachoeira já foi uma cidade prospera e afrente de seu tempo isso deveria ser mais divulgado a ponto de nossos governantes olhassem para o passado dessa nossa cidade com quase 200 anos e desenrolassem o futuro

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  4. Adorei a publicação. Precisamos de mais pessoas como a Sra. Mirian na nossa Cachoeira do Sul, repassando seus conhecimentos. Não entendo como um local com uma história tão rica, não tem o olhar dos governantes como deveria ter. O local atualmente está completamente abandonado. Triste

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  5. Em 05/08/2021 visitei o pavilhão, e ele está depredado, abandonado.

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  6. Será que na planta da Charqueada, existia um ancoradouro?

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    1. Não sei dizer. Há ainda muitos mistérios a desvendar sobre a grande Charqueada do Paredão.

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